A DÍVIDA 
 
Sem ter o nome da pessoa e com indicações bastante vagas, foi somente no segundo dia da aventura que descobri a casa. Mesmo eu sendo mulher, ele não se abriu logo. Receava que fosse uma policial disfarçada. Constatando a dimensão do meu ódio foi, aos poucos, relaxando. Evitando os detalhes sórdidos, contei-lhe da minha decisão de contratar alguém para eliminar meu marido.   

Um casal de crianças, vez ou outra, passava brincando pela sala. Já conversávamos há um bom tempo quando sua esposa surgiu. Ofereceu-me um cafezinho, “coei agorinha mesmo”, completou. Estar ali me deixava a boca seca e foi de bom grado que aceitei. Saboreando a bebida na caneca esmaltada, me dei conta do absurdo daquela cena. Ele, perspicaz, leu o meu pensamento. Disse-me então que ela conhecia o seu trabalho e, consequentemente, o motivo de eu estar ali. Confidenciou-me, sorriso discreto nos lábios, que uma vez ela o tinha auxiliado diretamente, empregando-se como faxineira no apartamento de uma dona que tinha precisão de morrer.

Aquela conversa, ao mesmo tempo que me interessava, ia me dando umas gasturas. Precisava terminar com aquilo. Fui direta ao ponto, indagando dele quanto me custaria o serviço? Respondeu-me, com uma calma de se dar aflição, a voz tranquila de quem parecia rezar. Só poderia me dar o preço depois de saber mais sobre mim e o meu esposo. Apontou, pela janela aberta, o carro caro. Adiantou-me que que se tratava de um indicador de que o trabalho não ficaria barato.  
“Rico custa mais, pois em um caso assim a polícia é mais fuçadora. Esforça-se na procura do dono da mão que tenha descansado o cujo. Famoso então é pior. Só pego o caso se for por muito dinheiro.” Reparou no meu olho circulando pela sala modesta e, mantendo o tom de voz, me afiançou ser homem de muitas posses. Que era só por motivos de segurança que mantinha assim as aparências, mas que a vida boa mesma eles tinham era quando passavam temporadas, esperando as poeiras baixarem, no fazendão do Mato Grosso. 
Tive que falar de Alfredo, contei-lhe que era engenheiro, dono de uma pequena construtora especializada em construir galpões industriais, postos de gasolina e outras obras desse tipo. Solicitou-me fotos e precisava, também, dos endereços da casa, da empresa e da obra onde trabalhava. Loucura foi que em nenhum momento, receei de lhe passar tantos dados e de lhe entregar a foto, guardada na carteira, junto às de Melissa e Alessandra. 

Precisava de uma semana para as pesquisas. Num papelzinho meio amassado me deu um número de celular. Que ligasse no sábado, meio dia, fizesse isto de algum orelhão distante dos meus caminhos habituais. No telefonema fecharíamos o contrato. Eu teria preços, condições e maneiras para lhe fazer o pagamento. Levantei-me, enquanto ele chamava a mulher e os meninos para se despedirem de mim. No portão recebi a última orientação: “A senhora nunca me viu, jamais esteve aqui e muito menos é sabedora das estradas que aqui a trouxeram. Entendeu, dona?” 

Fiz exatamente conforme prescrito. Para ele dar cabo do meu esposo eu teria que lhe pagar quarenta por cento adiantado. E era muito dinheiro, pois conforme havia pesquisado, Alfredo era valioso. Combinamos o encontro para daí a três dias na Rodoviária. Seria uma sexta-feira, sete horas da noite. “Estarei na Plataforma C, uma das que costumam estar mais cheias. A senhora me leve, por obséquio, o contratado numa sacola. Faz como se estivéssemos nos despedindo, me dando a bolsa como se fosse uma encomenda para ser levada para alguém. E, já sabe, a regra é a mesma: nunca esteve comigo também por lá. Certo, dona?” 

A outra parte, deveria ser saldada até quinze dias após o serviço realizado. As instruções para o segundo pagamento me seriam dadas depois. Alertou-me para que mantivesse as rotinas, que o plano estava pronto e que os acontecimentos se dariam em, no máximo, uma semana. Desculpou-se antes de me passar uma última orientação, pois que já tivera problemas com freguesas no passado. “A senhora me faça o favor de chorar bastante no velório. Faz bem se desesperar no momento do enterro.” 

A primeira parte do valor, esse dinheiro para ser entregue na Rodoviária, seria simples e fácil. Iria sacá-lo da aplicação e a facilidade era que ela estava só em meu nome. Grana que era fruto da herança de vovô. Para depois de tudo consumado, pretendia vender algumas joias. Escolheria somente dentre as que me foram presenteadas por Alfredo, claro.  

Encontrei-o como se fora viajar daí a pouco. Quem sabe iria mesmo? Veio até mim, me abraçando e dizendo que ficaria por lá – que nem imagino onde seja – por uma semana. Que levaria a encomenda, os abraços e as recomendações para todos.  Meu Deus, era impressionante a frieza dele. Corri para o estacionamento, apanhei o carro e fui para casa.   

Não consegui dormir. Uma ansiedade enorme para que a semana voasse e tudo tivesse acabado.  Tentei ler, assistir televisão, jogar paciência e nada. Deitada, virava para lá e para cá na cama e, de repente, estava frente a frente com o rosto do homem que odiava, a menos de dez centímetros do meu. Permaneci por um bom tempo a mirá-lo na penumbra, parecia sorrir. 

Cansada pela noite em claro e ele, sem se mancar, se chegando impetuoso para me abraçar assim de lado. Consegui escapar daquelas mãos ávidas. Mais um pouco e Alfredo a me pedir para que o ajudasse no banho dos cachorros. Depois, ele prosseguiu, aproveitando que as meninas se encontravam com os avós, poderíamos almoçar em um japonês e pegar um cineminha á tarde. Muito mais do que negar, aproveitei para lançar em seu rosto o seu descaso para comigo, o cuidado que tinha era com a empresa. Somente as obras, seus tais galpões, é que possuíam importância. Olhava-me com um rosto que decifrei como o de alguém que não estivesse compreendendo nada, ou pior, que se fazia de desentendido. Mais trágico ainda é que não abria a boca e isto me exasperava ainda mais. Como não se defendia? Então era mesmo assim. Eu não significava nada em sua existência.


Estar em casa com aquele homem me trazia uma gastura enorme. A coisa piorava por não ter por perto o escudo das garotas. E era como eu não tivesse dito nada. Ele continuava se insinuando, me fazia uns agrados, esforçava-se para me trazer à lembrança as coisas que fazia quando eu ainda era significativa para ele. Até a música que, no tempo de namoro, havíamos definido como ‘a nossa música”, ele cantarolava pela casa. Precisava manter a lucidez, fugir daquele assédio. Então, fui ao salão e como ainda precisava de mais tempo, dei voltas e voltas com o carrinho pelos corredores do imenso supermercado. E não é que à minha volta reclamou, ele que odiava supermercados, que não o chamei para ir junto?

A noite do sábado veio e recrudesceram as investidas. Ele estava deitado enquanto eu zapeava buscando algo interessante na TV. Meu objetivo era o de gastar o tempo até que dormisse. Alfredo me chamou uma primeira vez. Menti dizendo que o filme estava interessante demais e o pior é que ainda demoraria uns quarenta minutos para acabar. Mais um tempo e insistiu. Fingi que não ouvi. E ele, do nada, apareceu na sala de televisão. Riu ao constatar que eu assistia o vídeo de um jogo. ‘Agora está curtindo futebol?’ Refreei a vontade de mandá-lo à merda. Sentado ao meu lado, tomou o controle e desligou o aparelho. Foi aí que aconteceu algo que me balançou profundamente. Meu marido me pedia perdão por não ser o cara cuidadoso que eu tanto desejava. Abraçou-me tal qual menino amedrontado. O ímpeto inicial obviamente que foi de negar, rechaçar aqueles braços atrevidos. Dizer que me deixasse em paz e reiterar que, dali para a frente, o casamento seria simples burocracia a ser cumprida.  

A vida é tão esquisita. Meu corpo aceitava aquele carinho e minha cabeça o negava da forma mais contundente, absoluta. Havia seguido meus ímpetos. Tudo estava feito, impossível haver retorno. E aquilo tudo a me fazer sentir, de novo, louca. Dentro de mim a voz sussurrante: “aceite”. Seria o demônio? Seria um anjo?


A noite aconteceu ali mesma e foi como nos velhos tempos: maravilhosa. Tão gostosa que nem senti Beto a me povoar os pensamentos. Foi então que caí em conta do mais completo absurdo. Aquilo era possível? O que sei que eu o perdoava pelo que ele era, bem como também iria me esforçar demais para afastar Beto dos sonhos e do coração.  

A manhã chegou com o desespero a me sufocar. Disse para Fredo que precisava sair, resolver algo urgente e complicado.  Insistia, demais, querendo ir comigo. Custei a convencê-lo de que necessitava estar só. Sossegou quando garanti que logo voltaria para casa. Numa banca de revistas adquiri um novo cartão telefônico. Dirigi até o orelhão e liguei, liguei e liguei. A insistente voz automática a me dizer que conferisse o número discado, que o telefone era inexistente.   

A angústia me deixava trêmula. Descumpri o prometido e fui para o subúrbio. Estacionei bem antes e continuei a pé. Toquei a campainha, bati palmas, soquei o portão de ferro. Da janela, a vizinha me gritou que tinham partido para visitar uns parentes no interior. Que o retorno se daria só dali a uns dez dias. Não tenho a menor ideia de como voltei para casa.   

“Meu bem, vamos viajar, sinto que algo terrível irá nos acontecer”, foi o que lhe implorei chorando. Alfredo sorriu me dizendo que esses presságios eram bobagens. Que quem está com Deus está protegido e nada poderia nos acontecer. Respondi, aos prantos, que a coisa era séria demais. Que viajássemos para a serra, ou para a praia, ele poderia escolher. Riu, a caçoar que devia ser sério mesmo, para que eu o deixasse decidir. De repente, passou a me olhar de um modo estranho.     

“Meu amor, suas alucinações voltaram. Acalme-se, amanhã iremos ao Dr. Bráulio. Ele lhe receitará uns bons remédios e logo estará boa.” Meu Deus, ele me achava louca novamente. E aquele desgraçado do médico iria me internar. A solução me veio de uma vez. Menti que estava bem, que fora só um sonho ruim que tivera. Que nada iria acontecer, mas que era uma boa ideia termos uma consulta com o psiquiatra.    

Ele me abraçou, disse-me para deitar e descansar um pouco. Pedi que fosse à padaria e comprasse uns pães bem gostosos e queijo. Enquanto isto eu prepararia um belo de um café da manhã. Ah, que desse também uma passada na feira e escolhesse umas frutas e um peixe para o almoço que eu iria preparar para a gente. Só aguardei que a porta se fechasse. Corri até a gaveta dos remédios, apanhei o frasco com o “sossega leão”. Quando muito agitada partia um comprimido ao meio e tomava. Dava de sobra para umas boas horas de sono pesado. No vidro havia pelo menos doze. Vinte e quatro vezes a minha dose, mais do que suficiente para resolver o meu problema. Aguardaria Fredo do outro lado da vida. 

Saí do coma vinte dias depois. Mais um tempo, quando já recebia visitas, perguntei às crianças por que papai não vinha com elas. Caíram, juntas comigo, no choro. Teria que ser forte. As meninas, ainda mais do que antes, dependiam da minha fortaleza. Véspera da alta, era Magda a amiga escalada para estar comigo. Notei seu semblante preocupado e perguntei o que acontecia. O filho sofria crise de bronquite, mas o bom era que o marido sabia cuidar dele. Que não me preocupasse e até estava arrependida de ter me contado. Afiancei-lhe da bobagem de permanecer no hospital. Eu iria para casa daí a poucas horas e, mais ainda, a turma da enfermagem de plantão era a mais dedicada de todas. 

Só se convenceu depois que a chefe da enfermagem lhe garantiu que se sentiriam honradas em cuidar de mim, naquela noite de despedida. Nem dez minutos da saída de Magda tinham se passado, quando me anunciaram que um primo do interior viera me fazer uma visita rápida, eis que viajaria ainda naquela noite. Meu Deus, a vida real estava de volta e me apresentava a sua cara mais horrenda. Havia uma dívida a ser paga.