O Flagelo dos Deuses - Parte 1 -

Os mensageiros de Férquion voltavam com notícias funestas. O campo de batalha estava vazio. Não fossem pelos corpos amontoados, era claro. Os Bárbaros piratas estavam em várias pilhas separadas dos corpos dos soldados de Nova Olimpia e das cidadelas conquistadas. Seus corpos estavam desfigurados, partidos, queimados. Os corpos dos soldados gregos não estavam tão diferentes, exceto por alguns cujos membros tinham sido cortados e cauterizados logo em seguida. Os mensageiros voltaram para o rei, mas eles não sabiam e nem saberiam dizer o que havia acontecido, afinal todos os que podiam ter visto aquilo, agora estavam silenciados.

Já fazia uma semana desde aquela batalha. O luto era recente e Nova Olimpia estava totalmente desprotegida agora. Suas cidadelas conquistadas estavam em revolta, já que não restava nenhum soldado para manter a paz. Todo o pequeno imperio de Ferquion, estava caindo aos pedaços.

Embora em Nova Olímpia o clima de tristeza e desespero fosse maior que a raiva, os mensageiros traziam notícias cada vez mais assombrosas de cidades inteiras queimando como fogueiras gigantescas. Familias estavam abandonando as cidades e se aventurando para o sul, para fugir da ira dos deuses e das facções criminosas que se aproveitavam para espalhar o caos entre o povo. Nova Tebas não tinha tido a mesma sorte, a cidade foi acometida por uma peste incurável, e toda a população morreu antes mesmo que pudessem chegar aos muros da cidade. Os próprios mensageiros que se aventuram a entrar, não voltaram para contar como estava la dentro. Os que ficaram para fora puderam sentir o desespero nos corpos que tinham tentado ainda que rastejando, ir embora daquela cidade amaldiçoada.

Nova Esparta estava em chamas, desde que as tropas partiram a cidade se declarou independente e entrou em guerra civil, e fazia uma semana que a cidade ardia em chamas. Os gritos de ódio e desespero nunca paravam, e os que tiveram sorte, juntaram o mínimo de pertences e foram embora. Nova Atenas não tinha mais contigente e nem homens que pudessem ajudar quando a grande represa estourou. A força da água foi tão forte e tão rápida que não houve tempo para abrir os portões. Foi como despejar água em uma tigela. A cidade toda foi afogada. Os que estavam na acrópole foram fadados a morrer de fome ou tentando nadar entre os escombros até a muralha.

Uma a uma, parecia que os deuses estavam enterrando todos aqueles que tinham sido dominados ou compartilharam das idéias de Ferquion. Depois de duas semanas, Nova Olímpia era a última cidadela ainda habitada em toda a área norte do continente.

Tirélia observava isso de seu quarto no palácio. Aquela cidade alegre, orgulhosa, cheia de vida, agora habitada por pessoas entristecidas. A cidade morrera antes mesmo da guerra ou a peste chegar lá. Nenhum festival, nenhuma bandeira, nenhuma vitória. O martelar das forjas era triste, pesado. O mercado estava em silêncio, como nunca esteve desde a fundação da cidade. E agora os portões gloriosos de ouro estavam sempre fechados.

Ela se perguntava porque não foi lutar com seu mestre. Talvez se ela não tivesse ficado com seu noivo ido ajudar Bruno na batalha, as coisas pudessem ter sido diferentes. Talvez ela tivesse feito alguma diferença.

“Besteira minha.” Ela pensou consigo “ se ele não sobreviveu, provavelmente eu só o atrapalharia”. A princesa se debruçou em sua sacada e continuou olhando para o longe.

Ainda se perguntava quem teria força para matar Bruno. Ela o viu matar minotauros, divisões goblins, trolls e até um dragão. Imaginar que ele tenha sido morto naquele massacre, era impossível. Mas não saía de seu coração aquele sentimento estranho. Em seu coração, sentia que seu mestre estava vivo. “Quem eu quero enganar… Bruno esta morto e eu preciso me acostumar com isso. A culpa é minha. Sempre deixei que ele fizesse tudo sozinho. Alguma hora aconteceria.” A jovem se culpava pelo que havia acontecido “Eu devia mesmo ter ido com ele…”

Enquanto a inconsolável princesa estava perdida em seus pensamentos, não notou que Adelphos entrou em seu quarto. Talvez Adelphos fosse o único perto da felicidade em Nova Olímpia. Ele sempre teve com Bruno uma rixa pela atenção de sua noiva, embora não fosse capaz de entender a diferença da admiração de um aprendiz do amor entre um casal. Ele parou para a olhar e sorriu. Finalmente o protegido dos deuses tinha ido conhecer seus senhores de perto e agora ninguém mais poderia ir contra a vontade dele e de seu sogro. Ele assumiu o posto de Bruno como capitão do exército e estava apenas esperando o luto passar para começar o alistamento obrigatório de todos acima de quinze anos de idade. Tirélia logo casaria com ele e subiria a príncipe e quando Férquion morresse, seria rei. Era mais motivos que o suficiente para ficar alegre. Cidadelas inteiras abandonadas esperando serem saqueadas, uma esposa linda e um trono para se sentar e governar. Seus musculos vibraram enquanto vislumbrava seu brilhante futuro.

Ele parou para olhar sua futura esposa mais uma vez.

Tirélia estava usando um manto rosa de linho fino, que recaía elangantemente sobre as curvas de lutadoras da jovem. Seus seios pequenos eram marcados por ele, deixando um pequeno decote e seu quadril firme era delineado no caimento do manto. Usava braceletes de ouro e brincos com safiras pendidas. Estava sem sandálias, com os pés delicados sobre o mármore gelado de seu quarto.

Adelphos usava um manto preto que deixava a parte esquerda de seu peitoral musculoso aparecendo junto com parte do abdomen. Seus cabelos negros eram penteados para tras no rosto de marfim. Os olhos azuis cintilavam vendo a jovem. O manto era curto e prezo por uma presilha com uma lança gravada em relevo. A metade debaixo de suas coxas grossas aparecia terminando em sandálias de couro. Ele caminhou até sua amada princesa e a abraçou por trás.

- A mulher mais linda de Nova Olímpia não deveria estar tão triste. – Ele disse ao ouvido dela – Assim eu me sinto inútil.

- Não seja bobo – Tirélia se virou para abraça-lo tambem e encostou a cabeça em seu peito – Eu amo estar com você. É só que… Olhe para nossa amada cidade. As pessoas estão desesperadas. Estão com medo do que esta por vir. A dor da perda por si já foi gigantesca naquele massacre. Perdemos maridos, pais, filhos, e até nosso herói. Agora vemos as cidadelas vizinhas sofrendo a ira dos deuses pelo desleixo do meu pai. Acho que nosso povo vai acabar perdendo a esperança.

- As coisas que aconteceram foram casualidades meu anjo. Não existe ira dos deuses nisso. A represa de Nova Atenas era velha e mal cuidada. Nova Esparta sempre foi uma cidade turbulenta e Nova Tebas teve muito azar. Só isso. Os deuses nos protegeram quando a cidade foi fundada e protegeram de gestões muito piores que a do seu pai.

- Mas nenhuma nunca descuidou dos mares. Nova Olimpia é uma cidade amaldiçoada por lorde Posêidon. Meu pai comprometeu de vez o prestígeo dele com os deuses ao dissolver metade da frota.

- A cidadela precisava de mais tropas para conquistar outras. – Adelphos retrucou. – O próprio Bruno disse que precisávamos.

- Bruno era um servo dos deuses. Se ele soubesse de onde veio seu reforço, jamais teria deixado meu pai fazer isso. Se Bruno fosse o rei, muita coisa não teria acontecido.

Adelphos sentiu raiva de Tirélia pela primeira vez ao vê-la cogitar isso. Embora na cabeça da menina ela apenas gostaria de poder ter abdicado do trono passando a coroa para o seu mestre, para seu noivo aquilo soou como se ela quisesse outro marido. Ele a afastou do abraço e com raiva falou:

- Se seu amado mestre fosse tão bom assim, ele não teria morrido na mão de bárbaros. Se queria tanto assim ele, devia ter feito as vezes de homem e pedido a mão dele em casamento!

- Adelphos, não foi isso que eu quis dizer. – Tirélia finalmente entendeu onde o noivo queria levar o assunto. – Eu amo você, não Bruno. Eu queria abdicar do trono e passar para ele, apenas isso.

- Você jogaria fora a linhagem da sua família por um forasteiro? Um ninguem que deu sorte de cair nas graças do profeta e do sumo-sarcedote e assim todo mundo acreditou que ele cumpria a vontade dos deuses? Não acredito que ouvi isso. Você é muito infantil, Tirélia. Temos sorte de sido Bruno quem morreu e não seu pai.

- Adelphos espere!

Mas o lanceiro não esperou. Pisando duro e com seu orgulho ofendido pela memória de um morto, ele saiu do quarto batendo a porta. Tirélia foi deixada para trás para ponderar sua forma de falar da memória de seu mestre.

“Bruno e eu nunca nos amamos.” Ela repetiu isso em pensamento. “Ele foi meu professor e meu amigo. O primeiro homem que me tratou como humano e não como um animal reprodutor. Não tenho culpa de pensar nele com carinho. Quem na minha situação não pensaria?”

Mas era inútil explicar isso para seu noivo ou para seu pai. Suas mentes gregas enraízadas no fato de mulheres serem apenas próximas aos humanos eram incapazes de entender isso. Talvez por ter vindo de um lugar distante fosse por isso que Bruno enxergava as coisas de forma diferente. E ela gostava de como ele via as coisas. “Mas não importa. Ele morreu.” A jovem princesa foi obrigada a repetir isso em sua cabeça. “Bruno morreu.”

Ainda imersa em pensamentos, foi interrompida por batidas na porta. Ela segurou um gemido de choro e suspirou forte antes de recompor-se para responder. Havia aprendido com o melhor a segurar seus sentimentos e fazer aquilo que fosse necessário.

- O que foi! – Sua voz soou mais forte e raivosa do que esperava. Quase pareceu seu mestre quando estava treinando e era interrompido.

- Mileide, o Profeta te aguarda no jardim – veio a voz de um soldado em resposta – Ele diz que precisa de sua ajuda.

“Por que, diabos, Uréfone acha que precisa da minha ajuda?” Ela limitou-se a pensar. E repondeu:

- Diga a ele que já estou indo. – Dizendo isso olhou para o manequim onde sua armadura estava disposta.

A jovem sabia que não precisava, mas teve a sensação que era melhor estar pronta para lutar. Ela olhou pela sacada de novo e viu o céu em revolta. Nuvens negras e cinzas tomando o azul claro e anunciando uma tempestade de imensa força. Bruno havia ensinado a ela que quando os deuses planejam uma catástrofe, o primeiro a chegar é o senhor do céu, para que possa assistir do melhor lugar quais humanos irá salvar, quais irá condenar e quais irá escolher. A menina deu um leve sorriso e começou a vestir sua armadura.

Passando a mão pelas placas de aço e couro macio, começou a se lembrar de quando ganhou a armadura. Ainda se lembrava da alegria dela ao abrir aquele baú e encontrar uma coisa que servisse nela e não apenas para aquiescer os tesouros de seu pai. Férquion odiava aquela armadura, principalmente porque foi dando essa armadura para ela que Bruno conquistou a liberdade de Tirélia. Daquele dia em diante, a princesa podia disputar contra qualquer homem da guarda do pai dela e provalvemente vencer devido ao treino intensivo com o finado escolhido dos deuses.

Os filigramas de prata em forma de águia ainda reluziam na fraca luz. Ela pegou as lâminas abençoadas por Atena e as prendeu no cinto. Apertou os braceletes e as caneleiras sobre as sandálias e pegou sua tiara de aço. A tiara não oferecia proteção nenhuma, mas ficava bonita com a armadura. Atravessou os corredores do palácio com os guardas parando para observá-la. O manto curto azul-escuro que usava por debaixo da armadura deixava suas pernas alvas livres e amostra, e seria um insulto a beleza da princesa não parar para olhar. Os corredores de mármore estavam ficando cada vez mais escuros, e as empregadas ascendiam as primeiras velas e tochas. Mesmo o dourado brilhante das armaduras, estava enegrecido pela tempestade que estava se formando.

Quando saiu para o jardim, o mesmo jardim onde por dias inteiros era treinada até seus musculos pararem de funcionar, o vento forte fazia as folhas e as flores voarem pelo céu. A grama, mesmo curta, era empurrada com uma força absurda. Uréfone estava no centro do jardim a esperando. Sua expressão era triste e pesada, não que a de todos não estivesse assim, mas a de Uréfone era carregada de um temor presente e não de preocupações futuras ou tristeza pelo passado.

- O que aconteceu? – Tirélia viu que não era hora para cumprimentos

- Fico feliz por ter pegado alguns hábitos do seu mestre – Uréfone deu um sorriso de leve – Venha comigo para a Acrópole, tem algo que precisa ver.

Sem questionar o vidente, Tirélia seguiu com ele, deixando para trás a salas negras do palácio de seu pai. Adentrou o pátio cercado da acrópole, percebendo que pouquissimos acólitos faziam a guarda do mesmo. Continuou adentrando o Grande Templo de Zeus. Atravessou as escadarias e entrou no primeiro pavilhão, onde as pessoas rezavam. Continuou para o segundo pavilhão, onde encontrou mais alguns acólitos fazendo a guarda. Permitiram que o profeta e a princesa passassem sem transtornos, segurando as pessoas que buscavam o vidente para confortar suas perdas. Por fim, Tirélia entrou pela primeira vez no terceiro e maior pavilhão. O pavilhão proíbido, onde apenas o sumo-sarcedote, seus acólitos e o rei poderiam entrar.

O Pavilhão nada mais era que uma construção retangular gigantesca, de longe o maior pavilhão da acrópole. Suas colunas eram gigantescas, com mais de 7 metros de altura. Mas o que o deixava ainda maior, era a gigantesca cratera estava no meio dele. Suas paredes de pedra divisadas por colunas grossas e janelas largas eram para proteger um grande abismo abaixo dos pés da princesa. Uma ponte de pedra branca e arcos de mármore com o parapeito em ouro estava diante dela e levava até uma outra plataforma no final do pavilhão com uma onde estava uma estátua de ouro e pedra do próprio senhor do universo. Era larga e alta, com pelo menos 5 metros de algura e largura. A boquiaberta princesa teve que parar de andar pra comtemplar o lugar.

-Minha senhora. – Uréfone falou. – Em outras circunstâncias eu deixaria que admirasse essa construção. Mas temos pressa.

- Ok, entendi. – Ela voltou a andar.

Do outro lado, o sumo-sarcedote Kleon esperava por eles. Estava vestido diferente do manto habitual, usando um traje que mais lembrava uma mistura de armadura e túnica branca e dourada. Os panos brancos e filigramas de ouro desciam de um peitoral de couro e aço banhados em ouro. Trazia um elmo grego com uma águia sobre sua cabeça e pela primeira vez ela o viu portando o grande cajado do templo. Um imenso bastão de dois metros e meio com um raio de cristal azul em sua ponta. Não importava o motivo, mas a princesa estava começando a entender que era muito sério.

- Leide Tirélia, fico feliz que tenha vindo com tanta presteza. – Kleon falou enquanto se dirigia para a estátua. – Irei explicar-lhe o que está acontecendo durante o caminho. Por enquanto apenas observe.

Kleon colocou a palma das mãos sobre a base da estátua, entre os pés de zeus. Com um som alto de destrava, a estátua começou a se abrir enquanto revelava um caminho de escadas para baixo. Quando terminou de abrir, Kleon desceu na frente, enquanto Tirélia ia no meio, seguida por Uréfone. Logo que o profeta desceu, a estátua começou a se fechar.

O caminho era cavernoso, dentro da rocha esculpida. Não havia trabalho ou classe naqueles degraus, sendo feitos na própria rocha da caverna. Tirélia logo entendeu que aquela descida infinita era levada para o fundo do abismo que estava logo acima. As tochas iluminavam precariamente enquanto a umidade descia pelas paredes de rocha nua.

- Muito tempo atrás, quando o templo ficou pronto, os deuses demandaram que contruíssemos uma frota e defendessemos os mares norte deste continente. – Kleon começou a falar.

- Conheço essa parte da história, junto desse dever eles amaldiçoaram a cidade, deixando claro que o fim dela estaria atrelado a invasão do continente. – A princesa foi incisiva.

- Sim, todos na cidade conhecem essa história – Kleon falou – O que ninguem conheçe é o presente de Posêidon.

- Presente?

- Logo quando os deuses deram essa tarefa tão árdua de vigiar os mares, o primeiro sumo-sacerdote explicou que de bom grado fariam, mas que levaria muito tempo até a primeira frota ficar pronta e que não teriam como proteger a ilha até isso. Ele pediu misericórdia dos deuses e que dessem mais tempo para eles. Ao inves de tempo Posêidon concedeu poder.

- Como assim? – Tirélia não tinha notado que tinham parado de descer.

Estavam em um corredor de pedra, não diferente das escadarias, seguiam por ele enquanto Kleon explicava a história. Quando a jovem fez sua pergunta, estacaram diante de uma porta de carvalho escura. O clérigo deu um passo para o lado e abriu a porta deixando a que a princesa fosse incapaz de acreditar em seus olhos.

Diante da princesa, escondido da cidade dentro do abismo, estava uma enorme esfera azul vibrante. Raios e névoa da mesma cor escapavam de sua crosta. Podia divisar vários filigramas incompreensíveis em azul mais escuro, mas não era capaz de olhar por muito tempo para a luz emitida por aquela esfera.

- Esse é o Olho de Posêidon. – Kleon falou – Dado pelo senhor dos mares para o primeiro sumo-sarcedote, mil anos atrás. É uma esfera de energia mágica maciça. Mesmo a senhora que não tem afinidade com magia consegue perceber não é?

- E o que ele faz? – Tirélia perguntou boquiaberta.

- Bom, mil anos atrás ele controlou as tempestades para que conseguissemos afundar os navios inimigos até que as frotas ficassem prontas. Por sessenta anos, ele foi nossa linha mais poderosa de defesa marítma. Mas quando as frotas ficaram todas prontas, ele simplesmente parou de funcionar. Ele não respondia mais ao cajado do sumo-sarcedote e parou de produzir tempestades e de brilhar. Mas ele não desapareceu.

- E por que ele está aqui na base do templo?

- O primeiro rei e o primeiro sumo-sarcedote chegaram a conclusão que era poder demais para deixar exposto para qualquer humando alcançar e eventualmente ligar o olho. Sabe, os deuses são cruéis, lembra-se.

- Mas ele não me parece desligado. – A princesa deu mais um passo para frente, olhando fixamente para a esfera.

Agora ela notava que não estava apenas com os dois que a acompanharam na sala. Vários sarcedotes estavam sentados em volta do olho, com as pernas cruzadas e contas na mão, rezando para que os deuses tivessem piedade daquela cidade tão sofrida.

- Ele não está. – Uréfone quem respondeu – No dia em que recebemos a notícia da invasão, ele voltou a dar sinais de funcionamento. Começou com pequenos lampejos e logo ele estava tão energizado que mal conseguimos nos aproximar. O olho matou muitos dos que estavam rezando próximos a ele. Simplesmente transformou sua carne em mana e devorou os corpos. Você pode ver pelo número de pessoas longe. Não é um artefato comum. Os relatos de mil anos atrás registravam o brilho e a névoa, mas nunca viram raios disparados da esfera. Acreditamos que a energia acumulada ao longo dos séculos tornou o Olho, instável.

- Os Acólitos e eu estamos desde a invasão, rezando em volta do olho – Kleon disse – Pedindo a lorde Posêidon que acalmasse sua ira. Mas… Desde que recebemos a notícia do massacre a quantidade de energia e de raios de mana vem aumentando absurdamente. Antes eu absorvia a maior parte com o cajado e liberava logo em seguida contra os fundos da acrópole. Agora…

- Agora… - Tirélia esperou a continuação.

- Agora mesmo o que o cajado consegue absorver não é suficiente, e nossas preçes são não o suficiente para conter a força do olho. Precisamos movê-lo para fora da cidade.

- E por que me chamaram e não meu pai?

- Eu não sei se viu o rei nas duas últimas semanas, mas a sanidade de seu pai está… fragmentada. Ferquion não tem mais capacidade de tomar decisões complicadas como essa. Nossa última esperança é você.

- Eu não tenho ligação com magia. Não sei como ajudar.

- Bruno falava com os deuses, ele nunca falou em como desligar o olho ou algo parecido? – Uréfone disse.

- Não. Ele não conversava muito sobre o que os deuses falavam para ele. – Tirélia pensou – Como pretende mover o Olho?

- Mais a frente está a entrada de uma galeria que leva até para fora da cidade para o mar. O olho foi originalmente encontrado na praia e então movido para cá. Pretendo levar de volta para Poseidon o artefato dele.

- E no que eu posso ajudar?

- O olho só responde ao cajado e ultimamente não vem sendo muito obediente. – Kleon riu funestamente. – Seria uma boa ideia evacuar a cidadela, caso ele decida liberar seu poder.

- Está dizendo que corremos o risco dessa coisa explodir e levar a cidade inteira junto com ele? – Tirélia falou mais alto do que gostaria e fez todos os acólitos olharem para ela. Ela pode sentir o terror no rosto deles.

- Eu não ia contar dessa forma para eles – Kleon confessou – Mas, sim. Corremos o risco do Olho entrar em colapso.

A princesa se envergonhou por ter se exaltado diante do problema. Sabia que seu mestre jamais teria tido tal reação. Ela queria que ele estivesse ali, para conduzir a situação. Bruno certamente teria dado um jeito. “No mínimo ele pediria por favor a Poseidon e o olho pararia de funcionar.” Ela pensou enquanto subia devolta para o terceiro pavilhão.

Pela primeira vez em sua vida, a jovem guerreira estava sofrendo o peso de sua coroa, forçada a liderar sem que ao mínimo estivesse pronta para isso. Ela precisava de ajuda. De um ponto forte para se apoiar e começar a organizar a evacuação. Só existia um homem vivo em toda Nova Olimpia que teria esse poder e prestígio agora: seu noivo, Adelphos.

Tirélia disparou do templo até aos quartéis da cidade, onde sabia que seu amado estaria. Não importava que ele estivesse bravo com ela, o que estava para acontecer era muito pior que uma briga de casal. Embora o céu ficasse negro como se fosse noite, e a cidade agora fosse iluminada por fogueiras e tochas, ela não parou para prestar atenção nisso. Mesmo o cheiro de fogo e madeira queimada fosse muito mais forte que a chuva, a jovem apenas correu.

Atravessou a rua principal em disparada, sem deixar que ninguem a parasse ou que mesmo a cumprimentar. Todos os rostos estavam se voltando para ela enquanto corria. Olhos tristes, sorrisos roubados. O terror e o desespero daqueles rostos pareciam só aumentar. Não aumentava na verdade, as pessoas estavam tão imersas em seu luto que mal percebiam que era sua líder quem corria em desespero para a base da cidadela. Mas isso não importava para a jovem lutadora. Toda aquela pressão, todo aquele medo. Aquilo simplesmente desabou em suas costas. Era coisa demais. A perda do império, a perda dos exercitos, a tristeza da cidade, a insegurança de seu noivo, a insanidade de seu pai, a morte de seu mestre, e agora o maldito artefato divino entrando em colapso. O que ela faria? O que diria para Adelphos? Como iria convencê-lo ou resolver aquilo? Ela nunca tinha liderado. Ela não aprendeu isso. Resumiu sua vida em seguir os outros. Primeiro seu pai, depois seu mentor. Aquilo começou a subir por sua garganta, as palavras engasgavam enquanto respirava para manter a corrida. Sua cabeça girava e ela começava a se perguntar se aguentaria aquilo.

Quando chegou a parte baixa da cidade, simplesmente ignorou o mercado quase vazio e foi até o prédio do quartel. A construção se ergueu negra diante das fogueiras de seu portão. Algumas janelas exibiam a luz das tochas, mas já não era possivel divisar a cerâmica vermelha do telhado da rocha cinzenta das paredes. Ela passou pelo pátio de areia com alguns jovens batendo desajeitadamente nos manequins de madeira, adentrou o edifício e foi direto para o escritório do capitão.

Seu coração não tinha errado, Adelphos realmente estava lá junto de dois novos oficiais que tinha recentemente nomeado. Explicava parte de seu plano para refazer pelo menos a defesa da cidadela, quando Tirélia simplesmente irrompeu pela porta entre aberta. Todos pararam de olhar o capitão para olhar a princesa. Os novos oficiais fizeram mensão de se ajoelhar, mas antes que conseguissem Tirélia passou por eles e se agarrou ao peito do noivo. Não podemos culpá-la por antes de conseguir falar qualquer coisa que estava em sua garganta, ela começou a chorar.

Seu choro era alto, desesperado e sincero. Seus soluços partiram o coração dos oficiais que estavam mudos e parados, sem saber como reagir. Adelphos a envolveu com um dos braços e então apontou a porta para eles com o outro. Eles rapidamente saíram, tendo o bom senso de fechar a porta atrás de si. O jovem lanceiro abraçou então sua noiva, sem entender por que aquela comoção, mas não tinha coragem para impedir o choro pedindo por explicações. Ele limitou-se a manter o abraço e esperar que ela estivesse em condições de falar alguma coisa, então apoiou-se na mesa e esperou que terminasse.

Tirélia continuou por mais alguns minutos, até que a voz de Bruno a impediu a continuar. “Se você tem algo para fazer apenas faça e admita as consequências. Ações resolvem problemas, chorar apenas os extendem. Se precisa chorar, faça quando ninguem depender de você.” Aquilo soou em sua cabeça como uma martelada, a lição mais dura de seu mestre, e a única que importava naquele momento. Ela engoliu o choro e começou a se recompor. Meio bruscamente, mas ela saiu do abraço. Limpou as lagrimas no bracelete da armadura e então olhou para Adelphos. Seus olhos ainda tentaram lacrimejar novamente, mas ela segurou. Ela precisava segurar.

- Nós… – Tirélia ofegou. – Nós precisamos… evacuar a cidadela.

- Como assim? – Adelphos falou. – Que espécie de não-senso foi isso que voce acabou de falar? – O lanceiro olhava incrédulo.

- Existe um Artefato divino debaixo do terceiro pavilhão da Acrópole. Eles chamam de Olho de Posêidon. – Tirélia não conseguiu uma forma mais sutil de dizer a próxima frase. – O artefato corre o risco de explodir e destruir a cidade toda com o raio da explosão

- Como… Tirélia, você se ouviu…

- Adelphos, sei que para você e meu pai boa parte do que eu digo é besteira e vocês são incapazes de enxergar um palmo além de suas próprias ambições. E apesar disso, por algum motivo eu ainda te amo. Mas agora é hora de voce entender que se não me ouvir dessa vez, não vai sobrar nada para você governar, de cinzas e destroços. Isso se você sobreviver.

- Tirélia, eu nunca quis parecer que me importava mais com o trono que você. Se você entendeu assim eu sinto muito…

- Isso não importa agora, Adelphos. Precisamos começar a evacuar a cidade. Se aquele artefato estourar como Kleon acredita que possa acontecer. Estamos todos perdidos.

- E evacuar é a única forma? Não podemos fazer mais nada?

- Kleon e Uréfone vão tentar conduzir a esfera pela galeria abaixo da colina que leva até o mar e afastar o olho da cidadela. Mas ele não sabe dizer quanto tempo tem para isso.

- Na pior das hipoteses eles estão considerando se sacrificar pelo povo. – Adelphos escancarou a verdade mais dura daquele plano desesperado.

Tirélia não tinha entendido isso até então. A urgencia dos fatos não deixaram que ela entendesse que toda a Acrópole estava se sacrificando tentando se livrar daquele artefato amaldiçoado. Ela segurou as lágrimas novamente. Enquanto ela desesperadamente tentava liderar como disseram para que fizesse, ela esqueceu que provavelmente perderia dois amigos de quem sentiria muita falta e nutria profundo respeito. “Eu estou falhando com todo mundo ultimamente.” Pensou a triste princesa. “Talvez eu que devesse passar a coroa para Adelphos antes que eu faça mais algum erro.”

Alheio aos pensamentos da amada, o capitão do exército chamou seus oficiais e ordenou que reunissem todos os jovens e homens capazes de erguer uma espada e alinhassem na praça do mercado. Ele sabia que precisaria do maximo de homens possivel para ajudar a evacuar a cidadela toda. Precisava instruir todos a levarem o minimo de pertences possível e a priorizar aqueles que tinham mais dificuldades primeiro, como os idoso e crianças. Seria muito mais fácil se ele tivesse pelo menos um oitavo do exército vivo dentros das muralhas, mas parecia que os deuses riam da cara dele mesmo naquela situação. Quando os oficiais saíram, ele começou a vestir sua armadura negra sobre o manto tambem preto. Os filigramas de prata traziam a imagem de uma biga puxada por dois corcéis no peito. As caneleiras e os braceletes tinham pequenos espinhos para que pudesse lutar a curta distância. Ele colocou o elmo com penachos azuis debaixo do braço e pegou sua lança de prata banhada no Estige.

Ele foi até Tirélia e silenciou seus pensamentos com um beijo e depois a abraçou forte.

- Tudo vai ficar bem. Vamos resolver juntos isso e garantir que Nova Olimpia veja mais um dia.

- T-tá. – Ela gaguejou com a dor em sua garganta. Tinha tanta coisa que ela queria falar para ele. Mas nada pareceu apropriado naquele momento. Foi a primeira vez que viu um lado muito mais compreensivo de seu noivo.

Ele a tomou pela mão e a conduziu para fora do quartel. Passando pelos corredores engrecidos que ela não tinha notado antes. Tirélia começou a sentir mais segura. Menos sozinha pelo menos. Enquanto seu Noivo a guiava na frente com braço extendido para trás segurando mão dela. Como se tivesse notado que ela não queria soltar, mesmo que não estivesse pronta para acompanhar o ritmo de seu passo. Eles saíram e chegaram na praça do mercado. Vários homens já estavam enfileirados, esperando as ordens do capitão. Os oficiais iam para as partes superiores, chamando agora a baixa aristocracia para atender ao chamado do comandante das tropas.

A praça era bem iluminada pela alta fogueira em seu centro e pelas tochas presas em seus pilares altos de madeira. Tirélia podia ver o quão alto era a muralha e o portão dourado dali. Mas ver aqueles muros tão altos sem nenhuma patrulha foi desesperador. As torres estavam apagadas e o céu negro parecia tocar nelas. Como se quisesse engolir a muralha da cidadela.

O alto portão de sete metros de altura de ouro maciço permanecia fechado, mas ver aquilo a fazia se lembrar dos dias gloriosos da cidade, quando mesmo aberto, ninguém ousaria passar por aqueles portões sem ser convidado. As luzes alaranjadas dentro das casas a fazia esquecer que ainda era dia, e já estava acreditando que sempre foi noite daquela forma. Parecia que Nova Olimpia de repente foi removida do mundo, e agora estava passando por seus momentos derradeiros no jogo dos deuses. Mas a princesa nunca saberia dizer se estava certa, ou se era apenas a raiva do momento. Adelphos colocou seu elmo e começou a falar em voz alta e imponente com os camponeses e civis:

- Senhores! Vocês foram reunidos aqui para que pudessemos garantir segurança de todas as pessoas da cidade. Não temos tempo para explicações detalhadas, mas a cidade toda precisa ser… - O Lanceiro então foi interrompido.

O que o interrompeu foi um grito de desespero. Um grito alto e grave de alguem morrendo. Antes que ele pudesse voltar a falar, outro grito se seguiu, e depois outro. E logo em seguida mais três. E por fim ouviram alguem pedir desesperadamente que se afastasse e tivesse miséricórdia, e em seguida um grito tão apavorado que partiu a alma daqueles homens enfilerados. E por fim o silêncio. Um silêncio sepulcral, um silêncio de escuridão.

- O que diabos foi isso? – Adelphos limitou-se a perguntar em voz alta.

Ele se lembrava que mandou alguns homens que o rei dispos para proteger o povo comum, para defender as guaritas na chegada para o portão. Para que ele soubesse se algum fazendeiro ou comerciante precisasse entrar. Ele sabia que nenhuma das cidadelas vizinhas tinha condições de atacá-lo. Mas aqueles gritos, foram claramentes gritos de pessoas morrendo. Ele olhou para cima no passadiço sobre o muro e viu o soldado que guardava a alavanca do portão olhar sobre a amurada para baixo. Antes que o soldado pudesse dar qualquer relatório, uma espada curta atravessou a abertura do rosto de seu elmo e despontou brilhando nas chamas pela sua cabeça ensanguentada. O soldado deu dois passos para o lado e despencou do passadiço caindo próximo ao portão.

Os homens na praça do mercado gritaram em terror quando viram aquilo.

“Isso é impossível.” Adelphos falou. “Nenhum homem comum teria acertado um lançamento desse sobre um muro de dez metros. E nenhuma cidade teria um exército tão confiante assim de conseguir arrombar aquele portão.”Mas Adelphos aprenderia naquele dia que impossível é uma palavra relativa quando se vive em uma cidade amaldiçoada. Ele ia dar a ordem para os homens se armarem, quando começou a ouvir um rangido familiar. Era o rangido das dobradiças do portão sendo forçadas.

- Pelos deuses! – Adelphos deixou escapar boquiaberto, incrédulo pelo que seus olhos viam.

A poeira eo estalo foram as primeiras coisas que quem olhasse o portão podia ver e sentir. E então a porta gloriosa começou a divisar-se. Um pequeno filhete no início que deixava a fraca luz do lado de fora iluminar. Uma luz laranja de fogo e não apenas de céu engrecido. Raios e trovões começaram a acompanhar o barulho do portão sendo forçado. Como se o céu estivesse comemorando aquele assalto a cidadela. O auro portão começou a se divisar ainda mais conforme as dobradiças cediam. A luz foi aumentando, e logo puderam ver a torre das guaritas arrebentada e em chamas. Mais um pouco e puderam ver a silhueta de alguns guardas empalados em suas próprias lanças, iluminados fracamente pela labaredas que agora engoliam toda a guarita. O portão se abriu ainda mais e então parou. No início não puderam entender o que estava ali. O céu negro e a silhueta de homens empalados não deixaram que olhassem mais para baixo. Mas quando olharam ficaram ainda mais aterrorizados.

Aos pés do portão, primeiro puderam divisar apenas a silhueta de um homem, mas logo os olhos se acostumaram a luz que vinha detras da porta gloriosa e então viram que estava longe de ser humano. O que viram era um demonio em preto. Espinhos em seus ombros e uma capa negra que se arrastava no chão. Sua espada estava presa a cintura e dois protuberantes chifres negros retorcidos para trás brotavam de sua cabeça. Aquilo foi o suficiente para boa parte dos homens deixar as fileiras e correr para suas casas ou para os bairros mais altos, abandonando Adelphos e a princesa ante aquela figura infernal. O demônio estava com os braços estendidos apoiados na porta gloriosa, deixando muito claro que foi sua força quem abriu caminho entre aqueles portões. Ele soltou as portas, e puderam ver um corpo caindo de seu braço esquerdo, sendo solto no chão. Com uma calma quase teatral, ele se tornou o primeiro invasor de Nova Olímpia.

...

Para quem leu até aqui, meus sinceros agradecimentos. Por favor comentem o conto, quero muito saber a opinião de vocês. Esse conto é feito com base em um livro que estou escrevendo. Explicar os nomes e a história tomaria certo tempo, e prefiro deixar que me digam se a qualidade do conto toma por aceitável. Não sou muito bom em romance, nunca fui. Mas acredito que me supero nas batalhas. Caso quem leu gostar e os comentários pedirem, postarei a segunda parte.

Atenciosamente,

Bruno.

Bruno Galvão
Enviado por Bruno Galvão em 02/10/2017
Código do texto: T6130567
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