O Flagelo dos Deuses - Parte 2 -

A poeira e o estalo foram as primeiras coisas que quem olhasse o portão podia ver e sentir. E então a porta gloriosa começou a divisar-se. Um pequeno filhete no início que deixava a fraca luz do lado de fora iluminar. Uma luz laranja de fogo e não apenas de céu engrecido. Raios e trovões começaram a acompanhar o barulho do portão sendo forçado. Como se o céu estivesse comemorando aquele assalto a cidadela. O auro portão começou a se divisar ainda mais conforme as dobradiças cediam. A luz foi aumentando, e logo puderam ver a torre das guaritas arrebentada e em chamas. Mais um pouco e puderam ver a silhueta de alguns guardas empalados em suas próprias lanças, iluminados fracamente pela labaredas que agora engoliam toda a guarita. O portão se abriu ainda mais e então parou. No início não puderam entender o que estava ali. O céu negro e a silhueta de homens empalados não deixaram que olhassem mais para baixo. Mas quando olharam ficaram ainda mais aterrorizados.

Aos pés do portão, primeiro puderam divisar apenas a silhueta de um homem, mas logo os olhos se acostumaram a luz que vinha detras da porta gloriosa e então viram que estava longe de ser humano. O que viram era um demonio em preto. Espinhos em seus ombros e uma capa negra que se arrastava no chão. Sua espada estava presa a cintura e dois protuberantes chifres negros retorcidos para trás brotavam de sua cabeça. Aquilo foi o suficiente para boa parte dos homens deixar as fileiras e correr para suas casas ou para os bairros mais altos, abandonando Adelphos e a princesa ante aquela figura infernal. O demônio estava com os braços estendidos apoiados na porta gloriosa, deixando muito claro que foi sua força quem abriu caminho entre aqueles portões. Ele soltou as portas, e puderam ver um corpo caindo de seu braço esquerdo, sendo solto no chão. Com uma calma quase teatral, ele se tornou o primeiro invasor de Nova Olímpia.

Conforme se aproximava viram que se tratava de um cavaleiro e não de um demônio em si, embora jamais tivessem visto uma armadura como aquela antes. Parecia ser impenetrável e mesmo assim não notavam como se ele tivesse dificuldade de movimentar-se com ela. Parecia até que era bem confortável para ele. O elmo era fechado, com uma viseira em linha que deixava poco além de seus olhos aparecendo. Ele continua andando em passo calmo até que parou a cerca de dez metros de distância da praça.

Adelphos estava ofegante, não entendia aquilo. Não entendia a armdura de seu invasor e nem a força absurda que ele tinha por ter aberto aqueles portões. Não entendia soldados reais mortos. Ele simplesmente não compreendia aquele inimigo que surgia do nada. Soldados reais que faziam a guarda cidade apareceram e cercaram ele em círculo. Eram dez soldados no total, todos armados com escudos ovais e lanças longas de pelo menos três metros. Os escudos altos erguidos protegendo seu rosto e o avanço lento e fechado de uma falange. Nenhum inimigo sobreviveria a aquela formação da situação em que estava. Então o Cavaleiro Negro puxou sua espada, e Tirélia viu bem aquela lâmina bronze alaranjada que por tantas vezes viu ser retirada. Ela viu ele firmar as pernas e dobrá-las enquanto erguia espada com duas mãos segurando em seu punho, uma posição de luta que por várias vezes ela estudou e observou ao longo de três anos. Mas o que ela não reconheceu foi quando a lâmina da espada se ascendeu em um fogo rubro aterrorizante e iluminou o peito e capacete daquela figura espectral.

A princesa estava abismada, e também confusa. Aquele era mesmo quem ela pensava, ou era apenas uma coincidencia? Se fosse mesmo ele, por que estava atacando Nova Olimpia e não defendendo-a?

Sem tempo para fazer essas perguntas ou ouvir respostas, a falange avançou corajosamente sobre o inimigo. Antes que pudessem se aproximar o bastante para espetá-lo com as lanças, o cavaleiro demonio ergueu sua espada ígnea e a balançou com força no ar, num corte diagonal de cima para baixo. Um golpe pesado e carregado com força, mas que criou uma massa de ar quente tão forte que estorou entre a falange abrindo a defesa deles. O ar ainda persistiu por mais alguns metros, destruindo a parede de uma casa e incendiando os movéis de madeira. O ser demoníaco virou rápido enquanto a falange parava estupefada e repetiu o golpe no ar, estourando mais um lado da falange e incendiando outra casa e uma barraca do mercado. Os homens que sofreram o impacto direto simplesmente não levantaram mais. Sua pele e carne toda queimada pela massa de ar quente criada pela espada. Os dois lados remanescentes da falange afastaram-se, ainda sem deixar de olhar seu inimigo que agora soltava a mão esquerda do punho da espada e ficava totalmente ereto. Sua armadura negra foi iluminada pelas chamas das casas destruidas que refulgiam na armadura dourada dos soldados caídos. Sua espada em fogo rubro brilhava cruelmente enquanto mudo ele levantou por fim a cabeça, olhando fixamente para Adelphos, como se ignorasse qualquer dano que pudesse vir daqueles remanescentes.

Os gritos dos condenados dentro das casas em chamas começaram a cortar o céu junto com o barulho das altas labaredas. Os hoplitas tentavam refazer a falange andando em volta do demonio, que simplesmente estava lá parado, deixando que eles terminassem.

Adelphos olhava aquilo sem expressão. Seu primeiro instinto foi se colocar entre a visão do demonio e Tirélia. Quando os soldados refizeram a falange, ele gritou alto para os remanescentes.

- Entrem nos quarteis e armem-se! Não podemos deixar que ele avance sobre as pessoas. – Mas estavam todos parados. Adelphos bateu com sua lança no escudo do oficial, chamando atenção deles. – Rápido seus covardes, querem deixar suas mães e namoradas morrerem queimadas?

Aquilo atravessou a garganta dos homens na praça, mas eles entenderam a gravidade da situação. Correram para os quarteis e começaram a juntar armas e armaduras e a vestir-las o mais rápidos que podiam. Enquanto faziam isso, Adelphos ordenou que os soldados que estavam mais proximos a ele começassem a evacuar a pessoas para os bairros mais altos que barricassem as ruas de acesso. Quanto mais dificultassem para aquele demonio melhor. Ele e Tirélia começaram a chamar e a tirar os cidadãos de suas casas, agora nem mesmo pertences poderiam levar. Apenas deveriam sair o mais rápido possível.

Enquanto começavam a se organizar melhor, e os primeiros homens armados saiam do quartel, o Cavaleiro Negro pareceu ter cansado de esperar a ação dos seis hoplitas remanescentes. Ele avançou sobre eles desviando de duas estocadas de lança e aparando uma com a espada. A lança que foi defendida começou a pegar fogo em sua lâmina e o cabo partiu em seguida. O Cavaleiro era incrivelmente rápido, mesmo naquela armadura. O mesmo que havia perdido a lança, ergueu o escudo para se proteger do corte em vertical da lâmina de fogo, mas foi em vão. O escudo foi cortado como manteiga, levando junto um pedaço do braço daquele homem. Os hoplitas pularam se afastando do Cavaleiro demonio, deixando o companheiro ferido em choque com a dor do corte e da cauterização. A dor dele não durou muito. Com o joelho ele derrubou o ferido no chao e depois afundou o pé em seu peito. O impacto não foi diferente do de um martelo de guerra e todo viram a armdura se soltar do peito dele e afundar em seu torax quebrando os ossos e esmagando o coração. A boca do soldado encheu com o sangue e o corpo ficou imóvel sob o pé do demonio. Os outros cinco se afastaram ainda mais, tentando manter a posição enquanto alguns homens corriam com espadas e escudos para auxília-los. Eles pararam uns 5 passos antes, olhando o corpo do soldado e o pé afundado na armadura retorcida, o medo os impediu de continuar.

A fera continuava avançando, despedaçando lanças e escudos a bel-prazer, nada podia parar aquela espada de fogo amaldiçoado. Adelphos via seus homens correndo como baratas, enquanto o Cavaleiro Negro pacientemente escolhia qual deles iria matar. As vezes ele usava o golpe de ar quente para estourar algumas casas que percebia ainda estarem habitadas. O fogo começou a tomar a praça do mercado e as casas em volta, enquanto um a um os homens caiam diante daquele inimigo insano.

- Tirélia, vá para o segundo círculo e obrigue as pessoas a saírem das casas – Adelphos falou para ela. – Use a força se necessário, diga para irem para o palácio, usaremos os muros para ter alguma vantagem para protegê-los.

- Os muros não vão adiantar… - Ela respondeu em pânico. – Ele… Ele abriu a portão com a força dele. Não podemos…

- Não termine essa frase. – Ele a agarrou pelos ombros. – Lembre-se de Bruno. “Quando você pensa que perdeu…”

- “Você perde a batalha antes mesmo de lutar.”- Ela olhou nos olhos de Adelphos enquanto terminava a frase. Apesar de tudo aquilo, ele inspirou esperança nela. – Mas e você? – Ela perguntou, embora soubesse que a resposta destruíria a esperança que tinha juntado.

- Eu vou…

- Ele vai subir contigo e outros homens, barricar a rua principal com tudo que puder e te ajudar a evacuar o segundo círculo. – Respondeu outro homem

Sobre um dos telhados eles viram um jovem de cabelos louros e musculos definidos saíndo de um peitoral negro de ferro e couro. Ele trazia uma alvaja larga com várias flechas em seus ombros e duas espadas curtas na cintura. Usava botas de couro ao invés de sandálias e uma calça de couro e algodão também preto. Seu arco era largo feito com tendão de carneiro. Um disparo daquilo era extramente forte. O jovem Orfeus falou aquilo sem olhar para o casal, ele fitava apenas um alvo a sua frente.

- E você pretende enfrentar aquele monstro sozinho? – Adelphos perguntou.

- Tenho que fazer jus ao nome da minha família. Meu pai não foi capitão do exército atoa. Além do mais eu treinei com meu pai e com Bruno depois dele. E meu último mestre me deu umas cartas na manga.

- Você é forte como seu pai, Atreus era, mas não posso deixar que morra numa luta suícida.

- Como você queria fazer agora pouco? – O jovem foi incisivo. – Eu não estou no exército, então dane-se sua opinião. Tirélia pode ser a princesa, mas ela sozinha não vai conseguir salvar a cidadela. Ele é um inimigo, e eu sou um arqueiro. Me parece uma luta justa.

- Orfeus… - Tirélia olhou para o jovem enquanto ele refulgia no brilho do fogo. Um brilho sombrio estava nos olhos e no sorriso daquele jovem. “Será que devo contar o que eu penso? Será que realmente é Bruno naquela armadura?”

- Não se preocupe, minha irmã de armas. – Orfeus disse confiante. – Seria um insulto ao nosso mestre se eu morresse para um demônio sozinho.

Dizendo isso ele correu sobre o telhado e pulou para a casa seguinte, desviando das chamas. Adelphos não podia deixar de admirar aquele rapaz, mas um peso gigantesco apertou seu coração enquanto olhava-o correndo em direção aquele invasor. “Espero que possamos beber juntos uma vez mais depois de hoje, Orfeus. Por favor não morra.” Pensou o jovem lanceiro.

- Vamos Tirélia… - Adelphos se virou e começou a puxá-la. – Temos um trabalho a fazer.

- Mas se não ajudarmos, ele vai morrer! – A princesa gritou tentando se desvenciliar – Quer deixar o seu melhor amigo morrer!

- Não, eu não quero! – Adelphos virou com os olhos segurando lágrimas. – Os deuses sabem que não quero…Mas…Mas se ele decidiu se sacrificar, eu não tenho direito em deixar que isso seja em vão!

A jovem ficou quieta, começando a enteder que talvez o Olho de Posêidon não tivesse muito o que destruir agora. Lágrimas de tristeza e raiva começavam a escapar enquanto ela seguia com seu noivo e outros soldados pela rua principal. Empurraram várias carroças e as viraram e depois colocaram alguns móveis enquanto a princesa e alguns soldados batiam nos casarões e palacetes e obrigavam os gordos aristocratas a saírem de suas casas e correrem para o pátio do palácio com o povo comum. De acordo como avançavam, aproveitavam para barricar as alamedas e ruas secundárias que davam para o círculo inferior, agora quase todo em chamas.

O terror e o desespero tomavam conta de todos, e não importava o quao rápido tentavam evacuar, não parecia ser rápido o suficiente.

Crianças deixavam seus bonecos caírem, idoso eram quase que largados para trás enquanto as pessoas tentavam correr para o palácio. As mulheres gritavam em desespero e as crianças chamavam suas mães sem entender o que estava acontecendo. Algumas pessoas simplesmente se recusavam a sair de suas casas e ficavam abraçadas com suas famílias. Adelphos ordenou que os homens mais aptos se armassem no palácio, já que o caminho para os quartéis estava comprometido. O cheiro da fumaça se misturava aos gritos de desespero vindo do primeiro círculo e ambos subiam dançando aos céus. Aquele era um espetáculo sangrento, muito mais que qualquer outro que a cidade já tivesse testemunhado.

O Cavaleiro Negro continuava fatiando os homens enquanto seguia para o quartel. Os mais atrasados saiam agora em suas armaduas cintilantes e com os escudos e lanças desajeitadamente em seus braços, apenas para se depararem com aquele espectro infernal passando pelas grades negras e adentrando o pátio de areia. A vários passos de distância ele tomou a espada com as duas mãos e preparou mais um golpe de ar quente.

- Não dessa vez. – O demonio conseguiu ouvir a voz dizer.

Vindo do alto do telhado do quartel, viu uma flecha com penas amareladas ser disparada contra ele. Ele parou o golpe e sem nenhuma dificuldade ele segurou a flecha com a mão. Outras três flechas parecidas foram disparadas, porém se cravando no chão. O que o espectro não viu foi um saco de feitiços preso na haste de todas elas, isso até que ele abriu a mão e olhou a flecha de perto. Ele tentou dar um salto para trás, mas não foi rápido o suficiente. As flechas se irromperam em raios dourados mágicos que percorriam toda a armdura e paralizaram o demônio. Ao inves de um grito de dor o que subiu foi um rugido de fúria enquanto o efeito das flechas combinadas com magia durava naquele ser maligno. Sua voz grossa e raivosa subiu até o segundo círculo e o que deveria ser um alívio, tornou-se um sinal de um inimigo ainda mais enfurecido com aquela cidade.

- Rápido seus idiotas! – Orfeus gritou – Sumam daqui. O efeito das flechas não vai durar para sempre.

Os homens acovardados abandonaram suas lanças e escudos e irromperam pelo portão gradeado atrás do demonio, correndo o mais rápido que podiam pelo portão de ouro. Suas famílias não valiam ter que ficar nem mais um minuto naquela cidadela amaldiçoada.

Enquanto fugiam, o jovem arqueiro viu seu inimigo começar a resistir ao efeito da magia. Primeiro ele apertou a haste da flecha que tinha segurado até quebrá-la. Depois ele balançou sua espada em chamas com um golpe violento partindo as flechas que estava no chão.

O arqueiro preparou duas flechas dessa vez, ambas com a ponta envenenada e mirou no pescoço do mesmo, na abertura do elmo e das placas que protegiam o mesmo.

- Tenho que admitir, você é bem durão. – Orfeus disparou as duas flechas.

O jovem ficou ainda mais impressionado com a técnica do Cavaleiro que deu um passo para o lado e defendeu uma flecha na espada e outra com o braço da armadura. O menino começava a entender que aquele seria provavelmente o inimigo mais memorável de sua vida.

O demonio aproveitou que o rapaz revelou sua posição e golpeou com duas massas de ar quente da lâmina de sua espada. O jovem conseguiu desviar de uma, mas a segunda explodiu um pouco abaixo de seu pé de apoio. O impacto ergueu o jovem a alguns centimetros do telhado e então o jogou direto na arena de areia fina do quartel. As chamas começaram a tomar a construção enquanto o arqueiro caia de costas a alguns passos de distância. O brilho do fogo iluminava aquele céu negro tempestuoso. O jovem teve alguma dificuldade para se erguer, mas felizmente não quebrara nada. Enquanto se levantava viu o demonio se afastando alguns passos, dando ao jovem todo o espaço que precisava para se situar. Em seguida, a espada voltou a lâmina normal, apagando-se suas chamas rubras.

- Bom, parece que eu sou um desafio então. – Ele olhou o Cavaleiro Negro enquanto recuperava o fôlego. – Essa sua espada lembra muito a de um amigo meu. Mas não se preocupe, eu jamais mancharia a memória dele pensando que são a mesma pessoa.

O Cavaleiro apenas tomou posição de luta, aguardando que o jovem fizesse o mesmo. Nenhuma palavra saia daquele elmo com chifres retorcidos.

- Não é de falar muito então. – O menino então puxou suas duas espadas, e as apontou para o Cavaleiro e sem nenhum sinal ou estudo, eles se chocaram.

O Cavaleiro tinha golpes mais lentos e pesados, carregados com uma força e fúria destrutivas que certamente partiriam o arqueiro em dois. O jovem por usa vez era muito mais rápido e golpeava com precisão, obrigando o Cavaleiro a defender-se naquele duelo. O Cavaleiro gira sua espada em um corte horizontal e o menino defende com espada esquerda e gira um golpe com a direita, tambem na horizontal. O demônio se aproxima mais do garoto, sem soltar a espada esquerda e erguendo a defesa para parar o golpe da direita. As espadas se cruzam e o menino aproveita e da chute ombro no inimigo. Eles se soltam e golpeiam-se mais uma vez, dessa vez um corte diagonal de cima para baixo vindo a lâmina alaranjada contra um golpe em conjunto das espadas, esquerda e direita. O menino tenta girar um outro chute, mas foi defendido pelo braço esquerdo do Cavaleiro. O jovem deu um salto, girando no ar para trás a uns três passos de distância, com as espadas fechadas em seu corpo, quando cai, ele abre as espadas apontadas para seu inimigo e corre em direção a ele, dando mais peso no golpe cruzado contra a lâmina. O Cavaleiro vai um passo para trás, flexiona o joelho direito e defende o golpe segurando a espada apenas com a mão direita. Com a mão esquerda ele soca debaixo para cima quase pegando o queixo do jovem. O menino consegue saltar para trás no último instante. Ele gira mais um golpe com espadas, estocando contra o peito do Cavaleiro. Sem muita dificuldade o demonio anda para o lado e defende com a espada apontada para baixo, o proximo golpe ele gira a espada no próprio golpe do arqueiro, ficando cara a cara com o jovem e dando uma cabeçada com o capacete no nariz do menino. O menino usa o impacto para se afastar e bate o golpe com força na coxa de aço negro da armadura. O golpe não arranha o metal, mas é o suficiente para fazer o inimigo ajoelhar. O rapaz aproveita e golpeia com a espada direita contra a cabeça do inimigo, o cavaleiro defende e empurra o golpe com a espada, em seguida gira ainda com o joelho no chão e defende o golpe que viria por trás da esquerda, com o empuxo ele sobe a dois pés novamente dessa vez sua mão esquerda agarra o peitoral da armadura do jovem e ele usa seu peso para tirar o arqueiro do chão e sua força sobre-humana para jogá-lo contra a parede de pedra do quartel.

O jovem começa a sangrar em seu nariz e nos cortes abertos pelo impacto direto com a pedra. Ele sente que seus ossos quase não aguentaram o impacto. Mais uma jogada daquelas e ele seria reduzido de um arqueiro talentoso a um saco de carne imóvel. Lutar contra aquele demônio era difícil para dizer o mínimo. O maldito demonio lutava tanto de perto quanto de longe. Ao incendiar o telhado tirou a vantagem do menino com as flechas e se continuasse a lutar usando espadas acabaria morto. O que mais incomodava o jovem Orfeus era a familiaridade com aqueles golpes. Embora não conseguisse prevê-los, ele sentia que já tinha experimentado alguns deles antes, mas sem toda a carga de ódio e força que estava sendo aplicada. Alguns golpes lembravam seu pai, e outros golpes lembravam… Não. Não podia ser… Aquilo era apenas nostalgia. Alem do mais, comparar o homem honrado que completou seu treinamento a um demônio assassino era ofender a imagem de seu mestre. Enquanto pensava, notou que o Cavaleiro não estava atacando. Ele praticamente deixava que o menino fizesse a consideração que quisesse, quase como se confiasse que não havia chance alguma de perder. Isso enfureceu o jovem. “Sou bom o suficiente para voce brincar, mas não para te vencer, não é?” O menino cuspiu uma bola de sangue que subiu em sua boca com desprezo. ”Preciso de mais espaço.”

Orfeus embainhou suas espadas e tomou seu arco. Buscou algumas flechas normais E colocou três apontadas para o demônio. O menino começou a disparar enquanto seu inimigo se defendia delas. A do centro bateu na espada enquanto as outras duas bateram em seus ombros de aço e cairam no chão. Veio mais dois disparos, um seguido do outro, e de novo ele aparou com a espada e desviou do segundo. Dessa vez mais quatro disparos seguidos. O arqueiro se esforçava, o cavaleiro precisava admitir. Ele aparou o primeiro disparo, desviou do segundo, recuou e segurou o terceiro no braço e com um corte em diagonal ele defendeu o último. Quando olhou para frente não viu Orfeus. O menino aproveitou a distração para correr e deslizar pela areia debaixo das pernas de seu inimigo. Um movimento de pura loucura mais que funcionou. O Cavaleiro ainda tentou acertá-lo cravando a espada na areia fina, mas o menino passou em segurança para atrás do inimigo. Ele aproveitou para desembainhar as espadas e atacar o demônio. Sem tempo para tirar a espada ignea do chão. O Cavaleiro se virou e encarou o jovem com as mãos limpas. Ele desviou do golpe vertical de cima para baixo da mão esquerda e segurou o ante braço do arqueiro com mão esquerda. O menino tentou golpear da diagonal com mão direita, mas a mão de aço de seu oponente parou seu cotovelo antes que continuasse o golpe. Ele deu mais uma cabeçada no rosto do menino e depois um chute forte com o sapato de metal no peito do rapaz.

A força do chute jogou Orfeus para fora do portão gradeado e caiu no chão da praça do mercado. O plano do jovem deu quase certo. Agora ele tinha espaço para lutar usando suas flechas, mas o chute do Cavaleiro Negro inutilizou totalmente o peitoral de sua armadura. Ele ofegava e agradecia aos deuses por terem protegido suas costelas. Seus braços estavam estirados e ele juntava mais coragem para se levantar e continuar aquela luta. Enquanto o menino tentava descansar um pouco para continuar a lutar, o Cavaleiro Negro voltou-se para sua espada e com um puxão com as pernas flexionadas, a retirou de sua bainha de areia. O demônio refulgia entre o sangue e o fogo que tinha espalhado. Ainda com passo calmo, ele começou a caminhar para fora da pequena arena de areia do quartel.

Orfeus escutou o barulho da armadura e rápidamente se levantou. Seus musculos e ombros doíam por causa do impacto do chute. Ele retirou novamente o arco. Agora que tinha espaço de sobra ele poderia usar todas as flechas que quisesse. Ele começou com as flechas com sacos de feitiços. Seus disparos precisos obrigaram o Cavaleiro a desviar rolando ou correndo enquanto era alvejado por flechas com pontas azuis que curvavam seus disparos e tentavam seguí-lo quando ía para o lado. Depois de quize flechas, Orfeus começou a disparar com suas flechas de raios que estouravam em pequenas tempestades elétricas sempre que batiam na armadura ou na espada do cavaleiro. Mesmo assim aquela máquina de matar não parava. Os raios ainda surtiam efeitos, deixando o inimigo mais lento. Mas nem o rugido de raiva e nem gritos de agonia vinham mais daquele ser demoníaco. Quando as flechas de raio acabaram, o Cavaleiro Negro parou seu passo calmo e começou a correr contra o arqueiro. Acuado, o jovem começou a correr em círculos pela praça, desviando dos golpes enfurecidos daquele inimigo. Não estava disposto a arriscar outra luta de espadas com o demônio que estava enfrentando. O rapaz deu um salto sobre uma carroça e então conseguiu um pouco mais de espaço para o disparo, já que ainda era mais bem mais rápido que seu inimigo encouraçado. Suas flechas mágicas tinham acabado, agora tinha apenas flechas leves, cinco flechas pesadas que Bruno ajudara a criar e suas duas flechas especiais que também tinham sido ideia de seu finado mentor. O menino correu e ficou mais alguns passos longe da carroça, puxou uma das flechas pesadas e esperou. A flecha pesada é feita de ferro e tem sua ponta feita em cruz, especialmente feita para passar placas e malhas de aço. Bruno ensinou a propriedade dessas flechas e perderam muitos modelos até acertarem uma com a dinâmica correta. Ele disse que se era forte o suficientes para matar um guerreiro de ferro, também passaria a armadura de qualquer grego que tentasse fazer mal para a familia do menino. Não precisou demorar muito. O Cavaleiro simplesmente arrebentou a carroça com um soco, desfazendo a simples estrutura de madeira. O jovem arqueiro não esperou muito e disparou a flecha pesada. O Cavaleiro simplesmente a defendeu na espada. O menino pensou de novo. “ Se ele consegue defender as flechas leves que são mais rápidas, é óbvio que ele vai conseguir defender as pesadas.”. Era hora de outro movimento desesperado.

Orfeus atirou com uma flecha leve dessa vez e correu mais um pouco, depois atirou outra flecha leve. Ele percebeu que estava ficando sem as flechas normais também. Ele continuou correndo abrindo a distância entre ele o inimigo e guiando o Cavaleiro de volta ao centro da praça. O Cavaleiro voltou a correr atrás do jovem, não parando nem para defender as flechas leves. O arqueiro viu isso e disparou uma pesada, mas foi surpreendido pelo inimigo parando e de novo desviando a flecha com a espada. “ Bruno diria para usar o terreno. Sempre é uma questão de usar o terreno.” Orfeus pensou e começou a olhar em volta de si. Ele olhou para cima e teve uma idéia. Ele correu mais um pouco e então olhou para seu inimigo. Ele esperou um pouco e disparou uma flecha pesada, depois outra. O Cavaleiro Negro parou e defendeu as duas com a espada. Mas ele não defendeu a última flecha leve que passou sobre a corrente que prendia o grande chama sobre um prato de óleo que estava acima de si presa em um poste. O lampeão caiu sobre o cavaleiro e a chama ascendeu todo o óleo incendiando a armadura. Um rugido de ódio muito mais alto e mais enfurecido que o primeiro foi solto pela fera enquanto sua armadura ardia. Mas Orfeu sabia que não demoraria muito para o fogo apagar-se. De fato o demônio devia estar rugindo mais por ter sido enganado duas vezes do que por qualquer dano que sofreu, o rapaz se aproximou um pouco e esperou que a chamas começassem a enfraquecer para que o demônio pudesse enxergá-lo. Ele queria que o Cavaleiro Negro enxergasse aquilo. Quando o Cavaleiro parou de rugir e conseguiu ver através do espectro de fogo que subia por sua armadura, ele olhou para o menino que já estava com uma flecha pesada pronta. Sua última flecha pesada. O rapaz mirou no coração do cavaleiro, onde sabia que a flecha perfuraria e mataria o demônio com um golpe. Com confiança em seu mestre e um sorriso de clara vitória sobre o inimigo, o jovem disparou aquela flecha que ele sabia que o Cavaleiro não conseguiria defender. A flecha foi disparada zunindo com a força do tendão do carneiro. Ela girava pelo ar, cortando com um barulho afiado até seu alvo. O jovem arqueiro estava altivo, confiante, machucado e com seu peitoral arrebentado. O Cavaleiro acabara de conseguir ficar ereto depois de se curvar por causa das chamas. Ele não poderia defender aquele disparo. Sabia disso. Naquele momento, o arqueiro teria vencido.

Mas o Cavaleiro Negro era um inimigo muito mais poderoso que qualquer outro que já existira naquele continente e a despeito de toda a força e confiança do rapaz, a despeito das esperanças da pessoas e da dor da cidadela. A despeito de todo o esforço e o combate digno das lendas, o menino não estava destinado a vencer. A flecha bateu na armadura onde seria o coração do demônio, mas ao invez de forçar passagem pela armadura e levar a alma do invasor devolta para Hades, a flecha pesada simplesmente bateu na placa de aço e caiu no chão.

As labaredas consumiram o resto do óleo sobre a armadura e o cavaleiro continuou de pé. Sua espada de aço infernal apontada para baixo. Os braços esticados. A capa chamuscada, agora tinha alguns buracos por causa das chamas, deixando o aspecto daquele espectro ainda mais aterrorizante. Orfeus estava boquiaberto. “Como? Como isso é possível? Ele é imortal? Invulnéravel? Do que, inferno, é feita essa droga de armadura?” O menino se perguntava enquanto olhava incrédulo para o aterrador oponente. “ Mas isso ainda não acabou!”

O menino puxou uma de suas flechas especiais. Aquela flecha era um segredo entre ele e seu mestre. Certa vez Bruno enfrentou um arqueiro morto-vivo muito habilidoso e ele usava um tipo de flecha perdida no tempo. A flecha era capaz de explodir em fogo-grego quando atingia o alvo. Suas penas eram pretas e ponta era levemente inclinada em um gancho. Quando o combate acabou contra o arqueiro, apenas duas sobraram. Como nenhum ferreiro em Nova Olimpia era capaz de reproduzir aquela tecnologia, o jovem guerreiro confiou as duas últimas flechas de fogo-grego ao jovem aprendiz de arqueiro. “Apenas você e eu sabemos da existencia dessas flechas. Se o rei souber, vai querer passar elas para algum incompetente que vai disperdiça-las. Esconda em sua aljava e nunca deixe que ninguem te veja com elas. No dia em que voce usar a primeira, sua maior vantagem sobre qualquer inimigo acaba.” Disse o mentor do menino para ele.

- Obrigado por confiar em mim, mestre. – Orfeus falou preparando a primeira flecha de fogo grego. Finalmente chegou o momento em que poderia usar uma delas. Ele sabia que o fogo grego jamais se apagava até ter consumido tudo. Ele sabia que assim que explodisse, veria o demônio cozinhar dentro de sua armadura impenetrável. O demônio continuava imóvel, como se esperasse para ver o próximo movimento do desesperado arqueiro. Orfeus respirou fundo, fechou os olhos por um instante, uma prece para o deus Apolo, para que guiasse sua flecha para a danação do inimigo. Sem sorrir ou demonstrar qualquer emoção, ele disparou. Naquele momento, naquele disparo, Orfeus amadureceu de vez. Ele não disparou como um menino desesperado, mas como um arqueiro enfurecido.

Novamente o impossível aconteceu. O Cavaleiro ascendeu sua espada em chamas e golpeou uma onda de ar quente contra a flecha que fora disparada, defendendo-se. A flecha irrompeu em fogo grego assim que deparou-se com a massa. A massa perdeu força com impacto, mas ainda continuou contra o jovem até atingi-lo. A agilidade de Orfeus fez com que ele saltasse para a esquerda, tendo apenas seu braço atingido. O jovem gritou de dor.

O grito de Orfeus tambem ecoou entre o estalo das chamas e os trovões acima de Nova Olimpia. Adelphos e Tirélia pararam para olhar do alto da amurada o que acontecia na praça do mercado. O barulho da explosão, seguido do grito chamara sua atenção. O clima ficou pesado. No círculo inferior, nenhum barulho era audível que não fosse o fogo e as correntes e placas da armadura amaldiçoada se movendo. Adelphos sentia seu coração mais pesado ainda. Se culpava por ter deixado aquele menino fazer o trabalho dele. Orfeu era habilidoso. Conseguiu segurar o demônio até que todo o círculo inferior conseguisse subir para o palácio. Mas agora ele via seu mais querido amigo prostrado, gritando em agonia. Aqueles gritos abalaram ainda mais a moral dos soldados e homens que ajudavam na evacuação. A cidade antes barulhenta e desesperada, agora estava muda. Muda diante dos gritos de Orfeus. Muda desde o segundo rugido de fúria do demônio que clamava a alma da cidadela. E o silêncio daquelas pessoas começou a ser cortado por um choro. Não era um choro barulhento e desperado. Era um choro baixo, bem baixinho. Um choro resignado. Um choro que se rendia ao terror daquele ser. Começou com algumas pessoas. Mas logo ficou possível ouvir de um pedaço da multidão. E não demorou, todas as pessoas sentaram onde estavam, encolheram seus corpos e começaram a chorar. Alguns não choravam, apenas sentavam mudos, encostados em algo ou não, olhavam para seus braços ou para frente, mas não era apenas um olhar de raiva ou terror. Era um olhar sem vida. Um olhar de desistência. A cidade estava morta antes mesmo dele entrar. Que diferença faria simplesmente esperar.

Adelphos estava alheio para aquilo. Para ele, a única coisa que importava naquele momento era a cena que se desenrolava naquela praça incendiada. Tudo que importava era estar lá para ver o que em seu coração ele sabia, era os últimos momentos de seu melhor e mais querido amigo.

Orfeus gritava, mas a dor da queimadura de segundo grau em seu braço esquerdo não era tão grande quanto a dor em seu peito. No momento em que aquela flecha foi defendida, ele conseguiu juntar tudo. No momento em que viu uma defesa tão limpa, tão preparada, ele entendeu que desde o ínicio ele não tinha nenhuma chance de vencer. Ninguem em Nova Olímpia tinha. Talvez Adelphos tivesse, e foi isso que ele se disse para ter esperança. Mas o que mais machucou em seu coração era que finalmente ele entendia quem estava atrás daquela armadura.

O jovem se ergueu, segurando seu braço ferido enquanto tentava ficar de pé. Lágrimas de raiva escapavam de seus olhos enquanto tentava em vão se erguer. O Cavaleiro Negro começou a avançar, dessa vez em passo calmo, olhando aquele valente arqueiro que apesar de estar sériamente ferido, ainda assim se ergueu de pé, meio prostrado e teve coragem de puxar e erguer sua espada da mão direita para ele. O arqueiro falou:

- Por que você está fazendo isso? – Ele gritava. – Essas pessoas te amavam, confiavam em você! Você nos guiou para guerras e vitórias infinitas, e agora vem destruir tudo que você ajudou a construir? Que espécie de monstro traidor você é?

O Cavaleiro continuou avançando até estar apenas um passo de distância do jovem Orfeus. O arqueiro exibia um ódio vibrante contra aquele inimigo, não mais desconhecido.

- Eu amei você como a um irmão! Eu segui você e usei tudo que me ensinou! Você é um maldito traidor! Eu odeio você! – Dizendo isso o jovem ergueu sua espada e tentou um último ataque contra o Cavaleiro Negro.

A espada em chamas também fez seu caminho contra espada do arqueiro. Primeiro cortando a lâmina da espada, que não resistiu a força e o calor, e logo em seguida, num golpe limpo e indolor, decepou a cabeça do menino.

Adelphos assistiu até o final seu mais querido amigo ser morto, e escutou com certa clareza parte do que o menino gritava. Ele apertou a lança de prata estígea em seus dedos e entendeu que era dele a responsabilidade de enfrentar aquele monstro. Seus olhos inundaram, mas ele conteu o choro. Precisava tirar Tirélia daquele círculo e garantir a segurança das pessoas. Por fim, teve uma ideia que talvez funcionasse, e abandonou seu posto indo até a rua principal.

Bruno Galvão
Enviado por Bruno Galvão em 02/10/2017
Reeditado em 03/10/2017
Código do texto: T6131435
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