DUAS VIDAS COM O MESMO DESTINO

DUAS VIDAS COM O MESMO DESTINO

- Mãe, vou dar um rolé ali na praça.

- Já tá tarde, meu filho... Já são quase nove horas da noite... Você ainda é de menor... O que vai fazer lá?

- Nada demais, mãe... Vou só devolver um cd que um amigo me emprestou... Se ele não tiver lá eu volto.

- Por que não o devolve amanhã?

- Porque ele estuda e sai cedo pra escola.

- Tá bem, meu filho, mas não demore não.

- Sim, mãe, eu volto logo.

Marília, mãe de Jorge, estava muito preocupada com o futuro do filho. Com Ana, a outra filha, não se inquietava. Prendada, ajuizada, estudiosa e amável, não lhe dava trabalho. Com dezessete anos, cursava o último ano do segundo grau. Enquanto Jorge, dois anos mais novo que a irmã, achou de interromper os estudos antes de concluir o ensino fundamental, alegando que não tinha paciência pra contar ano de estudo, sentar-se em banco de escola e se tivesse que aprender algo, seria com a prática da vida.

Oriunda de família pobre, seus pais eram trabalhadores rurais, desde cedo que ela os acompanhou nos duros serviços do campo. Sem a iniciativa deles em direcionar os três filhos ao estudo, ela foi se habituando a ficar em casa cuidando dos afazeres domésticos, enquanto os pais iam dar duro na roças que existiam depois da periferia urbana.

Nem ela, nem os dois irmãos estudaram. Cresceram, como se diz, analfabetos de pai e mãe. No início, os dois irmãos iam juntos com os pais ajudá-los nos serviços de campo, às vezes na diária, às vezes na empreita. Quando ficaram adultos, um foi ser ajudante de pedreiro e o outro ajudante de oficina mecânica. Quanto a Marília, a filha caçula, continuou no lar, pra alegria dos pais, porque assim, todos podiam trabalhar despreocupados, enquanto ela cuidava da casa.

O tempo foi passando. Cada um dos irmãos arrumou mulher e saíram de casa. E Marília foi ficando. Apesar de já adulta, era sossegada, não saía pra se divertir, apenas papeava uma vez ou outra, com uma ou outra amiga da vizinhança. Um dia, por muita insistência, uma dessas amigas lhe convenceu de irem a um show musical numa das praças da cidade.

A festa rolava, porém Marília não se sentia à vontade naquele evento ao ar livre abarrotado de gente. Por mais que a amiga tentasse envolvê-la na festa, ela não conseguia desinibir-se. Retraída, não sabia dançar, tampouco era afeita aos prazeres e vícios mundanos. Assim, o único meio de ser ali percebida seria pela sua beleza mulata.

Ela não percebia, mas um rapaz alto e também mulato a olhava há algum tempo. Não tinha o costume de frequentar ambientes assim, com muita gente, muito barulhento, estava ali, mais pra agradar a amiga e não a ela, que só gostava do sossego, da paz, do que sabia fazer no lar. Ali em pé, naquele recanto da praça, só pensava em voltar pra casa, se possível, antes mesmo que a festa acabasse. Pensou em sair dali várias vezes, mas não podia ir sem a amiga. Seria indelicado de sua parte.

Distraída em suas ideias confusas, levou um grande susto quando o rapaz que a olhava, lhe indagou:

- Quer dançar comigo?

Ela não queria dançar nem conhecer ninguém. Encabulada (e não podia ser diferente), elevou o olhar tímido e fixou-o naquele rapaz alto, vistoso, de ar risonho em sua frente, tão perto dela, que lhe podia sentir a respiração ofegante, o cheiro agradável do seu hálito, e, pela primeira vez, sentiu o coração acelerar, as pernas tremerem, o semblante ruborizar, pela paixão que lhe brotava no íntimo. Foi quase num sussurro, que ela lhe respondeu:

- Não sei dançar.

Mesmo sem saber dançar, sem quase falar, sem ficar à vontade, ficaram juntos durante toda a festa e Marília se entregou aquela paixão repentina arrebatadora como jamais tinha sentido por um homem. Apesar dos seus vinte e cinco anos, ainda era virgem e imatura na arte de namorar, de se apaixonar, de amar. Nunca namorou alguém. Só sabia que sentia algo bom, prazeroso, que lhe vinha do íntimo, por aquele homem, que até bem pouco tempo, lhe era um desconhecido.

E foi assim, que, mesmo sem ela querer ir, por timidez ou temendo algo que lhe pudesse ocorrer, uma vez que, só ele ia em sua casa pra namorá-la de modo discreto, lhe convenceu de ir na casa dele, que ficava no bairro periférico vizinho ao que ela morava. Aldo (este era o seu nome), morava sozinho numa pequena casa alugada. Tinha pais e irmãos, mas moravam em outra cidade. Era camelô e vendia alguns produtos em um boxe no shopping popular.

Sem saber por que, Marília se sentiu mais à vontade ali na casa de Aldo. Fora de sua casa, somente ela e o namorado, uma estranha liberdade lhe percorreu a imaginação. E Aldo não perdeu tempo. Ansioso em possuí-la, tomou-a pra si e sentiu-lhe o corpo trêmulo do desejo que a excitava sexualmente. Foi o suficiente pra ela dar-se de corpo e alma. Pra ela dar a ele, o que não tinha dado a nenhum outro homem. E os dois se amaram loucamente naquela noite tão especial em suas vidas afetivas.

Marília se entusiasmou com o namoro e passou a ir com frequência na casa de Aldo. Cumpria com as suas obrigações domésticas na casa dos pais e depois, de tardinha, quando Aldo não vinha pegá-la de moto, ela ia sozinha pra casa dele. Estava feliz com a nova vida que levava. Seus pais aprovavam seu namoro. Achavam que o moço era bom e responsável. Não tinha vícios e a tratava bem. O que não ficava bem, lhes dizia, era dormir todas as noites com ele sem está casada.

Mas Marília não se importava com isso. Ficou muito tempo sozinha sem conhecer nenhum homem. E quando conheceu Aldo, a ele se entregou por amor. Não lhe foi exigente no compromisso afetivo. Ele, por sua vez, lhe correspondia com o seu amor. Por isso, na prática, já se sentia casada. Com um ano de convivência, Marília engravidou e pariu a primeira filha do casal.

Depois do resguardo na casa dos pais, Marília se mudou de verdade pra casa de Aldo, afinal, eles tinham construído uma família com o nascimento da primogênita. Dois anos após, nasceu o segundo filho do casal. Tudo ia bem com a família de poucos recursos materiais. Havia um afeto saudável entre eles. Aldo era atencioso, carinhoso, cumpridor dos seus deveres pra ganhar o pão de cada dia. Ele também não tinha estudo e ganhava a vida do jeito que podia. Resolveu ser camelô porque achou que tinha jeito pra vender pequenos produtos variados. Já Marília, continuou sendo dona de casa. Era o que sabia e gostava de fazer. Sempre pensou em ter um marido, filhos e um lar pra cuidar. Se sentia bem na casa dos pais cuidando deles. Mas sabia que um dia, a força das coisas lhe possibilitaria ter a própria família.

Sem escolaridade, sem maiores meios econômicos de sobrevivência, contudo, ela aprendeu com os pais o que falta a muita gente nesse mundo: a honestidade, a humildade, a bondade, o jeito simples de viver. E era com essas qualidades na consciência, herdadas dos pais e do seu espírito virtuoso, que ela seria feliz, aplicando-as no dia-dia da nova família constituída.

A vida é feita de fatos. Cada um vai construindo a sua história. Da prevalência do bom ou mau uso do livre-arbítrio nas ações, depende o êxito ou o fracasso dos objetivos traçados pelas pessoas. Marília não tinha ambições materiais. Nunca pensou em ser mais do que uma dona de casa. Não exigia do marido, mais do que ele ganhava pro sustento da família. Lhe dizia apenas que não queria que os filhos crescessem sem estudo. Pensando da mesma forma, Aldo, que também não tinha estudo, se interessou em direcionar o casal de filhos à escola.

Ana, a filha mais velha, desde o início teve pendor pra gostar de estudar. Educada, aplicada, pouco brincava. Já Jorge, o filho caçula, era relapso, brincalhão e intrigante. Aldo saía cedo pra atuar em seu ofício. Dava um pulo rápido em casa pra almoçar. Depois, retornava ao serviço e só voltava pra casa quase às escuras. Se acostumou a chegar e encontrar as crianças limpas e arrumadas, o café e a janta feitos, a mesa posta, a casa limpa e Marília à espera dele, asseada, linda e cheirosa. Ele gostava disso. Do modo como a esposa procedia no lar. Então, sem fugir à regra doméstica, banhava-se, trocava de roupa, se perfumava e desfrutava na sala da companhia dos filhos, enquanto Marília colocava na mesa o que a família reunida e feliz ia nutrir-se.

Feita a refeição noturna, se reuniam na sala por algum tempo, depois Marília preparava as crianças pra dormirem e voltava pra junto de Aldo. Conversavam sobre alguns assuntos do cotidiano, traçavam planos pessoais, até chegar o momento deles também se recolherem pra dormir.

Nada parecia alterar a rotina da família, a não ser a decisão inesperada de Aldo em mudar-se pra outra casa que tinha comprado no bairro vizinho. Tamanha surpresa foi ele também comprar novos móveis pro novo lar. Marília estranhou tudo aquilo. Se sentia bem onde morava, apesar da casa pequena, de poucos cômodos. Mais estranho ainda foi ele não ter-lhe dito nada acerca daquela repentina decisão. Mesmo gostando de mudar-se pra uma casa própria, lhe exigiu explicação, uma vez que, pelas condições em que viviam, não dava pra juntar dinheiro a ponto de comprar um imóvel tampouco mobiliá-lo.

Aldo lhe disse que durante todo esse tempo havia feito umas economias com muito esforço, depositando-as na caderneta de poupança. Tinha momentos que se apertava e retirava um pouco pras despesas domésticas, mas depois, quando as coisas melhoravam ele repunha o que tinha retirado. Até aquele momento, o que tinha guardado realmente não dava pra comprar a casa nem os móveis. Só que, como tinha o hábito de jogar no bicho repetindo sempre o mesmo milhar, a sorte, enfim, lembrou-se dele. Como tinha o plano de comprar a casa própria, só fez juntar com o que tinha guardado, sobrando, inclusive, pra compra dos novos móveis à nova morada.

Convencida da justificativa de Aldo, Marília, no entanto, não entendeu porque lhe omitiu sobre o dinheiro que guardava na poupança. Ela achava que não tinham segredos relativos à vida do casal. Não custava nada dizer-lhe, afinal, era por uma boa causa. Quanto à quantia ganha no jogo do bicho, não se sabe quando a sorte será favorável a quem joga.

Desde que conheceu Aldo, que Marília gostou do seu jeito de ser. Foi a sua primeira paixão, o seu primeiro amor. Na verdade, ela não tinha motivos pra desconfiar do seu caráter. Só pedia a Deus em suas orações que ele continuasse assim: um homem honesto, fiel, atencioso, responsável e amoroso com ela e os filhos. Os dias, os meses foram passando. A nova casa era ampla e arejada. As crianças tinham espaço pra brincar, tanto na varanda quanto no quintal. E Marília pensava: " um pouco de conforto material, contanto que fosse adquirido de modo honesto, seria aceito por ela naturalmente ". Por isso, ficou alegre, satisfeita com o novo rumo de suas vidas mediante a bênção e proteção de Deus.

Como nem tudo nesse mundo são flores, aliás, são mais espinhos do que flores, quando se trata das ações humanas, após um dado período de ascensão material, serenidade e equilíbrio afetivo em suas vidas, Marília começou a conflitar com Aldo, quando descobriu que ele não devolveu ao proprietário, a casa alugada. Desta vez, a explicação de que precisava de um local pra estocar os produtos que vendia no boxe, não a convenceu, uma vez que, a casa que adquiriu tinha cômodo vazio que podia muito bem ser usado pra esta finalidade. Além disso, ele passou a ir na casa todas as noites, e lá permanecia por três, quatro, cinco horas de relógio. Às vezes quando ele retornava de lá, ela já estava dormindo, e no outro dia lhe enchia de perguntas, por sua vez, sempre mau respondidas, alegando que não se preocupasse, que apenas vigiava a grande quantidade de produtos que lá guardava.

Sem crer mais no marido e desconfiada do que realmente ocorria por trás daquelas frequentes saídas noturnas, lhe passou pela mente somente a ideia dele ter uma possível amante, e se fosse verdade esta suspeita, saberia naquela noite, pois tomou a decisão de ir lá verificar. Por conta destas saídas, ele nem mais a procurava como de costume. Ela também não podia ficar até de madrugada lhe esperando pra cumprir as suas obrigações de esposo, pelo motivo sem cabimento de se ausentar todas as noites por várias horas só pra vigiar supostos produtos guardados na casa. Não. Algo estranho ocorria. E ela certamente saberia naquela noite.

De dia, Aldo trabalhava normalmente. A sua rotina mudava só de noite, depois que ele jantava e ficava um pouco com a família. Como de hábito, beijava os filhos, a esposa e saía, dizendo que voltaria logo. Nem precisava dizer aonde ia. Todos ali já sabiam o motivo de sua saída descabida. Marília ficou com os filhos por algum tempo. Estava ansiosa pra ir na casa que morou e que gostou de ter morado lá. Mas a partir daquela situação desagradável estabelecida entre ela e o marido, a tal casa agora, lhe parecia mais um local mal-assombrado do que o antigo lar que ela guardava no íntimo, tão boas lembranças.

Após ter colocado os filhos pra dormir, se agasalhou e saiu. Tinha pressa em chegar na casa. Embora não fosse inverno, a noite estava fresca e mesmo andando apressada, sentia no rosto a aragem com cheiro de flores primaveris. Não dava pra ser otimista naquele momento, mas mesmo assim, Marília recapitulava a sua vida com Aldo, desde o momento que o conheceu na festa, depois de ter aceito o convite da amiga. Ela saiu da rotina de vida com os pais para gerar a sua própria família. Não tinha se arrependido. Ainda amava o marido, que lhe deu filhos e um lar pra cuidar. Que mais ela podia querer, além disso? Que mais se pode querer, pelo jeito simples de viver, além de uma família unida e feliz? Somente a continuidade dessa felicidade dada por Deus e pela boa vontade dos que se unem por edificantes laços afetivos, ela pensava.

À medida que andava, os seus pensamentos se alternavam entre bons e ruins. A fase era mais de dor do que de alívio. Quanto mais orava, mais o pessimismo lhe predominava na consciência aflita. Abstraída e inquieta, respondia num murmúrio um ou outro conhecido que lhe saudava. Se assustou quando um gato angorá preto pulou do muro de uma residência e passou rápido em sua frente. Deduziu que fosse um mau agouro a sua funesta presença. Se benzeu três vezes e apressou os passos. Enfim, chegou na divisa do bairro aonde morou alguns anos.

A intuição lhe dizia que algo de ruim estava prestes a ocorrer ou já tinha ocorrido. Só não sabia o quê. Rezava que não fosse nada vinculado ao que lhe trazia ali naquela noite atípica em sua vida. Atravessou a praça do bairro, andou mais um pouco e antes de chegar na rua da casa onde morou, viu intensa movimentação de pessoas em suas imediações. Sentiu o coração bater mais forte. Ao entrar na rua, viu justamente na frente da casa muita gente e vários carros da polícia ali parados.

Marília não acreditava no que via. Trêmula e chorosa ante a grave situação imprevista, se aproximou de um policial e lhe perguntou:

- Senhor, o que ocorreu aqui?

- Por que a pergunta, senhora?

- O que faz toda esta gente aqui na frente desta casa?

-Tem um homem morto aí dentro. A senhora é parente dele?

- Depende de quem seja - disse-lhe, quase certa de que era o seu marido.

- Temos informações preliminares de que o nome dele é Aldo.

- Sim, senhor, ele é meu marido.

Ao confirmar o parentesco, Marília viu o mundo rodar. Uma fraqueza, uma forte vertigem a fez cair desmaiada. Uma multidão se aglomerou em volta dela. Alguns a reconheceu, dizendo tratar-se da esposa do falecido. Instantes após, Marília recobrou os sentidos. Alguém colocou uma cadeira no passeio e lhe ajudou a sentar-se. Um pouco refeita daquele infortúnio em sua família, respondeu com lágrimas nos olhos, a pergunta do policial:

- A senhora sabia que o seu marido estava comandando o tráfico aqui no bairro e pelas cercanias?

- Não, senhor. Morávamos aqui nesta casa. Depois ele comprou uma casa no bairro vizinho. Mudamos pra lá. Pensei que ele tivesse a devolvido ao proprietário. Só quando ele começou a sair com frequência de noite, percebi que havia algo de errado. Então ele me disse que continuava com a casa alugada, porque precisava de um local pra guardar os produtos que comprava pra revender no boxe no shopping popular. Eu desconfiei porque ele não fazia mais outra coisa de noite a não ser isso. Por mais que ele tivesse que vigiar os produtos temeroso de serem roubados, não havia motivo pra tanta preocupação, até porque, ele podia guardá-los num dos cômodos vazios da casa comprada. Depois que mudamos pra lá, não tinha mais nenhum motivo pra vim na casa que morei de aluguel, apesar de guardar boas recordações dela. Só vim mesmo, porque achava que o meu marido estava mentindo. Eu esperava outra coisa, como por exemplo, encontrá-lo com uma amante. E quando aqui chego, me deparo com esta tragédia. Me enganei. O fato era muito mais grave do que imaginava.

- Senhora, o seu marido era um traficante perigoso. A polícia já vinha em seu encalço há bastante tempo. Ele traficava em outra região e era conhecido como " Camelô". O serviço de camelô que ele exercia aqui, era um disfarce pra continuar traficando sorrateiramente. Segundo denúncia anônima, esta casa virou uma boca de fumo, um forte ponto de armazenamento e distribuição de drogas. Vinhemos esta noite na certeza de encontrá-lo e levá-lo preso. Fechamos todas as entradas do bairro. Quando nos aproximamos da casa, fomos recebidos a tiros por quem nela estava. Não sabíamos distinguir o usuário do bandido. Prendemos muita gente que tentava fugir. De dentro da casa, continuamos a ser alvejados. Respondemos com novas rajadas. De repente, um instante de silêncio predominou. Quando arrombamos a porta, nos deparamos com um homem crivado de bala estirado no meio da sala. Ele lhe enganou de tudo a tudo. A senhora convivia com um bandido incorrigível, infelizmente.

Depois de ter ouvido do policial o que se passou, Marília não sabia o que dizer, apenas lamentou profundamente toda aquela tragédia ocorrida em sua família. Jamais poderia imaginar que algo de tão desastroso, de infame pudesse acontecer no seio da família que ela ajudou a construir com tanto amor, carinho e dedicação. Ela pensava que conhecia Aldo, mas na verdade não o conhecia. Tanto que conviveu durante alguns anos com um bandido disfarçado de um cidadão de bem. Ah, se pudesse voltar o tempo. Ah, se pudesse não passar pelo que estava passando. Como dizer aos filhos, quem realmente era o pai deles? Certamente uma dor muito difícil de ser curada e que só o tempo se encarregaria disso. Poucos dias após o sepultamento de Aldo, os policiais pediram permissão a Marília pra adentrar em sua casa, supondo acharem alguma droga, explicando-lhe tratar-se de tarefa rotineira que poderia implicá-la ou não como cúmplice do marido falecido. Felizmente não encontraram nada e deram o caso por encerrado.

Dez anos se passaram após a morte de Aldo. Para Marília, a morte era como um sonho ruim, um pesadelo que, mesmo acordada, parecia atormentá-la em alguns momentos de seu descanso, quando via-o circulando na casa, brincando com as crianças, chegando e saindo pro serviço. Via-o também no semblante dos filhos, mais do caçula, sem dúvida, a sua cópia. O casal de filhos, que agora, eram adolescentes. Por fim, nela própria, através das boas lembranças que guardou do falecido.

No início, ela pensou em vender a casa e comprar outra em alguma cidade próxima dali. Mas depois desistiu. Não adiantava fugir dos fatos que tinham ocorrido. Aonde quer que fosse, de vez em quando ela estaria lembrando com um pouco de angústia no coração, daquela fatídica noite. Durante todo esse tempo ninguém a importunou por ter sido mulher de um traficante. Ainda bem que, nem ela nem os filhos foram discriminados. Se bem que, uma vez ou outra, alguém a olhava de esguelha, mas não se atrevia a falar sobre o que ocorreu.

Um ano após a morte de Aldo, foi que ela teve ânimo pra remexer em alguns papéis guardados. Não eram muitos. Assim, percebeu um documento que deduziu ser a escritura da casa. Como tinha muito pouca leitura, levou-a no cartório de registro de imóveis da cidade. Lá ficou sabendo pela escritura, que a casa tinha sido comprada, quitada e registrada em nome de Aldo, além de uma cláusula especificando que, por morte dele, ela e os filhos seriam os legítimos herdeiros do imóvel. Pelo menos, ele deixou um teto próprio pra família morar. Se foi fruto do tráfico ou não, ela não carregava nenhuma culpa, porque não sabia que ele traficava, pensou.

Marília ficou com os filhos pequenos. Não sabia fazer nada, além de cuidar de casa. Como sobreviver dali pra frente? Então resolveu ser empregada doméstica. Teve a sorte de encontrar uma família com bons recursos econômicos, acolhendo-a com generosidade depois dela ter explicado sobre o seu passado até a morte do marido. Com esse emprego de carteira assinada, aliado à sua boa conduta pessoal e os seus bons serviços profissionais, vinha garantindo o sustento dela e dos filhos.

Saía cedo e só voltava do serviço depois das quatro horas da tarde. A filha ia pra escola de manhã. E o filho ficava em casa. Só tinha tempo de ficar com eles no fim de semana. Ana lhe transmitia paz. Se parecia muito com ela, no jeito de ser. E Jorge, intranquilidade. Se parecia muito com o jeito de ser do pai. Enquanto Ana tinha prazer em estudar, Jorge não queria saber de estudo. Matriculou-o várias vezes na escola. Só queria saber de brincar e brigar com os colegas. Jamais prestou a devida atenção às aulas. Abandonou de vez a escola ainda na pré-adolescência.

Quando Aldo morreu ela não disse a eles o que motivou a sua morte. Ou melhor, inventou que ele estava na casa quando foi surpreendido por um ladrão indo ali pra roubar o que nela encontrasse. Não se sabe como, o ladrão entrou na casa, e quando o viu, se assustou, disparando vários tiros e fugindo em seguida. Achou que se dissesse o real motivo, o dano, a decepção seria maior em relação à boa imagem que eles tinham do pai. Na verdade, ela nunca teve coragem de dizer-lhes o que realmente causou o seu assassinato.

Às vezes ela chegava do serviço e não o via em casa, só a filha. Achava que o filho ainda de menor, de repente, ficava mais tempo na rua do que em casa. Isso a preocupava muito, temendo que ele seguisse, como o pai, pelo caminho ruim das drogas. Sabia que quando alguém opta por esse terrível vício, é um caminho quase sem volta à vida construtiva. Mas como evitar que ocorra com o filho, o que ocorreu com o pai no passado? Esta era a pergunta por enquanto sem resposta que martelava na consciência de Marília.

Ela não podia parar de trabalhar pra vigiá-lo, ficar mais perto dele, orientá-lo como mãe. Precisava sobreviver pra pagar as contas e o único meio de sustento da família era o seu emprego. Não ia à igreja com frequência, mas não deixava de fazer em casa as suas orações. Pedia proteção a Deus, sobretudo, para que o afastasse dos maus caminhos, das más companhias. Jorge não queria estudar, não queria se ocupar com algo útil que lhe desse uma boa direção de vida. Pelo visto, só queria malandrar.

A cidade cresceu. Cresceu também o bairro que Marília morava. Novas bocas de fumo surgiam juntando-se às já existentes. E a população se intranquilizava cada vez mais. A cada novo instante uma família chorava, lamentando a perda de um filho, vítima das drogas, um dos principais males destruidores da sociedade contemporânea.

Marília se preocupava, se desesperava. Temia que o pior também ocorresse com o seu filho. O tempo ia passando e Jorge não parava mais em casa. Não mais a obedecia. Às vezes sumia por um, dois dias. E quando chegava, mostrava uma aparência física de autonomia econômica. Sem um bom emprego, não podia se vestir tão bem, ter roupa, tênis, relógio pulseira, colar tão caros. Marília não acreditava no que via, mas entendia que o mal desastroso das drogas voltou a fazer parte de sua família, através do filho.

Com o tempo, ela deixou de ter sonhos ruins vinculados à morte de Aldo. Mas poucas horas após acordar naquela manhã de domingo, lembrou-se de terríveis imagens oníricas causando-lhe arrepios por todo o corpo. Desta vez, não era Aldo que via morto dentro da casa, porém, o filho morto no meio da praça do bairro, cercado por uma imensa multidão. Seria o sonho um aviso de que a morte rondava de novo a família?

Uma forte angústia se apoderou de seu coração, de sua alma. De imediato entrou no quarto de Jorge e não o viu dormindo. Como desejou que naquele momento ele estivesse ali! Sentou-se na cama do filho tocando-a com as mãos. Puxou o travesseiro a si e abraçou-o como se abraçasse o filho caçula. Algumas lágrimas foram fluindo em seu rosto marcado pela existência sofrida. Haviam dois dias que Jorge não pisava o pé em casa.

Ela ajoelhou-se diante de sua cama e começou a orar. Pedia a Deus proteção à sua vida. Pedia-lhe que o filho não tivesse o mesmo destino do pai. Pedia-lhe que não a deixasse passar por mais aquela dura prova. Após benzer-se, Marília levantou-se e entrou no quarto de Ana. Ficou ali contemplando-a dormindo num sono profundo. Era domingo e ela precisava descansar de seus afazeres estudantis. Também na ausência dela, pela tarde, a filha era quem cuidava da casa durante a semana. Um primor de filha. Dedicada, responsável, de boa índole. E se perguntava: por que Jorge não era como ela, por que desde cedo não revelou um bom caráter? Sabia que o bem e o mal faziam parte das pessoas no mundo. Que o mal ainda predominava na maioria. E que apenas uma minoria se ocupava em combatê-lo com os bons propósitos do bem.

Naquela meditação, Marília entendeu que tinha o bem e o mal em seu lar. Primeiro com ela e o marido. Depois com os filhos. Lamentou que tanto Aldo como Jorge tinham mais pendor ao mal. E que o bem fazia parte das ações diárias dela e de Ana. Mas o filho estava vivo, apesar do aviso de sua morte no sonho. Assim, ela tinha esperança de que Deus e o bom senso do filho pudesse transformá-lo pra melhor.

Um tanto refeita daqueles maus instantes, ela saiu do quarto de Ana com um ligeiro sorriso no rosto. Mais disposta, cuidou um pouco da casa até deixar pronto o almoço. Ana ainda dormia. O sonho ruim não lhe saía da cabeça. Deixou-lhe um bilhete avisando de que ia sair mas não demorava. Pretendia sair no intuito de encontrar Jorge em algum canto pelas cercanias, ou até mesmo na praça do bairro. Lembrou-se da noite do assassinato de Aldo, de como ela andava depressa pressentindo algo de ruim. Levou algumas horas andando pelas redondezas, indagando as pessoas se o tinham visto. Achava estranho o fato de ninguém dar notícia dele. Tinha a impressão de que o filho já vivia à margem do meio social bom, saudável, construtivo. À medida que andava, as imagens do sonho ruim se tornavam mais vivas e presentes em sua consciência de mãe preocupada com o possível fim trágico do filho.

Andou, andou, andou, sem encontrá-lo. Estava cansada. Andou quase a tarde inteira à procura do filho. Recostou-se um pouco no muro de uma residência. Um homem passou em sua frente vendendo água mineral. Ela comprou uma garrafa pra saciar a sede. Amenizou o cansanço, mas o seu corpo lhe doía da cabeça aos pés. Não era uma dor só física, era também psíquica, uma dor profundamente espiritual.

Ao longe, o ocaso do sol mostrava o fim da tarde. Olhando o horizonte, lhe pareceu que não era só o fim de mais um dia. Pressentia da mesma forma, o fim de algumas coisas, como o fim de seu marido há dez anos atrás, ou o fim de seu filho, que trilhava pelo mesmo mau caminho. Foi com o coração acelerado e a alma dorida que Marília resolveu voltar pra casa, não sem antes, passar pela praça do bairro, como se fosse a última esperança de encontrá-lo vivo, ou então, infelizmente, morto.

Já era noite quando ela chegou na praça. Como há dez anos atrás, viu vários carros de polícia estacionados em seu redor. Uma imensa multidão se aglomerava bem no centro dela. Vários policiais tentavam dispersar as pessoas. Marília não queria ver quem estava ali morto. Via naquele momento da vida real as mesmas imagens sinistras do sonho. Criou coragem e pediu licença às pessoas pra ver quem estava ali já sem vida. Ao ver Jorge, se jogou em cima dele aos gritos:

- Meu filho! Meu filho! É você, meu filho! Por que você tinha que se acabar assim do mesmo jeito que seu pai?

- Ó Deus! Acode meu filho! Ele ainda está vivo. Ele vai se recuperar. Acode, gente, acode meu filho!

- Por que, meu Deus, não lhe contei a verdade sobre como seu pai morreu? Por que, por que, me faltou coragem durante todo esse tempo? Se tivesse lhe contado, talvez você não tivesse o mesmo fim. Como suportar a repetição desta tragédia em minha família?

Descontrolada, Marília continuava gritando e falando ao mesmo tempo ao lado do corpo do filho. Depois, silenciou por alguns instantes e começou a chorar convulsivamente. Um policial se aproximou dela e a fez afastar-se do filho morto. Levou-a pra sentar-se num dos bancos da praça, e falou, tentando consolá-la:

- Senhora, não queira culpar-se pela morte do seu filho. Os pais só querem o bem deles. Fazem tudo que estão ao seu alcance quando lhes dão o melhor em apoio moral. Se mais não dão, é porque não podem lhes dar. O meio social está contagiado mais do mal do que do bem. Enfim, enquanto o mal prevalecer no mundo, haverá muito sofrimento. Mas em algum dia no glorioso porvir, o bem triunfará, em quem o absorver e o semear. E o mundo, regenerado moralmente, será melhor em tudo.

Enquanto o policial a confortava, Marília olhava com profunda tristeza os homens colocando o corpo de Jorge no rabecão. Revia ali, a mesma cena funérea ocorrida com o pai dele. Depois, com lágrimas nos olhos, fitou, não o policial da lei, mas o homem bondoso que a amparava naquele momento doloroso, dizendo-lhe:

- Senhor, me dói muito saber que o meu filho teve o mesmo fim trágico que o seu pai. Me dói saber que não fui uma mãe capaz de lhe contar a verdade de como o pai dele morreu. Sei que me faltou coragem. Também não sei se foi bom ou ruim não ter-lhe contado. Via-o crescendo e ficando cada vez mais parecido com ele. Tive medo, muito medo. Acho que foi por isso que não lhe contei. Sinto por não tê-lo protegido mais. Só que tem coisas que fazemos até onde podemos fazer, por isso elas fogem do nosso controle quando se trata do outro, mesmo sendo da mesma família. Quando me envolvi com o pai dele, não sabia que era traficante, e quando soube já foi tarde. Quanto ao meu filho, me preocupava muito que ele pudesse seguir pelo mesmo caminho, não que ele soubesse do pai, mas por sua própria índole ruim e pelo meio social que contagia as pessoas, a juventude do mal. Não sei por que, mas têm coisas que não podemos evitar que aconteçam. A força das coisas age, tanto no bem como no mal. A vida é feita de fatos bons e ruins. Aprendemos com os erros e acertos. Existem bons e maus espíritos. O mundo ainda é mau. Mas haverá de ser bom. Tenho ainda Ana, a minha filha mais velha. A família diminuiu, mas ainda não acabou. Estamos passando por duras provas, mas seguiremos em frente, certamente de um jeito mais edificante. Deus há-de estar sempre em todos nós. E nós, de uma forma ou de outra, nos movendo em Deus.

O policial ouviu-a e sentiu-lhe está mais fortalecida. Então, se despediu dela.

A multidão havia se dispersado. Alguns casais de namorados já se enlaçavam sobre os bancos da praça. Nada agora, parecia ali lembrar o trágico fim de mais uma vida vitimada pelas drogas, a não ser alguns vestígios de sangue no chão do corpo de Jorge, cujo espírito já havia partido pro outro lado da vida.

Marília ainda ficou ali por alguns instantes, desolada e mergulhada em amargas lembranças de vida. Uma vida que ela sabia não está tão preparada para enfrentar dali pra frente, mas reuniria forças diárias, tanto físicas quanto espirituais, para aprender a conviver com a dor, pelas mortes prematuras do marido e do filho, duas vidas com o mesmo destino.

Escritor Adilson Fontoura

e-mail: adilsonfontoura9@gmail.com

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Adilson Fontoura
Enviado por Adilson Fontoura em 22/02/2017
Reeditado em 24/02/2017
Código do texto: T5920866
Classificação de conteúdo: seguro
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