Liso como vidro

Sentado em uma cadeira voltada para a janela aberta que deixava entrever o jardim da "villa", banhado por um pálido sol outonal, o velho de barbas brancas parecia dormitar. Mas ergueu imediatamente a cabeça quando ouviu passos no corredor.

- Quem está aí? - Indagou com voz fraca. - É você, Maria Celeste?

- Sou eu papai - respondeu a interpelada. - E o jovem Francesco Mattei. Avisei-lhe que viria hoje, lembra?

- Ah, sim... o jovem Mattei... aproxime-se, meu rapaz... deixe-me tocar a sua mão.

O jovem Mattei aproximou-se reverentemente do velho e estendeu a mão, que foi apalpada pelo mesmo.

- Sim... esta mão lisa certamente não pertence à Esaú!

- E tampouco sou Jacó, mestre - riu-se o visitante.

- Pois tome assento - disse o velho, fazendo um gesto vago para uma cadeira situada ao lado da porta de entrada. Francesco fez como lhe havia sido indicado, e avisou:

- Estou à sua direita, mestre, próximo da janela.

O velho endireitou-se no assento, usando a voz do jovem como guia.

- Sim... podemos conversar agora.

- Vou deixá-los a sós - disse Maria Celeste. - Com sua licença, meu pai.

- Grazie mille, filha.

Houve um momento de silêncio, enquanto o velho ajeitava a coberta de lã sobre seu corpo. Finalmente, voltou a falar:

- Você está vindo dos Países Baixos, jovem Mattei?

- Assim é, caro mestre. Seu livro teve uma recepção muito boa e as vendas estão condizentes... mas também ouvi uma crítica, de um certo Willem Pieterzoon...

- Uma crítica! Straordinario! E o que disse esse Pieterzoon, especificamente?

- Bem... eu tomei o cuidado de anotar. Vou ler meus apontamentos...

Puxou do bolso do colete uma folha de papel manuscrita, dobrada.

- Mestre, ele diz aqui que a sua teoria do plano inclinado... possui uma falha conceitual...

- Va bene... e qual seria?

- Não previu o atrito entre o objeto que está deslizando e a superfície na qual ele desliza.

O velho fechou os olhos e começou a cofiar a barba branca.

- Atrito...

- Ele disse mais: para que o deslocamento fosse sem restrições, também não poderia haver qualquer ação de agente externo, como o vento por exemplo.

O velho ergueu a mão e Mattei parou de falar.

- Esse Pieterzoon tem razão... em parte.

- Em parte, mestre?

- Em parte. A experiência do plano inclinado que descrevo em meu livro, é puramente teórica. Creio que resolve alguns problemas do mundo real, mas não a registrei como se fosse algo testado na realidade.

E depois de meditar por alguns instantes:

- Certamente que alguém o fará, algum dia... num plano inclinado mais liso do que vidro, e dentro de uma câmara de onde todo o ar possa ser retirado. Mas por ora...

E voltou os olhos cegos para a janela, onde brilhava um sol cuja presença ele podia apenas sentir.

- Por ora, isso é algo sobre o qual nós apenas podemos especular...

- [04-10-2017]