Metahistória

Era uma vez... e o livro se abriu. Não foi escolhido nem pela capa, nem pelo título. Estava na prateleira, e caiu. Os personagens, lá dentro, descritos em palavras, aprisionados pelas páginas, começaram a trabalhar juntos para fazer as páginas – uma a uma – virarem e a história acontecer. Não era uma leitura comum; os leitores eram os próprios personagens e, se estes parassem de virar as páginas, a história iria estagnar. Provavelmente seria esquecida e enfim alguém o encontraria e devolveria à prateleira. Os personagens, aprisionados para sempre. O acaso não costuma se repetir.

Mas nem todos os personagens estavam interessados na história; alguns revoltavam-se por não serem eles os principais. Prefeririam sacrificar-se junto à história do que deixá-la fluir. E cada virada de página dependia dos personagens envolvidos nas proximidades; os antecessores puxando, sucessores empurrando e o meio se deixando levar. Trabalho de equipe. Rebeldes deixavam a tarefa profundamente mais árdua. Rebeldes sozinhos eram o maior risco para a história.

E enquanto as opiniões dos personagens secundários variavam entre rebeldia, indiferença e – felizmente – apoio à causa, os principais ansiavam pelo desenrolar de suas vidas. Cada nova página era uma nova emoção, o desvendar do suspense que fora deixado algumas folhas atrás, um novo conflito, um milhão de descobertas. Os intervalos proporcionados pelos trechos secundários eram meras pausas que intensificavam o ritmo em que batiam seus corações.

A maior aventura de suas vidas: fazer sua história acontecer. Juntos, motivar todo o elenco a trabalhar unido. Afinal, este livro não só unia a todos, mas era sua razão de viver. Tentavam lembrá-los de que mesmo o menor dos papéis era – a seu modo – fundamental e que deixar tudo isso morrer desperdiçaria os esforços despendidos até agora, sendo o grande alvo chegar ao final.

Era curioso como a própria história interferia no processo de trabalhar em equipe, e vice-versa. E, com o tempo, aqueles que antes seriam os mais interessados em continuar essa história tornaram-se se os maiores alvos de preocupação. Não havia nada pior do que um conjunto de páginas preenchidas por longos diálogos entre os personagens principais. Aliás, longos silêncios, às vezes, sem o menor clima de cooperarem para virar mais uma página.

Mas o desenrolar da história intensificava as relações entre os demais personagens. Tanto que certa vez estes estavam algumas folhas distantes da página atual, e, ainda assim, unidos e motivados, conseguiram avançar alguns capítulos – deixando para trás um momento de muita tensão no qual o livro ficara aberto por um tempo longo demais. Preocupados, porém, os personagens discutiam como evitar que isso se repetisse. Parecia tão errado deixar tudo morrer agora que quase todos encontravam-se empolgados. Não achavam justo que a história pela qual aqueles dois principais tanto haviam lutado acabasse os separando e, assim, encerrasse a vida de todos.

Quando finalmente convenciam um deles a continuar, o outro estava tão distante que parecia fazer parte de outro livro. E quando este finalmente mudava de ideia, o primeiro estava cansado demais, pois por muitas páginas tivera de lutar sozinho. E assim oscilavam eles. E a história, entre devagar e parada.

Até que perceberam, os principais, que não precisavam seguir a história para viver. Os momentos de discórdia narrados poderiam ser apenas encenados; sabiam que aquilo tudo ia passar e não tinha porque manter um clima ruim entre eles, se, afinal, sabiam muito bem que tudo era mais divertido quando estavam de bem. Virar as páginas tornou-se sua aventura, e não mais as narrações nelas descritas. O livro tornou-se mero pretexto para conviverem.

No entanto, não contaram a ninguém. Ficariam confusos, a história não faria sentido. Os demais personagens ansiavam por descobrir como seriam as útlimas páginas do livro. Eles confiavam na história e ela bastava para eles. Mas não mais para os principais. Pouco lhes imporatava aquele final predeterminado. O que realmente lhes motivava eram os breves momentos livres, aqueles em que sua tarefa era cooperar para virar as páginas. Ali, quando não haviam falas prontas.

Já sabiam que o livro iria acabar. Não queriam um “felizes para sempre”. Só queriam um dia depois do outro; queriam páginas em branco para criar suas próprias aventuras. Até gostariam de levar consigo alguns outros personagens. Sabiam que lhes fariam falta. Mas não é fácil viver sem um roteiro e são poucos aqueles capazes de escrever sua própria história.

Dancker
Enviado por Dancker em 19/03/2016
Reeditado em 19/03/2016
Código do texto: T5578138
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