Le Cirque des Revês – Parte 3

A tenda da cigana era sempre visitada. Todas as noites e, algumas vezes, durante o dia. Vivia rodeada de pessoas em busca de respostas, em busca de transpor as barreiras da carne e alcançar a visão do que não se deveria saber.

Seu olhar é penetrante e melancólico. Ser olhado por ela é o mesmo que sentir-se nu em frente a uma completa estranha e ainda assim sentir-se à vontade com essa nudez, é sentir-se abraçado, alcançado. Ser como um livro aberto sendo lido, relido e, em alguns casos, editado, corrigido. Assim é a cigana do Le Cirque des Revês. Profunda e misteriosa.

Sua tenda tem uma áurea de magia antiga. A iluminação é fraca, a luz das velas dá ao lugar uma sensação de conforto em dias de chuva intensa. Seu rosto é envolto de sombras. Usa um manto na cabeça e joias pendem do seu pescoço, orelhas e braços.

Há silêncio ali dentro, ainda que lá fora o Le Cirque esteja fervilhando de pessoas, ao passar pela porta daquela tenda a atmosfera se transforma e seus sentidos captam tudo ao redor de forma diferente. É possível distinguir uma coruja empoleirada ao fundo, seus olhos amarelos ficam fixos nas pessoas que ali chegam. A decoração, ainda que parca expressa a misticidade dos ciganos e aquilo em que acreditam.

Hoje a tenda ainda estava fechada, o espetáculo da noite já estava na metade, mas a cigana não quis ver ninguém. Parece que para ela, o circo dos sonhos havia sido deixado para trás. Sobre sua mesa estavam várias cartas de tarô e alguns búzios. Embora fosse uma tenda, havia na entrada um sino que avisava a chegada de alguém. Por algum motivo, uma pessoa havia conseguido chegar até ali e entrou.

A cigana levantou os olhos languidamente e os repousou sobre o recém-chegado. Sem muito esforço, balançou a cabeça indicando a cadeira para que ele se sentasse e com um único movimento de mãos, todas as cartas e búzios voltaram aos seus lugares.

Começou a sessão. Tensão preenchia o lugar. A coruja se moveu pela primeira vez, parecia inquieta, seus olhos vagavam entre a mesa e o recém-chegado. O olhar que a cigana lançava para as cartas estava mais profundo e amargo do que de costume, sua mão tremia levemente ao lança-las à mesa. A cada carta virada, as chamas das velas tremeluziam tristemente. As fendas da tenda captavam luz e escuridão vindas de fora, a mescla dos dois fazia sombras com formas estranhas.

Um relâmpago rasgou o céu de cima a baixo, todo o interior da tenda ficou visível. Tudo o que parecia sombrio e misterioso, foi exposto por aquela luz, inclusive o punhal que o recém-chegado trazia consigo.

Ela já havia visto, havia previsto. Ela já sabia, o dia todo esperou. Seu corpo não rejeitou. Não pediu piedade. Apenas aceitou o seu destino. Ela foi forte até o fim. Ela foi vendaval uma vida inteira, mas, no último suspiro, ela foi brisa. Foi conforto. Acalentou seu algoz. Deu vazão à humanidade que tinha dentro de si. Depois de tantos anos transpondo o limite entre a carne e o espírito, foi bom sentir-se apenas humana. Sangrou.

E sua voz frouxa ganhou força e volume, alertou a todos, os quais pudessem ouvir, que não se perdessem, que a perda da humanidade é mais dolorosa do que a perda da vida. É importante sentir, disse ela, é importante respeitar a naturalidade das coisas e entender que o que não se sabe, muitas vezes deve continuar assim, não sabido.

A cortina desceu sobre ela como um manto negro e cálido e turvou sua visão, foi consolo ao seu coração. Seu espetáculo teve o fim que ela esperava.

GuahA
Enviado por GuahA em 18/01/2017
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