Ao pé do fogo

E para provar aos bárbaros nus que éramos representantes de uma elevada civilização (não que eles já não o houvessem percebido), o capitão Ahumm ordenou que se fizesse uma grande fogueira na areia da praia e que nela fossem colocados alguns blocos de natrão, com o objetivo de produzir vidro. O capitão pretendia apresentar o vidro como sendo "gelo vindo do fogo"... mas como explicar o que era gelo para alguém que vivia num clima tão quente quanto o de Cartago?

- Decerto que aqui deve chover granizo, vez por outra! - Declarou nosso escrivão, Azmelqart, para encerrar a discussão.

E assim foi feito. Não tínhamos muita certeza de que estávamos sendo entendidos, mas os bárbaros foram convidados a assistir mais uma demonstração do nosso poder superior. Fogueiras, naturalmente, sabiam o que eram. E, aparentemente, também sacrificavam inimigos nelas, o que reconhecemos como um elogiável sinal de religiosidade - Baal seja louvado!

E eles vieram, ao fim da tarde, na baía protegida onde havíamos fundeado nossas naus, com suas praias de areias brancas cercadas de luxuriante vegetação, à sombra do grande monte de pedra que havíamos batizado como Asherim. Havia pelo menos duas dúzias deles, todos nus: homens altos, mulheres graciosas e crianças curiosas, algumas com seus animais de estimação, como macacos e aves coloridas. Fizeram um semi-círculo ao redor da fogueira, de costas para a floresta e de frente para o mar, e aguardaram.

- Bárbaros, vamos oferecer-lhes um banquete e mostrar-lhes como fazemos gelo com fogo! - Disse o capitão Ahumm em egípcio, com os quais os nativos tinham uma vaga semelhança. Eles entreolharam-se, mas nada responderam. O capitão então deu ordem para acender a fogueira e colocar os peixes que havíamos pescado para assar. Pedaços de natrão foram estrategicamente colocados no meio da lenha.

Os peixes foram assados com bananas compridas que havíamos encontrado crescendo ao longo da costa, algo que, aliás, já havíamos visto os nativos fazer (e assim, soubemos que não eram venenosas). Como pareciam desconhecer o sal (embora residissem próximos ao mar), servimos algumas postas de peixe salgadas, mas fizeram caretas e não quiseram comer.

- Parece que teremos que encontrar alguma outra coisa para comerciar por aqui - comentou o capitão, com tristeza.

O restante do pescado foi servido sem sal. E os bárbaros o comeram com grande contentamento.

Lá pelas tantas, como seria de esperar, mas para surpresa dos bárbaros, um filete de vidro incandescente começou a escorrer das brasas da fogueira. Azmelqart deu uma demonstração de sua perícia como vidraceiro, criando com uma faca alguns pratinhos e figurinhas de animais que deixaram os nativos de queixo caído. Assim que esfriaram, os objetos começaram a passar de mão em mão, entre comentários numa língua gutural e risadas das crianças.

Um homem grande, corpo pintado de vermelho, o lábio inferior furado e trespassado por um pedaço de osso, penas coloridas amarradas na cabeça com cipó, ergueu-se segurando algumas das peças de vidro, e dirigindo-se à Azmelqart, começou a fazer-lhe perguntas. Embora não entendêssemos o que estava sendo perguntado, o capitão farejou ali a possibilidade de fazer negócios.

- Veja se o selvagem possui algo que possamos trocar por peças de vidro - sugeriu ele.

- Essa tintura vermelha no corpo dele, talvez? - Indagou o escrivão.

- Pode ser... - deu de ombros o capitão. - Não é nenhuma púrpura real, mas se descobrirmos o que a produz...

Muitas gesticulações, grunhidos de lá, e de cá todo o nosso arsenal de egípcio, grego e outros idiomas menos cotados, o bárbaro finalmente pareceu ter entendido o que queríamos. Chamou uma das mulheres e lhe ordenou algo. Ela saiu feito uma flecha para dentro do mato, e voltou pouco depois com uns ouriços vermelhos numa cuia. Compreendemos que era daqueles frutos espinhosos que extraíam a tal tintura.

- Isso é interessante... - comentou o capitão para Azmelqart. - Dê-lhe uma figurinha de vidro e indique que precisaremos de uma pilha desses ouriços com pelo menos 4 cúbitos de altura.

Seguiu-se nova discussão, com muitos gestos e grunhidos. O bárbaro grandalhão não parecia muito satisfeito em receber apenas uma figurinha, embora parecesse ter entendido a quantidade de ouriços que havíamos solicitado. Apontava repetidamente para um dos pratinhos feitos por Azmelqart. O capitão acompanhava tudo de perto, com interesse.

- E se oferecermos algo melhor do que esse seu pratinho, Azmelqart? Será que esse bárbaro nos traria... ouro?

- Eu aceitaria uma das mulheres deles, capitão - sugeriu o escrivão, piscando o olho.

- Vemos isso depois. Primeiro, negócios; depois, prazer.

E abrindo um dos baús que havíamos trazido para a praia, dele retirou uma bela taça de vidro vermelho. Os olhos do bárbaro quase pularam das órbitas.

- E então, selvagem? - Perguntou o capitão, em fenício. - O que me dá por isso?

O bárbaro não havia entendido a frase, mas o propósito parecia bem claro. Fez um gesto, para que o capitão o seguisse, e andaram algumas dezenas de metros pela praia até um ponto onde a selva quase avançava pela areia. Apontou para uma árvore frondosa, de tronco cinza-escuro, com talvez 20 cúbitos de altura. O capitão aproximou-se e a olhou sem entender. O bárbaro então, sacou seu machado de pedra e cortou uma lasca comprida do tronco, mostrando-a para o capitão. Este pegou o fragmento e o observou com atenção. Depois, ergueu-o bem alto para que pudéssemos ver.

- Ei! Vejam só que madeira surpreendente... vermelha como brasa!

- Isso deve dar uma tintura de primeira... - ponderou Azmelqart.

Acabamos fechando negócio com os bárbaros. Muitos copos, pratos, garrafas e outras quinquilharias de vidro em troca de troncos da tal madeira vermelha. E nem preciso dizer que isso facilitou sobremaneira a nossa aproximação com as mulheres deles...

- [10-10-2017]