Movido pelo Selvagem
 
 
          As aves tornavam-se raras nas biqueiras e os telhados se despovoavam. A fome trouxe a transformação. Qualquer coisa servia de alimento. O homem, no ermo, conversava com o animal. Ele ia cortando a casca de laranja, fazendo desenhos, dependurando-as nos galhos. O mundo seguia assim, a terra estéril, vazia de aspirações. Humano e bicho com destino selado... Saíram andando, foram acostumando, e uma hora foram e não voltaram mais.

          Longes trovões riscavam a mata despertando imagens soterradas.
 
 
          Desde quase menino ainda, Silas perambulava, bebia e apostava, cínico e debochado, armado, curtindo a ilusão da imortalidade. Drogas nunca quis. Indispunha com a cara de alguém e acabava arrumando briga, no soco. Batesse ou apanhasse, não levava desaforo para casa. Mesmo quando apanhava com o Taurus na cintura, nunca o puxou. Nunca disparara contra gente. De vez em quando, bêbado, dava uns tiros para cima. Usava a arma porque quase todos os homens dali usavam e queria ser como eles.

          Para não dizer que nunca tinha dado tiro em vivente, já havia atirado em animais. Certa vez matou uma capivara, que comeu com outros. Paladar travoso. Teve que dar três tiros nela.

          — Nunca dê mais de um tiro, em bicho ou gente! É judiaria... — zombaram dele.
 
 
          Silas seguia adiante, cercado de nada, nada entre os nadas, fazia coisas impossivelmente inúteis; cultivava o perigo, procurava situar-se e encontrava um tempo áspero, de cores agressivas. Trabalhava pouco, constante nos jogos e simuladores de tiro e voo. Voar era sua outra paixão.  Frequentes eram as saídas com a turma para beber, jogar... e brigar.
 
          “A balada hoje é na minha rua, ao ar livre. Mulherada. Agitação. Espero você, cara, sem falta.” — foi a mensagem que havia recebido de Bartô, na noite anterior.

        Silas dançou a noite inteira, a música eletrônica o animava ao mesmo tempo em que o acalmava. Sorvia das garrafas o curto prazer. Lyara apareceu assim como se não aparecesse e os olhos tomavam fulgores quase belos. O peso dela sobre seu corpo era um convite. A noite encantou.
 
          Gritos e choro tiraram Silas do sofá estreito no quarto da moça. Já era manhã alta. Uma mulher aparecera no cortiço correndo, desesperada. Era vizinha, a casa dela ficava no andar de baixo. O marido estava fora e apareceram uns nômades lá. Eram três, só homens. Mas o pior é que depois que foram embora, ela sentiu falta de um dos filhos, uma menina de quatro anos. Tinha certeza de que roubaram a garota. Os andantes tinham fama de fazer isso, e criar no bando deles, como se fossem filhos.

          Nessa hora, estava chegando um rapaz que tinha fama de valente, também viera para a festa e dormira próximo.
— Vou atrás. Não tenho medo. Quem vem junto? — insultou com voz de pedregulho. Sem imaginar as consequências, Silas se sentiu desafiado. Mesmo a boca formando um "não", a voz não chegou a atravessar a rua. Os dois montaram nas motos e partiram na direção apontada.

          Os andarilhos iam sem muita pressa, não imaginaram que seriam seguidos. E, pouco depois, o grupo foi alcançado, bem adentrado na mata. As barracas do acampamento já eram avistadas na clareira. De longe, Silas gritou para eles pararem, ameaçaram ir mais depressa, já chegavam; o outro perseguidor gritou que se não parassem, atirariam. Ambos com as armas nas mãos. Os nômades sabiam que não poderiam competir com a velocidade das motos, pararam as bicicletas roubadas, viraram-se para os perseguidores:

          — Que foi? — os andantes mostraram pistolas na cinta.

      — Devolvam tudo! Onde está a menina? — gritaram sincronizados.

        Responderam que não tinha menina nenhuma e que as bicicletas eram deles, tinham comprado. Ficou uma discussão, devolve, não devolve, eles puxaram as armas e foi o inferno. Quando Silas deu por si, somente ele estava de pé. Todos caídos ensanguentados, inertes.  Ileso! Vontade de sair voando com grossas asas, o viver doía denso, impossível, sofrido, milagroso.
 
      O moço avaliou as possibilidades que a situação lhe infligira. Antes da escuridão deveria regressar, descansar um pouco. A angústia iluminada em seu rosto pelos últimos raios de sol, os outros rostos mal delineados. E a menina? O que os ciganos tinham feito com ela? Arrumaria reforço e voltaria até o acampamento, fosse como fosse. Sairia com um bando maior na procura. Será que haviam vendido ou matado a pequena? Não, não houve tempo...

          Silas ia revolvendo no que falar para a mãe, que não encontrara a filha dela, mas... surpresa de incauto. A mulher saiu risonha, puxando a menina pela mão. Estava brincando atrás do tapume, ali perto, sem ninguém ver, por isso pensara que havia sido levada.

        Desajeitado, o rapaz mostrou o corpo do destemido-fracassado e as bicicletas recuperadas. Foi difícil arrastar tudo, não podia deixar o companheiro entregue à mata.

         Vieram gabar que o herói matara os ciganos e recuperara os objetos. Acreditavam que fizera um bem. Não havia de temer a lei, ali era o império do mais forte... Tanto que a guarda, se tomou conhecimento, não arriscou nenhuma providência.

         Silas procurou pouso no local. Ficou de atalaia com receio de que outros, do grupo nômade, viessem vingar aquelas mortes. Não conseguia dormir ou ficar de todo desperto: temia o encontro com a verdade e ela era pior que tudo: "Matei gente. Por nada. Certo que eram ladrões... Já não posso mais afirmar que nunca atirei em gente”. Procurava pedaços de si mesmo, ensimesmado. Inútil a cama, ilusório o descanso. Ele desistiu e saiu.  Enterraria os mortos antes da fome das feras.  Morreram por nada, um massacre.
 
    Calado, pensando consigo mesmo, Silas varou a noite escusa. Os faróis o devolveram facilmente ao campo marcado, pesadeloso. Ele estava só, tão desacompanhado e foi cumprindo o que julgava ser a sua tarefa.  Naqueles olhos, que sob os reflexos da lua foram se acostumando à escuridão, não mais havia o esgar da truculência, da maldade ou do escárnio.
A dor funda trazia gestos maquinais. O cheiro da podridão enjoava Silas. Enterrou os três corpos, proferiu algumas palavras. Sentia-se entorpecido, deslocado, mas foi juntando os molambos espalhados. A mala grande, de couro, chamou-lhe atenção. Abriu-a: calças infladas, capa negra, cachecol, boné, óculos de aviador. Transformou a tristeza e a raiva em ação, despiu a sujeira e aparamentou-se com os achados. Parecia que a vestimenta estava à espera dele, confeccionada na medida. Esqueceu-se um pouco do tormento, compenetrado.

      De repente percebeu... olhos de fogo brilhavam, ofuscantes, no profundo da fenda. Susto! O primeiro instinto foi atirar.  Ficou adiando, só para ter uma presença. Nada se movia. Foi se abeirando com cautela e “desengatilho só mesmo se não tiver outro jeito, pode atacar. É bom ter companhia, ainda que se lute com ela”. Foi impacto enorme, a escura mancha cingida por grossa corrente... o cuinchar lamentoso...

      O porco-do-mato parado, olhando. Era desafio ou contemplação? Por que mantido ali, amarrado? Seria caça dos ciganos? "Meu, então. Mala, roupas, presa, despojos da batalha".

         Silas pegou o javali por causa da fome. Mostrava o pedaço de pão e o bicho abocanhava. Migalha por migalha foi (re)criando o animal acossado. E, graças a cada migalha e a cada gota da água foi garantindo percalços e voltas. Levou a mão de mansinho, vibrava um tremor invisível. Alisou os pelos longos, espaçados, sem cheiros de rios e lamas. O Javali se retraiu, mas a natureza agressiva estava esvaída. O âmago vinha sendo alterado... Acontecia um equilíbrio no poder, nascia um vínculo significativo.
 
          Seria possível transformar uma existência? O homem jogou o Taurus no rio. Retornou à cidade, entregou a moto, deu explicações e desconversou. Naquele momento deixava de existir o moleque. Pulmões e cérebro totalmente desanuviados. Os nômades eram gente, e ele seria livre como eles.  Não mais oferecer uma imagem de si mesmo, nem contornos ou coordenadas. Os outros se espantavam daquele novo ser.
 
          “O que um homem faz quando tudo vira de cabeça para baixo?” — a questão era prosseguir... Sempre haveria uma condução, um cumprimento, um abrir de portas, um alerta.  Existir como excrescência, garantir a noite, prover o dia-a-dia.
Silas pegou a mala, puxou o javali pela mesma corrente que o aprisionara no matagal e mergulharam na extensão.  Pervagar...


 
Fheluany Nogueira
Enviado por Fheluany Nogueira em 25/06/2017
Código do texto: T6037029
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