DOUTORA DE ALMAS 

Estava distante aquele tempo em que a vida era percebida como algo absoluto. O juramento de Hipócrates, na medida em que os cabelos embranqueciam e os movimentos se tornavam menos agitados, passava a ser visto de maneira distinta. A vida sempre, pois que se trata de valor absoluto. Só que, em seguida, uma pergunta se sobrepunha: Que vida? A atividade clínica por tantos e tantos anos exercida, foi lhe mostrando que há algumas formas de existir que não valem a pena serem prolongadas.

Vivia só em seus mais de oitenta anos. O marido morrera fazia tempos e a única filha, solteira, fora levada por um câncer pelo último Natal. Nessa nova percepção da realidade, a doutora velhinha deixara de ser cuidadora da saúde do corpo, para se tornar linda médica de alma. Descobrira que tinha um destino maior, fizera-se sacerdotisa. A nova função era a de ser ponte entre o lado de cá, da dor e sofrimento, para a banda de lá, da paz e alívios. Desse jeito, em longas conversas e sem cobrar pedágios, ela havia se tornado um valoroso auxílio e acelerador nas passagens.

Tudo ia bem até que uma neta egoísta, daquelas que não conseguem imaginar a vida sem a presença física da avó, desconfiou do tanto de tempo que ela investia ao lado dos leitos. Indagou sobre os assuntos das conversas daquela clínica tão idosa, e que deveria mesmo estar aposentada há vários anos. A doente a defendeu dizendo que tratavam de coisas bonitas, que refletiam sobre o céu. Ainda mais intrigada a moça escondeu um gravador ao lado da cama. A manchete grotesca no jornal sensacionalista, com a sua foto, miúda e encurvada, estampada gritava: “Médica Monstro na cadeia”.