O ANJO DA VÁRZEA

Num desses encontros profissionais nós nos conhecemos.

Sentados lado a lado dentre os demais colegas, as conversas fluíram e então, como de costume, enquanto se compartilha o pão à mesa, os causos surgiram em alguns relatos de vida.

Um deles me impressionou demais e eu o relato aqui com a forte sensação de missão.

Contava ele que, quando menino, ainda adolescente rebelde e em pré-vestibular, tinha duas paixões: jogar futebol e tocar guitarra.

Estudar era algo sempre deixado para depois quando o tempo voador lhe obrigava a folhear as apostilas dos caminhos para, quem sabe, um dia ser médico.

“Futebol e guitarra de novo? Vai estudar pro vestibular, ô menino!”-lhe diziam os pais, já meio desanimados.

E o vestibular para medicina já seria no final daquele ano...

Periodicamente, os encontros de amigos se davam aos finais de semana numa cidade do interior de São Paulo aonde, reunidos num clube, ele esmerilhava dentre as cordas da sua guitarra os hits dos Beatles e Rolling-Stones e logo mais ,na folga dos intervalos musicais, partia a turma de sempre para um pelada ali, próximo ao clube, no campinho da várzea do principal rio da cidade.

Certo dia, nos embalos dos finais de semana, havia ali um espectador deveras estranho à turma, nunca visto por ali, um jovem louro e magérrimo, de cabelos desgrenhados, irreverente, tatuado no braço e no peito, fissurado numa cerveja, uma criatura bem diferente aos moldes dos seus amigos, um jovem que se dizia recém chegado à Faculdade de Medicina do entorno e que viera até ali hipnotizado com a fluência sonora da sua guitarra .

O segurança do clube, muito incomodado com a postura do estranho, decidiu por retirá-lo do recinto, com o apoio de toda a turma.

O guitarrista conta que não gostou da atitude e contemporizou frente ao fato de que já estavam de partida do clube para a pelada da várzea e o garoto estranho iria junto a eles para um joguinho de bola de sempre, convidado que fora por ele bem à revelia da turma.

“agradeço amigos, mas não entendo nada de futebol , só gosto de rock e da medicina, mas digo a vocês que, como choveu muito e conheço bem a região, fiquem atentos ao nível do rio que pode subir sorrateiramente em busca da sua várzea”.

Então, do clube para o futebol, partiram todos, e calouro estranho os acompanhou só como espectador da partida.

Ao término do jogo, o adolescente guitarrista, muito suado e exausto, resolveu nadar para se refrescar do calor da partida.

Como sempre fazia e sem perceber a já vazão alta do rio, pulou de cabeça no fluxo agitado das águas e , de repente, se viu preso na sua corrente .

Nadava... nadava...nadava... e muito cansado já não saia do lugar.

Num flash de frações de segundos, me relatou que seus dezessete anos de vida passaram como um filme pela águas do rio, antes que, já sem fôlego, sucumbisse a elas.

“vá estudar, ô menino folgado!”-ouvia alguém ali lhe gritar.

Acordou no leito do hospital.

Logo lhe contaram o ocorrido: fora salvo pelo calouro da medicina, o garoto estranho que pulou nas águas, nadou muito e com incrível eficiência o retirou dali.

Os bombeiros o resgataram para o atendimento médico posterior.

Dias depois, já recuperado, muito impressionado e intrigado, foi ter com o desconhecido para agradecer pelo salvamento da sua vida.

Perguntou por ele aos amigos da turma, aos vizinhos, aos transeuntes, ao segurança do clube, a todos próximos dali mas ninguém mais o tinha visto pelas redondezas...

Sumira como fumaça a subir e a esvaecer no céu.

Então, ele e os amigos daquela tarde quase fatídica foram à secretaria da Faculdade de Medicina da cidade para identificar a tal criatura, na tentativa de esclarecer quem seria aquele calouro da faculdade que tanto gostara da sua música e que, como um herói dedicado, o retirara do rio, numa premunição de quase morte.

Ninguém sabia o seu nome, então, o descreveram pela estranheza marcante da sua figura .

Mais surpreendente foi a informação de que o tal calouro nunca estivera por ali...sequer para a matrícula.

A turma, estupefata, não entendia o ocorrido.

O guitarrista, desde aquele dia, se aprumou nos estudos e seis anos depois ofereceria o seu suado diploma de médico aos pais e ao fiel espectador da sua guitarra, o herói calouro que salvara a sua vida.

Hoje, dentre as aperreações da dura lida da profissão, ainda toca os Beatles e os Rollings-Stones, todavia, o futebol demandaria suas antigas articulçaões intactas:

"só com mais um milagre"-me disse ele, sorrindo.

Já o calouro salva-vidas nunca mais apareceu a ter com ele.

Encantada ouvi a sua história real, que aqui a reconto e a deduzir que :

Era só um Anjo da Várzea, desses que cruzam os nossos caminhos inesperados de vida a nos resgatar das águas revoltas, todavia, sem que possamos entender dos seus mistérios.

É mister só prestar atenção...