MÃO PELADA DA BRANQUINHA - Contos do Sítio #1

     O meu humilde sítio, palco de muitos relatos, situa-se na estrada que ainda é conhecida como da Branquinha, na Lomba do Pinheiro, em Viamão. Esta estrada é ladeada pelo Arroio Araçá que, mais adiante, se junta ao Fiuza e de lá segue para o Rio Gravataí.
     Durante gerações, este arroio forneceu meios de subsistência aos descendentes de açorianos e paulistas que ali se instalaram após a expulsão dos índios Guaranis, que hoje dominam os acostamentos das nossas rodovias. Apesar de estreito, lamacento e sinuoso, as águas desse arroio irrigavam as pequenas chácaras que abasteciam Porto Alegre com hortaliças e leite, na época das carroças. A família do seu Pantaleão era uma dessas famílias de “chacreiros”.
     Inocêncio, o filho mais velho desenvolveu uma estranha habilidade, a de “atrair e extrair” muçuns das águas do Araçá; deitava-se nas barrancas, enfiava o braço nas tocas, fechava o punho e ficava mexendo o dedo indicador enquanto recitava: vem, neném, vem aqui pro Inocentinho... Quase sempre funcionava. O curioso peixe da família das enguias via no dedo intruso uma tentadora minhoca; dava a abocanhada e não largava mais. Era só puxar para fora da toca, esgoelar o bicho até liberar o dedo e largar direto no balaio.
     A vizinhança sabia da existência dos muçuns, mas achava que o longo e esguio animal de águas lamacentas estava mais para cobra do que para peixe. Melhor para a felicidade do Inocêncio e para a mesa da família do seu Pantaleão.
     Naquela véspera de Sexta-Feira Santa lá se foi o primogênito a “capturar” os muçuns para o tradicional almoço religioso da família, que dava como certo o sucesso da curiosa empreitada. Todos contavam com isso. Confiante na sua capacidade, na saída ainda disse: vou ali e já volto. Preparem-se para retirar o couro de muitas "cobras".
     Enquanto a sacolejante carroça rumava em direção ao arroio, a imagem e o cheiro do peixe fritando na banha quente tomava conta de seus sentidos.
     O primeiro peixe atendeu rápidamente ao aceno do dedo e logo foi parar no balaio. Havia espaço para mais uns três ou quatro, o suficiente, mesmo para a numerosa família. Preocupantemente, o segundo peixe, bem como os demais, não estavam interessados nem no dedo e nem na cantilena do do já impaciente Inocêncio.
     Passou o tempo e os mosquitos anunciaram a noite. Mudou sua posição de ataque para o outro lado do arroio e, habilmente, logo farejou outra toca.      Enfiou o braço e iniciou a cantilena chamadora. Vem, neném, vem pro... Nem bem terminou a primeira estrofe e o balaio rolou pelo barranco, sem o peixe! Raciocínio rápido: ninguém por perto, o cachorro estava ao seu lado e peixe não sai caminhando pelo mato. O que seria? Procura daqui e dali até se convencer que o prometido e santo almoço de muçum estava irremediavelmente perdido.
     As explicações dadas em casa serviram para reforçar a crença da Dona Desolina de que o diabo anda solto nos dias da paixão de Cristo. Muitas exclamações e rezas sob a luz do lampião. Vovô Tranquilino lembrou que uns dias antes havia visto os cachorros perseguindo alguma coisa parecida com guará, graxaim, mão-pelada ou algum porco-espinho. Analisaram as alternativas e concluíram, por exclusão, que se tratava realmente do mão-pelada, animal predador quase extinto, mesmo no decorrer daquela década de 1950. Galinheiros estavam sendo atacados; moças eram assustadas quando lavavam roupa no arroio. Olhos brilhavam na escuridão. Não havia dúvidas, o demônio tinha nome; mão-pelada. (O Chupa-Cabras somente encarnaria décadas mais tarde).
     Passada a Páscoa, uma turma de voluntários se formou para a caça à fera. A busca iniciou pelo local do desparecimento do muçum. Aí veio a questão, fazer o que mesmo? Conversaram, traçaram estratégias, tomaram uns goles de canha, contaram causos, tomaram mais uns goles, deram mais uma procuradinha nas macegas, mais uns tragos e a noite chegou e, com ela, os mosquitos. Mais uns tragos por conta das picadas e a promessa de retomada da caçada no dia seguinte.
     O novo encontro trouxe novidades. Segundo o seu Benigno, o decano do grupo, o tal bicho fora visto um pouco mais longe, a uns três ou quatro quilômetros na mesma direção da correnteza do arroio. De imediato, dois desistiram logo da missão, pois o local era próximo demais da casa de pedra, prédio antigo recentemente ocupado por gentis senhoritas. Os três caçadores restantes não se intimidaram e em poucos minutos a carroça pilotada pelo jovem Inocêncio aportou na referida casa. Pareceu que os cavalos conheciam bem o trajeto.
     Apresentações foram feitas e os motivos da caçada fartamente expostos.
     - Porque essa pressa rapazes? Entrem, não tenham medo, talvez o bicho esteja por aqui mesmo, em baixo de alguma cama. Procurem, fiquem à vontade. Aceitam um licorzinho ou um vermutezinho?
     A noite chegou e só dois voltaram. O descompromissado Inocêncio ficou para melhor vasculhar o ambiente. Ao saírem, conseguiram escutar a conhecida cantilena que vinha do quarto: vem neném, vem pros bracinhos do inocentinho... Logo imaginaram o dedinho indicador chamando o delicioso peixinho agora promovido de muçum para sereia.
     Segredo entre três, só matando dois. Não teve como evitar, o caso virou lenda.
     Hoje, passadas seis décadas, o arroio Araçá estagnou e virou esgoto cloacal. A casa de pedra desmoronou por pressão das zelosas mães e esposas que não mais permitiram que seus tutelados se submetessem aos riscos noturnos da caça ao mão-pelada.
     Ah, sim. Desde aquela época, o Inocêncio, hoje zeloso avô, busca seus peixinhos no Mercado Público. O Mão-pelada pode ser apreciado no Zoológico de Sapucaia. O meu sitiozinho é que não muda, continua localizado bem no centro desse incrível palco que é a Branquinha, da Lomba do Pinheiro.