Voraz

Em certo fim de tarde, prosseguindo na sua jornada pela estrada que levava à Towada, Isamu viu uma figura decrépita que vinha caminhando em sentido contrário, segurando uma kura-andon (lanterna de armazém) apagada. Poderia ser apenas um velho monge, mas algo no vulto cinzento despertou a sua desconfiança. A floresta ali começava a rarear, mas o vulto surgira especificamente sob um grupo de faias escuras e retorcidas, como se estivesse emboscado. Mas se estava escondido, porque desperdiçaria o elemento surpresa mostrando-se?

- Quem vem lá? - Exclamou Isamu, desembainhando a ninja-to que trazia atravessada no cinto. O vulto não respondeu e continuou a avançar a passos lentos. Quando estava a cerca de dez metros de distância, Isamu percebeu o perigo em que se encontrava.

A criatura não era um monge, embora parecesse um à distância. Usava um quimono cinzento e sujo, cheio de nódoas amarronzadas, e as partes visíveis de seu corpo, braços, mãos, cabeça, eram cobertas por pelos cinzentos, como os de um rato. O topo da cabeça, que mantinha baixa, era raspado. E quando ergueu os olhos para encará-lo, Isamu viu que eles eram enormes e amarelos, como os de um gato - e a criatura era vesga.

- Mikoshi-nyudo... - murmurou Isamu, parando no meio da estrada, espada em posição defensiva.

A criatura começou a abrir a boca, num arremedo de sorriso, emitindo um som gorgolejante. A boca também era desproporcionalmente grande e eriçada de dentes pontiagudos. E, para horror de Isamu, à medida em que se aproximava, seu pescoço começou a esticar para cima, como o de uma girafa, a cabeça oscilando como um pêndulo na ponta. Imediatamente, Isamu desviou o olhar da cabeça e deixou que sua vista baixasse, até os pés da entidade. Só então exclamou:

- Mikoshita!

Ouviu-se um estouro e um cheiro fétido encheu o ar. Quando Isamu tornou a erguer a cabeça, o mikoshi-nyudo havia desaparecido. No chão, restou a kura-andon, que era feita de ferro e arame. Isamu a enrolou cuidadosamente num manto que trazia em seu saco de viagem, e seguiu caminho.

* * *

E ao cair da noite, Isamu chegou à um vilarejo com meia dúzia de casas, cujos habitantes eram em sua maioria lenhadores e carvoeiros. Isamu foi bem recebido pela gente simples que habitava ali, e, ao pé da fogueira, contou o estranho sucesso de horas antes. Os camponeses o ouviram com apreensão.

- Você teve muito sangue frio para escapar às garras do mikoshi-nyudo - comentou Ichiro, o líder da vila. - Vários viajantes e alguns moradores da região foram mortos e devorados pelo monstro. Alguns até se mudaram para mais perto da cidade, com medo de deparar-se com ele nos ermos...

Foi então que Isamu exibiu a kura-andon.

- Estão vendo esta lanterna? O yokai a estava carregando quando o esconjurei. Normalmente, quando um deles carrega um objeto, este é onde a sua essência está contida. Portanto, o que temos que fazer é destruir a lanterna!

E a lanterna foi colocada dentro de um dos fornos usados para produzir carvão, e um grande fogo foi aceso. Conta-se que, quando o metal começou a derreter, as chamas ficaram verdes e ouviram-se gritos medonhos saindo do forno.

Deste dia em diante, o mikoshi-nyudo não foi mais visto rondando na região.

- [21-10-2017]