II
 
A cidade ensaia o sono. Espectros bruxuleantes vagueiam
Vultos  fantasmagóricos passeiam na praia.
 
 
 Tinha medo do homem que cada menino constrói dentro de si, a partir da interação com brinquedos monstruosos. Ela já não gostava mais  dos filmes de terror,  e acordava sobressaltada com  pesadelos, habitados por criaturas diabólicas, que outrora, via na TV.  Considerava que monstro é criação de mente doentia: diabinhos que o autor transfere em forma de imagem para livros e filmes.  Se é verdadeiro dizer que os sinais sonoros e visuais descortinam emoções,  também é verdadeiro afirmar que este  mesmo conjunto de imagem e som leva a atitudes e condutas de acordo com a percepção, em torno da qual orbitam os sentidos do corpo. E pela primeira vez, a boneca de pano teve sentimentos humanos: desejou ser a rainha das  bonecas, ter muitos súditos e um grande exército para combater o inimigo que lhe perturba o sono.
— Quero ser como Bob que não tem medo de nada.
— Os homens escondem seus medos, quando estão diante das mulheres — disse Ravenala — faça o teste: quando Bobinho disser que não tem medo, olhe os lábios dele. Se tremerem em leve contração está mentindo.
— Não são mais os olhos a janela do coração? — Quis saber Emília.
— O rosto é  o lado externo do coração; os olhos, ambos os lados; mas são os lábios que escondem ou revelam a verdade.
As pálpebras de Ravenala se moveram três vezes, numa tentativa de apagar imagens  que  tentavam penetrar sua mente.  Entristeceu. E a voz de seu inconsciente veio acudi-la. “ Coragem, menina! Se estás alegre, desfruto do teu regalo, mas, quando te vejo triste, também me entristeço. E assim, no decurso do teu dia, transmitirás alegria se estiveres em paz ou disseminarás medo se teu  pensamento estiver mergulhado no terror. Descanse em paz! É preciso que o galo cante três vezes para despertar o anjo  que dorme.”
Teve vontade de dizer que o coração do homem modifica seu rosto, para o bem ou para o mal. Assim, não podem ser do Bem os brinquedos com faces monstruosos. Mas de que valeriam essas informações? afinal, Emília é apenas uma boneca. Como evangelizar os brinquedos ou  por meio dos brinquedos, Ravenala não sabia. Então pensou em construir uma boneca com duas faces: uma com rosto feliz  e outra de rosto  triste. Reprovou seu projeto: “Melhor fazer duas bonecas: uma triste e a outra feliz e quando estivesse triste, brincaria  com a boneca triste... Mas isso a levaria a entristecer-se mais ainda?” E teve pena dos meninos que brincam com criaturas monstruosas, e têm suas noites perturbadas por pesadelos. “Então, por que não produzir bonecos à imagem e semelhança de santos? Assim, as crianças sonhariam com anjos, e não com demônios fazendo diabruras em suas mentes.”
— Ainda acordada, Emília?
—  Quero dormir e não consigo...
— Conte carneirinhos.
 Ravenala desenhou uma ovelha numa folha de papel, depois mais outra ovelha, e  outras tantas, enfileiradas passando pela porteira. Todas branquinhas, bem branquinhas...
— Vá contando as ovelhinhas. Vá contando...
— Já  contei 99 e ainda não consegui dormir.
— É porque falta uma! Não descansarás enquanto não encontrares a ovelha perdida.
Entre um e outro piscar de olhos, Emília ouvia a conversa de Robert com Ravenala:
 — O livro não pode ser escrito apenas com fiapos de conversa  apanhados na sala de espera de um aeroporto. Tampouco, com a lembrança assustadora de quando  o pé ficou preso entre o vão da plataforma e o trem.
— É  preciso apostar no sucesso  e investir no desafio de realizar o impossível, porque o possível é meta dos acomodados. Ouça a voz do vento. Ele fala da rosa, e nada diz dos espinhos.
— Não consigo dormir — disse Emília.
— É porque não encontraste ainda a ovelha perdida. Se há uma ovelha desgarrada,  o pastor não dorme. Encontre a ovelha perdida, antes que ela seja apanhada pelo lobo. 
— Falta uma ovelha! Talvez ferida, machucada porque  se afastou do caminho apontado pelo pastor. Desenha um cajado. Quero um cajado com uma curva enorme!...
— Tome teu cajado. Puxe a ovelha que está à beira do abismo.
— Emília, Emília...
— Zzzzzzzzzz...
Dormiu e sonhou.
Viu o paraíso perdido. E chorou.  O mundo encantado estava em processo de destruição. Muitas bonecas foram  jogadas no lixo, porque lhes faltavam braço ou pernas; outras agonizam arrastadas por  águas turbulentas da liberdade descontrolada.
 
Viu, então, levantar-se do mar a fera apocalíptica que tinha dez chifres e sete cabeças; sobre os chifres, dez diademas; e nas suas cabeças, nomes blasfematórios.
 
Houve um estrondo como o ribombar de mil trovões, e o Anjo Negro cobriu  a terra com sua sentença de morte: “Tudo está perdido. Apagado. A  Verdade e princípio de fé; tudo está morto. Deus está morto.” Ouviu ainda  o tropel de muitos cavalos, e o tinir de espadas da corte celeste em luta contra o mal. Acordou. Seu semblante pálido, revelava medo. Emília estava fria.
— Por onde andaste em teus sonhos?
— No paraíso perdido.
— Encontraste o fantasma da ópera?
— Quase isso.
— Então conta que mundo é este que habita teus sonhos?
— Nunca  viste uma boneca descartada porque tem algum defeito? Vi uma muito ferida. Tinha  chagas ainda abertas por mordidas do lobo. Devia sentir dor e solidão. Disse ser uma ovelha abandonada pelo rebanho, mas foi ela que se desgarrou. E já não sabia mais como encontrar o caminho de volta. 
— Ovelha nunca deve abandonar o  rebanho! Sozinha, torna-se  presa fácil...
— Há muitas ovelhas doentes. Incautas, elas mergulham na escuridão e caem em profundo abismo. Gritam e seus gritos não ultrapassam a barreira dos muros abissais.
Emília falava com a voz arrastada. Estava gravemente ferida.
— Vovó, vovó!...
— Que houve, minha filha?
— Emília morreu!
— Bonecas não morrem. As meninas  crescem, e guardam suas bonecas no armário.
— Emília morreu. Quero fazer um velório com todas as honrarias que ela merece.
Corina entendeu que era preciso penetrar no mundo das crianças para compreender o recado que elas mandam para os adultos nas falas e diálogos estabelecidos com as bonecas.  Era hora de guardar a boneca de Ravenala, como ela, Corina,  guardara a sua quando ficou mocinha.
— Emília era apenas uma boneca de pano, minha filha.
— Sim, mas em cada retalho dela, tinha um pedaço de mim.
— Podes fazer tua Emília voltar  a viver outra vez.
— Ela está velhinha demais, vovó. E muito cansada!  Não pode nascer de novo.
— No mundo espiritual pode. No ficcional também.  
— Sei, vó!  A fé consiste em crer naquilo que não se vê. Ouvi o padre dizer isso na missa.
— Sim. É a viagem ao desconhecido através da fé, que nos permite palpar o intocável, como  acontece o  encontro da ficção com a realidade, do natural com o sobrenatural. Aqui ou ali, pode o homem encontrar  a sorte; a vida ou a morte na escolha  do caminho que  faz.   A vida, enfim, é um mistério para ser vivido ou um enigma a ser desvendado. 
— Enigma! Porque  sempre deixas um tesouro escondido atrás da porta, vovó?
 — Ora, para ser descoberto pelo caçador de esmeraldas. Agora durma, minha filha!
Emília não sabia que Ravenala falava do quarto misterioso. Nunca levara sua boneca àquele quarto.
— Tesouro atrás da porta ou obra  inacabada? – Retrucou Emília com voz de quem fala dentro de uma caixa.
 — Toda obra humana é imperfeita e inacabada... Devemos levantar hipóteses, sem afirmar, ou afirmar e depois negar. Por exemplo: as ondas atlânticas que sepultaram Escobar podem  ser as mesmas que engoliram Fernão.
— Nunca me falaste de Fernão.
— Ele  foi levado em espírito ao dia de seu batismo,  e no  mergulho ao sobrenatural,  viu seu corpo assim que plasmado no ventre da mãe, curvado como beato em genuflexão. Sentiu muita  angústia, porque não era desejado e o sentimento de rejeição provocou nele   um bloqueio do desenvolvimento cognitivo. Ele cresceu, mas nunca quis ser adulto.
— Que é desenvolvimento cognitivo — quis saber Emília.
—  É um processo  que passa por estágios como o que estás nele agora: Eu falo, tu ouves; tu falas, eu escuto. Toco flauta e danças minha música, mas quanto te tornares adulta, a música que toco já não será mais agradável aos teus ouvidos, porque eles perderam a sintonia com o Tocador de Flauta. Depois, na velhice, recobrarás a harmonia  e ouvirás a voz do vento.
 — Vi  Machado tecendo o perfil psicológico de Capitu.  Afinal, Capitu traiu  o marido, ou não?— disse Emília.
— Muitos leitores  atiraram-na do monte Capitolino, outros, acusam Bentinho pela morte de Escobar.  
Fez uma pausa, e depois retomou o discurso.
— Somos uma colcha de retalhos tecida de muitos sonhos, bons ou ruins, temos esse pano velho plasmado nas entranhas. As  boas lembranças revelam o perfil do herói; más recordações, as maldades do bandido. 
Abriu o arquivo onde ficam guardadas as boas lembranças, pegou um livro e folheou algumas páginas em que  um homem de sobrancelhas fechadas dava a Emília os primeiros traços de vida.
— Se  esquadrinhares cada personagem, vais encontrar recortes da personalidade do criador.  Ele não se livra  de suas próprias lembranças. Mais cedo ou  mais  tarde, elas aparecem na face ou na alma de seus personagens.
— Não consigo processar tanta informação derramada assim de uma só vez. Ora  afirmas uma verdade, ora negas... É justo, isso?
— Bob também pensava assim. Hoje ele reconhece que devemos apenas levantar hipóteses.
— O Bob só existe em tua  imaginação, princesinha. Ele não é real!
— Claro que o Bob existe! Esteve conosco na Quinta da Boa Vista. Não te lembras?
—Aquele é Robert!
— Robert    e Bob são a mesma pessoa.
— Desta vez, pensei como boneca!
— Nem tanto! Para meu pai, Robert  é Bob. Para minha mãe, é Robert, o filho da quase vizinha.
— E pra ti?
— Para mim, Bobinho, às  vezes, bobinho. (pronunciado com vogal fechada no primeiro ‘ô’.)
— Bob não é bobo! (ô)
— Bobinho é uma forma de tratar as pessoas com carinho. Pode significar intimidade. Neste caso, não tem o sentido de tolo.
— Que é ser  quase vizinha?
— É uma pessoa que mora meio perto. Quase longe. Quase longe é quase perto. Quem mora em teu coração, mesmo estando longe, está perto. Isso é quase longe.
— Entendi quase tudo.
Esperou Emília acusá-la de plágio ou pelo menos paralelismo entre o ‘quase longe, e quase perto’ de Ravenala com o diálogo do pequeno príncipe e a raposa de Bach. Mas a boneca, a  boneca simplesmente  acrescentou:
— Começas a amar uma pessoa, no momento em que te aproximas do coração dela. Se nunca te aproximares, ela estará sempre longe, mesmo estando perto. Isso é quase longe. Mas se te aproximares dela, ainda que venha a se separar geograficamente, e, estando longe, estarás perto. Isso é quase perto.
Ficou contente, porque Emília aprendeu mais do que lhe foi ensinado. E nunca mais pensou que não devesse dar ouvidos ao que diz uma boneca.
— Emília, achas que alguém vai ler a coisas   que escrevo?
— Não há nada tão ruim que não sirva para alguma coisa.
— Lembro desta frase. Seu Jeremias estava prestes a  rasgar um dicionário de sentenças latinas, quando se deparou com o que acabas de dizer.
Emília empalideceu.
— Eu não disse que cunhei a frase. Só não sabia como explicar que não era minha...
— É fácil. Se escreveres expressões ou textos de outrem, ponha aspas. Se o discurso for oral, diga: ‘Abre aspas.’
— Então os falantes devem abrir aspas, em tudo que dizem, porque ninguém é original. Nem o primeiro homem foi original! Ele só falou depois que Deus soprou em suas narinas.
Emília ficou satisfeita por advogar em causa própria. E retomou o assunto:
— Suponhamos, que alguém  leia teu livro. Para onde vão os livros depois de lidos?
— Muitos livros nem chegam a ser lidos. As pessoas os têm como enfeite nas estantes, outras como fonte de pesquisa ou consulta. Nunca lidas ou consultadas, as páginas ficam amareladas, traças roem, e os livros são lançados fora. Os que tiverem a sorte de serem lidos, sofrerão pena de morte, vão parar na lixeira, e serão triturados pelas engrenagens dentadas do caminhão da coleta.
— Muitas vezes, até a Palavra de Deus é jogada no lixo — disse Emília— sem muita certeza daquilo que afirmava.
— Semente lançada no pedregulho — disse Ravenala.  Meu pai dá destino mais nobre aos livros que lê: esquece-os de propósito, em algum lugar público. E vigia de longe. Avalia: se a pessoa folhear algumas páginas e levar o livro. É leitor. Se antes de folhear, olhar para trás, olhar para os lados... e constatando que não vem ninguém, pegar o livro e fugir. É ladrão. Ocorrendo a segunda hipótese, seu Jeremias resmunga: ‘A ocasião não  faz o ladrão, o ladrão se revela, quando a ocasião é favorável.’
Robert pega carona num fiapo de conversa, quando  Ravenala pensa alto. Ela deixa escapar conceitos aparentemente contraditórios.
— A intenção não era de que alguém pegasse o livro?
— Sim! Pegasse para ler. Ladrão não tem tempo de ler livros. São muito ocupados, trabalham demais no planejamento estratégico de seus crimes.
Emília teve vontade de rir. Mas fora feita sem sorriso.
— Falávamos mesmo de quê?
— Dos livros que meu pai esquecia em logradouros públicos.
— Então, por que teu pai não faz a mesma coisa com os jornais lidos?
— Quem vai querer jornal de segunda mão? Se ele se esquece de ler o jornal no mesmo dia da edição, não o lê mais.
— Bobagem! Tanto faz jornal de ontem, de hoje ou de cinquenta anos atrás, as notícias são as mesmas. Pode pegar o jornal velho e mudar só a data. ‘Fora Vintém!’ Ano 1949 protesto contra o aumento da passagem do bonde no Rio de Janeiro. Podemos retroagir mais. Ano  99 Depois de Cristo, a Europa entra em pânico: ‘O mundo vai acabar!...’ Ano de 1999: dois mil não inteirará, dizia o povo.
— Na história da criação do homem e do universo, mil anos é cisco no olho de um gigante.
— Então  que achas deste cisco?
 
O orçamento deve ser equilibrado, o Tesouro Público deve ser reposto, a dívida pública deve ser reduzida, a arrogância dos funcionários públicos deve ser moderada e controlada, e a ajuda a outros países deve ser eliminada, para que Roma não vá à falência. As pessoas devem novamente aprender a trabalhar, em vez de viver às custas do Estado.
 
— É... este pronunciamento do senador romano tem mais de um  século.
— Um século? Conte o tempo do ano 55 AC e veja se o cenário político de agora não é o mesmo da época do império romano! Ainda no  tempo do rei Jeroboão, disse o profeta:  ‘Não ficará  impune quem diminuir a medida, adulterar  balanças e dominar o pobre  com dinheiro e os humildes com um par de chinelos. Ai daquele que esmagar no pó da terra a cabeça do pobre e transviar os pequenos’.
Emília faz as contas: O rei Jeroboão foi antecessor (não imediato) de Salomão, portanto, quase mil anos antes de Cristo. Isso somado a dois mil anos que já se passaram da vinda do Salvador, o resultado aponta para, aproximadamente, três mil anos, e as  cenas são as mesmas:  as sete colinas da cordilheira dos Apeninos ainda olham a Cidade Eterna em chamas, enquanto o imperador fecha a cortina do palácio  e se regala com o imposto pago por  daqueles que em fumaça se consomem. Tudo igual ao que era antes.
— Discordo  — acenou Ravenala — o crime agora usa tecnologia de ponta, é mostrado na televisão com informações pormenorizadas, um manual perfeito para meliantes.
Emília  não conhece o mundo do crime, mas recorda-se de ter visto imagens do brinquedo assassino e isso lhe causou grande perturbação.
— Trago na alma um eco dessas lembranças — disse ela.
— Robert já foi, Emília. Pode sair da caixa.
— Robert não esteve aqui, princesinha!
— Ouço o barulho de passos no soalho. Deve ser vovó. Finja que dorme.
Corina se aproxima. Afere a temperatura. Ravenala está com febre.
— Coisa passageira, minha filha. Amanhã estarás boa.
— Nunca fui ruim, vó.
Riram.
A boneca dormia numa caixa de sapatos, como a menina que Ravenala fizera adormecer dentro de si mesma. Ravenala agora  estava  só. Sozinha, navegando velozmente no silêncio de sua imaginação. Construíra conhecimentos, sob a regência do Padre Davi, tornando-se uma sombra dele. Sabia que era preciso engolir muito papiro, para encontrar o Tesouro de Bresa,  por isso, quando penetrava nas páginas dos livros, queria matar os vermes que roeram o livro de Machado, e nada sabiam. Nada se lembravam. Ou era de Betinho o livro?... Ou de Casmurro? Ela  leu, releu e remoeu mais de  quinhentos livros, e era capaz de regurgitar frase por frase, ainda que lida há muitos anos.  Aprendeu a navegar  nas asas da imaginação. Pegar carona no Sputnik de  Gagarin. Alçar voos  a bordo de uma nave espacial, romper horizontes e ultrapassar barreiras. Ser um anjo latino a dar uma volta completa em torno da Terra.
Temia ser ridicularizada, ou considerada leviana naquilo que fazia. Mas uma voz interior dava-lhe forças: “Se andares pelos caminhos retos, não temerás os terrores noturnos, nem a flecha que voa à luz do dia. Levanta-te e vai. Vai perseguir teus sonhos.  Há dentro do homem  uma  gaivota buscando romper os limites de sua espécie, ou uma águia afiando as garras, arrancando as penas e fortalecendo as asas para alçar novos  voos... Toma, pois, caneta e papel, e escreve tudo que viste e ouviste.”  
Foi.
Sonhou que era a estrela de Cracóvia, brilhando no espaço sideral. Tinha quarenta anos, mas não agora.
— Deves descer aqui, disse a estrela.
— Ei, Ravinha! Me chama para trabalhar, disse Emília, ao perceber que o maleiro do guarda-roupas fora aberto.
— Dorme, menina!
Fechou o maleiro, afastou o forro da cama e se deitou. Pensou no sol se pondo atrás das asas de uma gaivota, no voo rasante de uma  águia... e permitiu que sua mente abrisse as portas para a grande aventura de viajar na imaginação. Estendeu a mão para alcançar as engrenagens do relógio, adiantou  o tempo em  cinco anos e  situou o calendário em 1999, quando teria 20 anos  completos. Em seguida, retrocedeu o tempo para reviver a conversa que tivera com o pai, quando tinha quinze anos: “Devemos ler  muitos livros para escrever um.  Não vês Machado? Era um homem sábio, adquiriu conhecimento de mundo, buscando o saber na leitura e na meditação, ou aprendeu com Marília de Dirceu?...  Nunca se sabe!” O próprio Jeremias fazia voos literários  e vestia sua filha com vestes que não cabiam nele: ‘Literatura não dá pão para quem não cuida bem do trigal. Coragem!... Não tenha medo de inovar, muitos construíram grandes obras, porque não temiam dar asas a seus sonhos. Voe sem medo do paredão do mundo! Voe,  e logo verás, no enfrentar de teus medos, eles derreterão como cera. Creia, não haverá nova aurora, novo sol,  e novo dia, se não houver um homem novo a sonhar com novo céu e nova terra.  Somos o geógrafo de Exupéry: cercamo-nos e vivemos no mundo que criamos em torno de nós mesmos. O pessimista, por exemplo,  carrega o pesado fardo de seus medos, e se torna porta-voz de más notícias; os valentes, porém, enxergam a vitória, mesmo antes de darem início à luta.  És ainda muito jovem! Nesse frescor da idade, a imaginação voa tanto!... Simplesmente, voa. Toma, pois, caneta e papel e descreve o voo de uma águia ou despertar de uma gaivota. As biografias não mentem, muita gente famosa fez literatura antes dos quinze. Tens  o exemplo de Coralina que,  aos quatorze anos publicou “Tragédia na Roça”. Ganhou o carinho do público, e alguns vinténs de cobre fazendo doces. O homem tem dentro de si uma  gaivota buscando romper os limites de sua espécie, ou uma águia que se renova, afiando as garras, arrancando as penas e fortalecendo as asas para alçar novos  voos. Não temas. O vencedor é aquele que não desiste de seus sonhos. Não desanime! Com uma pedrinha apanhada   no alforje, o menino Davi lançou por terra a ira do gigante Golias. Tudo depende do olhar lançado sobre o  que nos rodeia: uma catedral pode parecer um monte de pedras; e  uma serpente, inofensiva minhoca. Livro é uma pedra. Tosca  ou polida, é uma pedra em movimento.

***

Adalberto Lima, capítulo de Estrela que o vento soprou.