Noel: luxúria (dezembro de 2016)

De longe, em um final de tarde de dezembro, avistou-se ao longe na avenida comercial do bairro um contorno humano que seguia a passos lentos, mas possantes. Era Noel, que morava aos pés do monte Mestre Álvaro. Empurrava seu carrinho para dentro da cidade, onde coletava papelão. Tinha a barba grisalha, grande e farta, e olhos penetrantes azuis.

Imprimia um ritmo constante ao carrinho, movendo-se decidido ao mesmo tempo que resignado. Teve um dia uma égua que puxava carroça, mas a pobre égua morreu. Então passou a empurrar aquele carrinho de rodas grandes de bicicleta acopladas a um caixote grande de madeira que ele mesmo fez. Disso retirava seu pão diário.

Em sua época de ouro, em tempos áureos, transitava pelo bairro de Laranjeiras de charrete com a égua que morreu. Hoje, os carros caros, de marca, ocupam os lugares por onde em outros dias desfilava Noel com sua carroça. Não se fazia de encabulado: enfrentava os carros grandes desviando deles usando apenas a força de seus pés e mãos.

Ainda nos tempos em que a égua era viva, Noel contava com a companhia de sua mulher, que o ajudava a coletar o papelão nos becos onde a carroça não entrava e colocava o papelão na carroça. Mas a mulher morreu de secura. Contraiu um mal fatal de verminose e morreu seca.

Noel não se fazia de rogado. Conhecia bem sua profissão, os lugares certos onde era provável aproveitar papelão, e as pessoas mais afáveis que por isso mesmo não poriam empecilhos para ceder um material que para Noel era tão caro. Neste dia, como em outros da semana, seguia pela rua comercial quando topou com um guarda de trânsito.

O guarda de trânsito, rapaz novinho que não somava a metade da idade do idoso Noel, queria saber quem havia permitido que empurrasse o carrinho ali, na movimentada via pública. Noel respondeu que não fora autorizado a isso por ninguém, mas que fazia seu trabalho por aquelas bandas já havia mais de quarenta anos.

Não houve jeito: o guarda queria que Noel se retirasse da via principal por onde corriam os carros caros dos clientes das lojas – que enchiam o lugar ao meio-dia de terça feira. Era antevéspera de natal e o comércio estava abalroado de pessoas. Por isso, Noel teria que retirar-se dali com seu carrinho de rodas de bicicleta.

Noel soava com o calor que vinha do sol a pino, mas não estava cansado de empurrar o carrinho – o que fazia havia uns cinco anos desde a morte da esposa e da égua. Tentou argumentar com o guarda, esta não era a primeira vez que passava por tal contratempo, mas não houve jeito. Era continuar a via dolorosa por uma rua menor do comércio.

O guarda de trânsito fez acenos, indicando o movimento para uma via paralela, e Noel pôs-se a andar para esta rua. Neste momento um prego se soltou do carrinho de madeira e feriu Noel como se fosse um espinho. Fincou-se no ombro esquerdo do homem lhe infligindo grande sofrimento.

Noel soltou um grunhido e sentiu o sangue a escorrer pelas costas a partir do ombro, mas o ocorrido não foi nada que pudesse sensibilizar o guarda. Ciente de que deveria dar uma volta maior para chegar às cercanias do supermercado, onde geralmente encontrava uma grande oferta de papelão, Noel impôs mais força ao carrinho.

Não conseguia disfarçar no rosto a dor do prego, que lhe havia cravado na forma de um espinho o ombro. De fato, o cenho franzido e a boca aberta de onde escorria saliva exprimia toda dor que sentia. E não era pouca dor, era um suplício que aceitava apenas porque não poder parar no meio do trânsito para resolver o problema.

À sua direita, no caminho, algumas funcionárias de uma floricultura inesperadamente debochavam e riam do velho que arrastava o carrinho como se fosse uma cruz. Essa analogia com Cristo era uma comparação que fazia graça. Mais rápido do que elas, uma criança que acompanhava a cena resolveu pôr em prática sua ideia perversa.

O menino de uns dez anos se apressava para trançar alguns caules de rosas que, murchadas, haviam sido jogadas fora. Trabalhava euforicamente para terminar seu trabalho, antes de perder de vista o homem que arrastava o carro de madeira. Quando terminou de entrelaçar os caules de rosas correu pela rua afora para alcança-lo.

A olhos vistos, o menino colocou-se à frente do homem estranho e depositou em torno de sua cabeça uma coroa de espinhos. O fato não escapou à atenção de ninguém na rua, seguindo-se zombarias e muitas gargalhadas. Noel sentiu a dor dos espinhos encravados na pele sobre a testa, mas concentrou-se na tarefa de chegar até o supermercado.

Dalí ao supermercado eram mais três ruas de comércio; chegando lá certamente seria mais fácil livrar-se do prego nas costas e dos espinhos de rosa em torno da cabeça. A dor era grande, mas maior dor era a dor da vergonha de Noel ao passar pelos transeuntes que faziam suas compras de Natal que reagiam com sarcasmo diante de sua presença.

Impôs ao carrinho um ritmo mais apressado, mas isso de nada adiantava, porque havia ainda que enfrentar o trânsito das ruas vicinais que o levariam finalmente para as pilhas de papelões do supermercado. Procurava focar a atenção em apenas isso, deixando de lado a dor e os contratempos que se enfileiravam nas ruas para vê-lo passar.

Já estava para virar a esquina para encontrar a rua do supermercado quando se interpôs com uma mulher no caminho que parou em frente a Noel. De princípio sorria, o que confundiu um pouco a percepção do velho homem, mas em um gesto rápido a mulher aspergiu vinagre com uma bucha sobre a boca de Noel e fugiu pela rua muito contente.

E finalmente Noel entrou na garagem do supermercado. Seu corpo todo tremia como se sentisse muito frio. Livrou-se do carro, do prego nas costas, da coroa de espinhos e cuspiu vinagre no chão. Abaixou-se para coletar uma pilha de papelão que um funcionário do supermercado havia deixado para ele e suspirou de alívio por estar ali.