Contínuo

- Você viu isso? - Reclinado em sua cadeira de rodízios, do outro lado da sala, Hansford me exibiu um anúncio de página inteira no "Daily Herald".

- Vi. E não dei a menor atenção - retruquei. - É maluquice.

- Que é maluquice eu sei - ele endireitou-se na cadeira. - Mas quem teria tanto dinheiro para pagar um anúncio de página inteira, no principal jornal da cidade... anunciando um gerador de energia infinita?

- Provavelmente, alguém esperando recuperar seus gastos com lucro, tão logo alguns trouxas decidam investir nessa falcatrua - ponderei.

- Precisamos investigar isso - afirmou em tom decidido.

- Está falando sério? Até agora, nenhum crime foi cometido...

- Vão fazer uma demonstração pública amanhã, no Centro de Convenções - insistiu Hansford. - Que tal irmos lá, como bons empreendedores americanos que farejam um negócio promissor... de um sujeito chamado Mihaíl Yakovich?

* * *

- Sr. Yakovich?

O homenzinho de barba preta e terno de casimira cinza, virou-se ao ser chamado por Hansford. Havia muita gente querendo falar com o inventor nos bastidores do Centro de Convenções, e meu parceiro se valera do seu físico de zagueiro de rugby para abrir caminho na multidão.

- Pois não - respondeu Yakovich, com um sotaque estranho. Russo, talvez?

- Sou Ike Evans - identificou-se Hansford, estendendo-lhe um cartão de visitas falso. - E este é meu sócio, Peter Turner. Lemos sobre sua máquina no jornal, e nos pareceu muito intrigante. Como funciona, exatamente?

Yakovich examinou o cartão de visitas e depois nos olhou atentamente, quase como se soubesse que não éramos quem dizíamos ser.

- Metalúrgica Fields, hein? Se vocês querem saber mais sobre meu invento, lhes recomendo assistir a demonstração que será feita em instantes.

E em tom de advertência:

- Só depois me procurem, caso queiram realmente investir no projeto.

E devolveu o cartão de visitas.

* * *

- O que achou? - Inquiriu Hansford, quando já estávamos sentados na plateia, em meio a centenas de outros curiosos.

- Ele me pareceu bem seguro de si - analisei. - Se é um charlatão, não parece ser do tipo que comete erros à toa.

- Veremos - disse Hansford.

A apresentação começou. Yakovich adentrou o palco, e parou ao lado de uma bancada, sobre a qual fora colocado o tal gerador de energia infinita. Não parecia algo impressionante, visto à distância: consistia numa esfera, aparentemente de cobre, do tamanho de uma melancia, transpassada por um eixo o qual era sustentado em ambas as extremidades por uma armação metálica de base circular. De uma das extremidades do eixo sobressaía uma haste curta, de ferro, a qual imaginamos seria girada para pôr em movimento o dispositivo.

- Agradeço a todos que vieram aqui, hoje, assistir à demonstração pública do meu invento - declarou o inventor em tom vibrante. - Sem falsa modéstia, minha intenção é revolucionar a geração de energia não somente nos Estados Unidos da América, mas em todo o planeta!

Aplausos entusiásticos. Ao meu lado, Hansford remexeu-se, incomodado.

- Quem é que fala "Estados Unidos da América", por extenso? Todos sabem que somos a América!

- Talvez ele queira deixar claro que esta é uma invenção especificamente para nós... não para a América Central ou do Sul - ironizei.

- Conte outra - resmungou Hansford.

Yakovich posicionou-se por trás da máquina e, como esperávamos, girou a haste de ferro que sobressaía do eixo. Sob a luz dos refletores sobre o palco, a esfera metálica começou a girar, cada vez mais rapidamente, até transformar-se num borrão dourado. Segundos transcorreram, depois minutos, e nada do giro diminuir. O público começou a murmurar.

- Vejam, senhoras e senhores! - Exclamou Yakovich. - Com apenas um movimento, pus o mecanismo em ação. Ele continuará girando sem parar, até que o Sol se apague...

E, erguendo o braço direito:

- Mas nós não temos tanto tempo assim, não é?

As luzes do Centro de Convenções apagaram-se completamente por um ou dois segundos. Quando acenderam-se de novo, Yakovich ainda estava de pé, ao lado da máquina. Mas esta, havia subitamente parado de girar.

* * *

- É um truque - sentenciou Hansford, quando a multidão satisfeita começou a se retirar do local. - No momento em que as luzes se apagaram, ele deve ter apertado um botão ou coisa parecida.

- Mas para quê precisaria apagar as luzes para desligar a máquina? - Indaguei. - Seria um truque se a rotação estivesse diminuindo, e ele precisasse apagar as luzes para girar a manivela de novo. Mas você viu: não havia o menor sinal de que isso fosse ocorrer tão cedo...

- É algum tipo de truque... - insistiu Hansford.

- Por que não vamos perguntar a ele? - Sugeri. - Afinal, ele disse que, caso tivéssemos interesse, o procurássemos depois da apresentação.

- Sim - concordou Hansford. - Vamos atrás do sujeito.

Demoramos um pouco para localizá-lo, e quando o vimos, ele estava orientando a colocação de uma caixa de madeira - onde presumivelmente estava guardada a máquina - dentro de um furgão Ford Econoline marrom.

- Sr. Yakovich, cá estamos novamente - disse Hansford, aproximando-se.

- Sua apresentação foi deveras impactante - acrescentei.

O homenzinho nos encarou com ar de satisfação.

- É incrível mesmo, não é?

- Sem dúvida! - Teve que concordar Hansford. - O que nos leva à minha primeira pergunta: como funciona? Se deseja investidores, temos que ter certeza de que não estamos jogando dinheiro fora numa, digamos... máquina de moto-contínuo.

Yakovich sorriu.

- Eu a chamei por esse nome? Ou estava escrito assim no jornal?

- Não - respondi.

- Então, nada tem a ver com moto-contínuo - replicou ele. - Nada que viole a primeira lei da termodinâmica: não se gera energia do nada.

- Mas vimos a máquina em funcionamento, e, aparentemente, sem estar conectada a nada... cabos elétricos ou tubulações ocultas - prossegui.

- Isso parece então provar que funciona, não é mesmo? - Prosseguiu ele, em tom de quem está se divertindo.

O motorista e seu ajudante embarcaram no furgão. Yakovich ergueu as mãos, em tom de desculpas.

- Lamento, mas terei que ir. Tenho que preparar outra apresentação para amanhã de manhã, na Universidade de Redmond.

- Poderemos procurá-lo lá? - Perguntou Hansford.

- Naturalmente.

- Sr. Yakovich, uma última pergunta - atalhei.

- Pois não?

- Por quê apagou as luzes para desligar a máquina?

Yakovich sorriu.

- Boa pergunta, rapaz! Lembra quando eu disse que não poderíamos esperar o Sol se apagar para que a máquina parasse?

- Sim.

- Luz. É isso que mantém a máquina em movimento. Para que pare, é preciso que se faça escuridão. E agora, eu tenho realmente que ir andando!

Acenou e entrou no Econoline, sentando-se ao lado do ajudante.

Eu e Hansford ficamos imóveis, vendo o veículo afastar-se e dobrar a esquina.

- Isso não faz o menor sentido! - Exclamou Hansford. - Luz! Luz como fonte de energia para um motor!

Fiquei em silêncio por alguns instantes, procurando as palavras corretas para falar.

- Talvez... talvez ele apenas tenha dito de um modo que pudéssemos entender. Não exatamente luz... mas algo que depende do próprio Sol existir. Quando o Sol não existir mais, então a máquina irá parar definitivamente.

- Do que você está falando? - Perguntou Hansford intrigado.

- Nem eu mesmo sei - respondi. - Vamos embora. Por hoje, não há mais espetáculo.

Hansford fez menção de seguir para o estacionamento, mas parou e deu um murro na mão.

- Mas que droga! Ele nos enrolou direitinho!

- Como?

- Não há nenhuma universidade em Redmond, há?

Não, não havia. Pelo menos, não até 1971.

- [22-06-2017]