A pujança da feitiçaria clássica

Num tempo em que se curtia feitiçaria, o Bento, um braço direito do Mutxipissi, mágico ultrarromântico, apaixonado pela filha dum velho feiticeiro necromântico, ou seja, um velho cujo feitiço estava ligado à força dos mortos, um pandeiro que era considerado o kokuana mais sábio da urbe.

Naquele tempo domesticava-se demónios, alguns deles eram de estimação e outros, demónios de guarda. Estes últimos eram os mortos-vivos furibundos e totalmente enraivecidos, aqueles que tiveram uma morte estúpida, que nem mereceram cerimónias fúnebres. Pois, as suas vidas nem um caixão valiam. Após uma vida mísera e altamente rica de insatisfações, era bastante fácil conquista-los, bastava prometer-se-lhes um esquife, que eles faziam um trabalho limpo e completo.

Os putos daquela região andavam com água benta nos bolsos e alguns já dormiam na Igreja Universal do Reino de Deus, com medo de ser escangalhados pelos demónios que andavam soltos na rua, portanto uns tornavam-se peregrinos e mártires para garantir a custódia do poderoso eterno legislador (Deus).

Porém, o bento não se alinhou, o puto só andava com um amuleto na cintura, pois para ele aquele punhado de linhas entrelaçadas era sua salvação, a sua fé, o seu cristo e a sua religião.

O feitiço, o puto desfazia com água de cacana fervida, grãos de sal serviam para expulsar as corujas missionárias, por isso o gajo andava excessivamente confiante. “É porque partilhava a mesma ideologia que o Mutxipissi, ou por outras, bebera da mesma fonte…” muitos diziam.

A feitiçaria estava na moda, tal que para serem bem sucedidos na matéria de paqueira, os pequenos cavalheiros tinham que pelo menos fingir que são feiticeiros ou que têm uma afinidade com bruxos, só assim podiam caminhar com as mulatas que provocavam concupiscências a todos os que a elas catapultavam olhares, um acto que redundava na projecção de um olhar externo e libidinoso.

Só que, ao tentar se envolver com a filha do rei dos feiticeiros, a quem até os Indunas e os Sobas daquela região faziam as suas consultas, o Bento metia-se numa roubada cabeluda, uma encruzilhada difícil de sair com vida. O puto sabia disso, mas pela princesa não dava o braço a torcer. Aquela garota era um poço de atracções, pois todos os mancebos daquele pedaço de terra se rendiam aos seus encantos, nenhum coração sobrevivia àquelas sinuosidades, beiços achocolatados de mulata singela.

Todos os garotos corriam atrás da miúda, só que, caso conseguissem escapar das minas tradicionais que o perigoso pai da princesa implantava na circunvizinhança da sua casa, levavam com uma bala de feitiço nos focinhos, e os seus intentos esmoreciam.

Já o Bento tinha como o maior desafio, o medo do velho pandeiro e não só, ele não era experiente na vida profana, pois ainda não tinha comido o pecado. Não conhecia a zona de ambiguidade entre o corpo e o espírito.

A chama da paixão bruxuleava por falta de iniciativa e coragem de enfrentar a moça e dizer-lhe que nutria mórbidas paixões por ela.

Quando o Bento tomou a coragem de informar a sua doce donzela sobre os seus turbilhões de paixões e os seus planos para com ela, o tempo deu a sua última palavra e a doninha, toda entusiasmada, atirou-se aos seus braços e deu-lhe um beijo profundo, daqueles em que se suga alma.

No dia seguinte, os dois já eram namorados e, como tal, decidiram ir a uma esquina onde sentiriam a profundidade da história humana e desentupir o buraco do qual vem a humanidade.

De repente, quando o puto sentia apequenez do mundo, explorando a ciência que Deus usa para multiplicar o homem, o azul do céu esmoreceu, sucumbiu e cedeu, dando espaço a um céu negro acompanhado de trovões e relâmpagos tenebrosos que vinham buscar o abusado moleque. Era o feitiço do pai da moça a sabotar a vida do Betinho. Assim, uma bola gigante de feitiço caiu nos cornos do puto e explodiu, espalhando, no chão, os miolos do rapagão. Bum!!!! A morte consumiu o garoto…

Não houve médico nem Deus que reabilitasse o corpo que, caído no chão, agonizava convulsivamente, com os neurônios empastados no chão como uma Barata esmagada com a sola de sapato.

Justamente quando a menina descobria que o mundo não era sagrado e que o seu corpo não era templo de espírito santo, secou-lhe a fonte… e… ante aquele sinistro, a garota ficou traumatizada e emudeceu para sempre. O cheiro de sangue fresco permaneceu na região durante meses e quem inalasse aquele ar pela boca sentia o gosto de alumínio contaminado de azedo da podridão nauseabunda dos resquícios do crâneo estilhaçado que não foram identificados a quando da recolha dos restos mortais do Betinho.

Ninguém acreditava que o Bento era merda na material de feitiçaria e do fatalismo, mas uma semana depois do enterro, o Mutxipissi, quando foi visitar a campa do puto finado, encontrou a lápide arrastada da sepultura, sem corpo no esquife. Fascinado com as novas técnicas de feitiço que vira, saiu correndo para desfraldar o sucedido. Depois do cristo, aquele era o homem mais sucedido na arte de ressureição.

Os que receberam a informação saíram correndo para a palhota do velho sábio, só que aquilo também já não era mais um lugar cheio de salvação como se podia esperar. Pois encontraram o corpo do Velho feiticeiro putrefacto a partir da cintura para baixo, com uma bomba de feitiço no peito à espera do momento certo para explodir, o coração era o cronómetro.

E mesmo em vias de putrefação, o velho conseguiu rezar o último encanto e passar a triste mensagem enviada pelo destino. A mensagem dizia: “Até os inocentes pagarão pelo sangue derramado…”. De noite, a fisionomia do Bento se projectava na lua como uma assombração planetária - nem Deus compreendia as técnicas usadas para a edificação do feitiço daquela envergadura -.

Ainda não havia ocorrido o pior… no cemitério, o velho explodiu e o sangue congelou-se no ar. Assim a atmosfera assimilou camaleonicamente a cor da morte e os presentes saíram correndo em debandada sem noção dos seus destinos.

O Mutxipissi permaneceu no cemitério o dia todo, perturbado e admirando o sublime mistério. Já que, para ele a feitiçaria era uma arte, deu-se o trabalho de colectar os bocados do velho, afim de descobrir a formula química aplicada para o efeito. – Meu Deus…, que bela arte!

A compreensão da natureza e dimensão daquele feitiço tornou se uma necessidade imediata da região, assim, foram convocados os peritos da área da feitiçaria. Muitos disseram que assassinar o Bento foi o pior erro que se podia cometer no planeta. O puder da feitiçaria do Bento era capaz de transformar todo o Moçambique em cinzas. Disseram também (e ainda dizem) que até 2020, o país já estará desabitado, pois todos nós teremos virado estrume ou quaisquer substâncias decompostas, se novas técnicas de feitiçaria não forem descobertas.

Ilídio Pedro, in Mutxipissi, num tempo sem Deus. Maputo, 2015

Mutxipisi
Enviado por Mutxipisi em 19/05/2017
Reeditado em 29/05/2017
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