Pedro Pedra

Depois de uma longa caminhada por algumas trilhas no sertão de Minas, entrei numa venda de um povoado para descansar. Estava exausto e pedi um café forte e um pedaço de queijo. Era final de uma manhã de primavera, dia de São Judas Tadeu. Percebi que o arraial estava todo enfeitado para receber a festa.

Em pé no balcão, um sujeito falava consigo mesmo. Tentei não olhar para sua direção, mas meus olhos teimosamente se voltavam para ele. Tinha as roupas sujas, os olhos avermelhados, vagos e tristes. O corpo balançava meio bêbado. Seus olhos logo se cruzaram com os meus e resolvi cumprimentá-lo.

O homem acenou com a cabeça, se aproximou cambaleante e sentou na minha frente. Disse que não queria dinheiro, se apresentou como Pedro e me tratou de doutor. Quis saber se eu era da capital. Respondi que sim e falei do meu passeio pelas redondezas. Percebi que ele conhecia bem o lugar. Olhou em volta e sussurrou para mim que não gostava daquela festa para o santo e que, na verdade, ele estava compactuado com o outro. Que era valente e destemido e que tinha matado um homem. E que se fosse preciso mataria outro.

E me contou sua história. Tinha crescido em um lugarejo distante. Quando menino, ainda miúdo, sentia um desassossego, um aperto no peito que passava pela garganta e subia aos olhos. Na infância era carecido de palavras, mas agora estava curado.

Moravam em uma casa afastada, na roça, pequena e desbotada, o pai José, a mãe Conceição, ele e o mal-estar. Sua mãe era muito religiosa, triste, de olhos sempre baixos e alheios, de uma lonjura de dar dó. Seu pai trabalhava na lavoura, tinha muitos amigos e gostava de música. Nos finais de semana, ia para a cidadezinha tocar violão.

Por vezes, o pai saía de casa bem cedo e não voltava para a janta, nem para o sono, deixando a mãe e o menino à espera por dias seguidos, sem notícias, sem saberem do paradeiro do homem. À noite, já deitado em sua cama, Pedro ouvia feliz o pio da coruja quebrar o mar de silêncio. Aquele ruído parecia querer contar coisas que não podiam ser ditas.

Quando o pai voltava, era como se não tivesse ido. A mãe nada perguntava e o pai nada dizia, deixando os cantos da casa carregados de ausências.

Mas Pedro sabia que na cidade era diferente. Por lá crescia o falatório, o disse me disse. Nas esquinas se cochichava sobre S. José, que era metade homem, metade mulher. E na igreja e no mercado se falava muito da amizade dos dois violeiros, S. José e S. Ramiro, das suas maneiras, dos seus sorrisos, olhares e sumiços.

Quando entrou para escola, Pedro manteve distância dos colegas e se fez de invisível. Seus pensamentos estavam fixos no indizível, o que roubava parte de sua alma e pouco sobrava para o aprendizado. Não havia espaço para números, palavras e acontecimentos que não fossem os seus. Não demorou muito para se tornar alvo das caçoadas dos meninos da escola que o apelidavam de diferentes nomes. Um dia o chamaram de Pedro Pedra. E ele se encheu de ódio e cresceu raivoso, doído, quase doido.

Quando o pai morreu, Pedro se viu sozinho com a mãe na casa pobre. A morte do marido deixou a senhora ainda mais contemplativa. Passava os dias rezando, fazendo súplicas, novenas e promessas. Pedro há muito tempo não entrava em uma igreja e procurou distância dela e de suas ladainhas. Nessa ocasião, trabalhava na farmácia e encontrou alívio nos bares e na bebida. Com o corpo cansado e dolorido da labuta e da embriaguez, começou a faltar ao serviço e logo o mandaram embora. A partir daí foi trocando de ofício e de patrão. Trabalhou na construção, na lavoura, na limpeza de cavalos e chiqueiros.

Aconteceu que no final de um dia, voltando apressado do trabalho para casa, pelas bandas do cemitério, ouviu um assobio. Pedro parou, olhou a sua volta e nada avistou. O assobio foi ficando mais alto, um vento forte passou por ele e levantou a poeira da estrada, formando um redemoinho. Parou assustado e ficou à espera. Depois ouviu um grito rouco: Pedro Pedra! Pedro Pedra! Ouviu mais uma, duas, três vezes. A voz foi chegando mais perto, se misturou a sua dor antiga e avermelhou o seu corpo.

Atrás da moita percebeu um vulto que pensou reconhecer. Era o João, o menino que mais o provocava na escola. Pedro viu uma pedra, viu que era grande, pontuda, mas que cabia dentro de sua camisa. Precisava defender o nome do pai, carecia de se vingar do mundo. Avançou cheio de fúria em direção ao rapaz. João se defendeu e os dois rolaram no chão. Pedro sacou a pedra e bateu na cabeça do rapaz. Viu sangue escorrer pela camisa, viu sangue na terra e em suas mãos. Assustado, correu e fugiu para bem longe dali.

Nunca mais voltou para aquelas bandas, nunca mais viu sua mãe e nem teve notícias do antigo colega. Desde então, Pedro corre solto pelo mundo sem fazer morada.

Finalmente, confessou que foi durante o anoitecer, no local próximo a pedra depositada na beira da estrada, na poeira do redemoinho, que se deu o encontro com o inominado e que foi ali mesmo que negociou sua alma em troca de coragem.

A festa religiosa no arraial já havia começado e no interior da venda podia-se ouvir a música e a alegria na rua principal. Olhei mais uma vez para a figura sentada a minha frente e percebi que estava bastante embriagado, quase adormecido.

Me levantei sem pressa, exausto, me despedi em silêncio do contador de histórias e sussurrei que ficasse com Deus.