Espaço Extra

Valise na mão esquerda, Eugen Teufel, um homem corpulento de cerca de 40 anos de idade, apresentou seu bilhete para Hong Kong à atendente no balcão de check-in da Nova Airways, aeroporto de Hamburgo. Ela o recebeu com um sorriso profissional, e após passar o documento por um leitor de código de barras, indagou:

- O senhor leu o termo de responsabilidade referente à sua solicitação do Espaço Extra?

Teufel moveu a mandíbula, como se estivesse mastigando as palavras antes de pronunciá-las.

- As letrinhas miúdas? - Disse finalmente. - Sim, dei uma olhada... algo sobre segurança de voo, não é?

A atendente encarou-o com expressão séria.

- Herr Teufel, embora tenha sido disponibilizado gratuitamente em nossos voos regulares acima de três horas de duração, o Espaço Extra encontra-se ainda em fase experimental. Sua correta utilização é a garantia de que não irão acontecer problemas. O senhor está ciente das implicações do uso incorreto do serviço?

Teufel fez um gesto vago.

- Sei que tenho que manter o cinto de segurança afivelado enquanto estiver usando, e que não posso levantar da poltrona antes de desligar o sistema.

A atendente retirou uma folha que acabara de emergir de uma impressora laser atrás dela.

- Por favor, peço-lhe que assine o termo de responsabilidade.

E perante o olhar interrogativo que ele lhe lançou, ela acrescentou:

- Mera formalidade.

* * *

O trajeto entre Hamburgo e Moscou foi feito num jato convencional. Em lá chegando, Teufel teve que trocar de avião para fazer o percurso final até Hong Kong. O dispositivo que gerava o Espaço Extra, instalado sob a poltrona à sua frente, foi disponibilizado após a segunda hora de voo. Cuidadosamente, ele afivelou o cinto de segurança e moveu uma trava no encosto da poltrona diante dele. Um retângulo negro surgiu sob o assento da frente e cautelosamente ele esticou as pernas em sua direção. As pernas entraram num espaço que, teoricamente, não deveria estar ali. Era isso o Espaço Extra: alocar espaço na quarta dimensão para que as pessoas pudessem esticar as pernas confortavelmente em voos longos.

A viagem transcorria normalmente até que, ainda sobrevoando o Cazaquistão, o comandante alertou pelos alto-falantes que haveria turbulência mais à frente. Teufel conferiu se o o cinto estava afivelado, e em seguida resolveu trabalhar nos gráficos da apresentação que faria no cliente de Hong Kong. Apanhou o tablet na valise, ligou-o, e quando preparava-se para abrir um arquivo, o avião caiu num vácuo. Ele desequilibrou-se momentaneamente e soltou o tablet, o qual escorregou para o retângulo negro do Espaço Extra, ainda ligado, e desapareceu.

- Diabos! - Exclamou Teufel. Precisava recuperar o aparelho: havia nele arquivos confidenciais dos quais não possuía cópia na nuvem.

Ainda preso pelo cinto de segurança, dobrou o corpo no assento e tentou estender os braços para dentro do Espaço Extra: não conseguiu ir muito longe e quase ficou sem fôlego, com o cinto querendo cortá-lo ao meio.

- Não posso abrir o cinto, - ponderou, lembrando-se das "letrinhas miúdas" do termo de responsabilidade - mas e se eu afrouxar um pouco e me virar de lado, para poder ir mais fundo?

Afrouxou o cinto o máximo que pode e dobrou-se novamente no assento, braços esticados, as mãos tateando a escuridão à sua frente. Em dado momento, achou que havia tocado em algo.

- Mais um pouquinho... - resfolegou.

Neste exato momento, o avião caiu em outro vácuo. Desequilibrado, Teufel tombou para a frente e, para seu horror, percebeu que seu corpo deslizava para fora do cinto - e para dentro do Espaço Extra. Foi tudo muito rápido.

* * *

Numa sindicância aberta posteriormente, a Nova Airways foi considerada isenta de culpa pelo acontecido, que foi creditado à uma fatalidade e ao risco assumido pelo passageiro desaparecido. Todavia, a empresa aérea decidiu suspender os testes com o Espaço Extra, pelo menos até que mecanismos de segurança inteligentes fossem desenvolvidos.

Nunca se soube exatamente o que aconteceu com Eugen Teufel. Com um sistema aberto na quarta dimensão, ele pode ter ido parar em qualquer lugar - um lugar, literalmente, além da imaginação...

[22-03-2017]