Encontrei na AACS - Associação dos Amigos do Caminho de Santiago - do Rio de Janeiro, através da minha hoje amiga Inês Serpa, o auxílio emergencial e o encorajamento necessários para ir em frente.

De repente lá estava eu em Madri e algumas horas depois em Pamplona, completamente inebriado pela Espanha que eu já conhecia. Mas agora era diferente: eu era um peregrino.

Em Pamplona, aquela cidade onde as pessoas correm dos touros nas ruas, encontrei dois brasileiros de Santa Catarina que passariam a fazer parte da minha vida: Paulo "Dom Quixote" e sua esposa Marta.

Fomos juntos no único ônibus que saía à tarde de Pamplona para Saint-Jean-Pied-de-Port, na França, onde no dia seguinte iniciaríamos nossa aventura: caminhar quase 900 km até Santiago de Compostela pelas entranhas da Espanha.

Jantamos e jogamos muita conversa dentro, animados pelo vinho num pequeno, mas aconchegante restaurante local.
Capítulo 03 - De Saint-Jean-Pied-de-Port a Roncesvalles

De repente despertei com alguém acendendo as luzes do dormitório e nos dizendo em francês que tínhamos hora pra sair dali.
Um turbilhão de lembranças atravessou minha mente. Onde estava eu? Por que aquela mulher estava falando o idioma dos gauleses e dos francos? Subitamente me dei conta de onde estava: em Saint-Jean-Pied-de-Port, na França, nos Pirineus Atlânticos e a milhares de quilômetros de casa. Lembrei-me também de que havia caído do meu beliche de madrugada, estatelando-me ao solo ruidosamente e acordando todos os demais peregrinos. Ouvi ofensas em vários idiomas e certamente minha pobre mãezinha foi maldosamente adjetivada em várias línguas.

Na ocasião fui acudido por Marta e Dom Quixote que, incrédulos e preocupados, queriam saber o que havia ocorrido e como eu estava.

Refeito do susto, memória em dia e café consumido, lá fomos os três iniciar nossa jornada de 830 km. Tínhamos que cruzar toda a Espanha, de leste para oeste. Santiago, o apóstolo, nos aguardava em sua grandiosa Catedral.

Começamos a caminhar juntos, mas a cada minuto percebia estar retardando involuntariamente meus amigos brasileiros, distanciando-me deles a cada foto que fazia (fiz mais de 5.000 delas ao longo do Caminho).

Paulo era alto, parecia um galgo, sem um grama de gordura sequer. Sua mochila parecia mais leve que a de Marta, que era mais baixa que ele, mas caminhava com a mesma destreza e determinação.

Vi-os desaparecer na bruma que encobria os Pirineus naquela manhã gelada de primavera europeia. Não houve qualquer despedida formal.

Já sozinho no caminho conhecido como o de "Napoleão" e aproveitando que Paulo e Marta haviam sumido por completo, como que tragados pelo nevoeiro que agora tomava conta de tudo, comecei a colocar em ordem meus pensamentos enquanto a subida ia ficando cada vez mais pronunciada exigindo muito de mim fisicamente.

Por que eu estava ali? Por quê?
Por que eu havia deixado a linda vista que tenho do mar no Rio, a companhia da minha dedicada e valente esposa, o carinho dos meus netos e do meu filho, por uma caminhada estafante, por um vento gélido que me cortava a pele e retardava meus passos, pela incerteza da chegada?

Por quê?

Talvez porque estando à beira de completar sete décadas de existência e, percebendo que o ser humano não vai muito além disso, quisesse viver algo mais intenso enquanto tinha condições físicas e mentais para tentar.

Após passar pelo Alberque Orisson, onde parei rapidamente para um descanso, além de aproveitar para completar meu cantil com a gélida e pura água que descia das montanhas, continuei minha caminhada subindo, subindo, sempre subindo.

Comecei a encontrar neve pelo caminho. O medo de escorregar na fina camada de gelo que ia se formando sobre a trilha era grande. Um escorregão, um deslize, uma perna quebrada e pronto: adeus Caminho.
As curvas se sucediam uma após a outra.

Depois de uma nova avistava uma seguinte, mais alta ainda, como que a desafiar-me: vem, vem Sergio - alcança-me se puderes. Na verdade os Pirineus Atlânticos estavam me testando.

Havia algumas cruzes e lápides à beira do caminho. Eram de peregrinos que não tinham conseguido completar suas jornadas. Elas continham, além do nome, a data do desenlace do desafortunado e uma citação religiosa qualquer, quase sempre associada a Santiago de Compostela.

Onde estaria a lápide de Pirene, a amante favorita de Hércules que, segundo a mitologia grega, havia sido sepultada por ele em algum lugar por ali depois que este, ferido de amor e tristeza pela sua morte, teria empurrado toda a Península Ibérica sobre o restante do Continente Europeu, criando com o colossal impacto as montanhas que hoje conhecemos como Pirineus?

Foi com este pensamento que atingi já no lado espanhol o ponto mais alto dessa primeira etapa e iniciei, com os tênis complemente enlameados, a descida para Roncesvalles.

Após poucos quilômetros de descida e alguns escorregões sem maiores consequências, avistei sentada à beira do caminho recostada a uma árvore, uma jovem muito clara, que a julgar pelo modo como me olhava parecia estar em dificuldades.

E eu estava certo...

Aproximei-me dela e perguntei se necessitava de ajuda. Recebi um "yes" como resposta. Quis saber o que havia ocorrido e ela apontou para seu pé direito dizendo que havia escorregado e torcido o mesmo.

Seu nome era Frida. Uma jovem alemã, meio corpulenta, que resolvera fazer o Caminho inicialmente até Burgos, para voltar no ano seguinte e completá-lo. Ajudei-a a se levantar e iniciamos juntos a descida para Roncesvalles onde àquela altura todos os peregrinos já deveriam ter chegado e certamente estariam batendo papo, trocando informações sobre a etapa seguinte.

Roncesvalles, em basco: Orreaga, é uma cidadezinha da Comunidade Autônoma da Navarra com 15,28 km² de área e somente 34 habitantes.
Situa-se à margem do rio Urrobi a uma altitude de cerca de 900 metros nos Pireneus a 4 km em linha reta da fronteira com a França. Nosso destino era o Albergue para Peregrinos da Colegiata de Santa Maria de Orreaga, na realidade um antigo monastério adaptado para receber os peregrinos que partem de Saint-Jean na França ou que preferem começar o Caminho dali mesmo.

Cada passo para Frida vinha acompanhado de um lamento. A dor realmente devia incomodá-la muito. Tudo o que podia fazer era encorajá-la a prosseguir e deixar que ela se apoiasse em mim segurando meu braço.

Enquanto descíamos a escorregadia trilha em meio ao bosque, começou a cair uma daquelas chuvas não muito fortes, mas que incomodam a gente. Isso tornava ainda mais difícil nossa caminhada, aumentando nosso risco de quedas.

Já próximos a Roncesvalles comecei a imaginar onde teria ocorrido naquele bosque a famosa batalha em que poucos bascos atacaram e mataram mais de 10.000 soldados do exército de retaguarda de Carlos Magno, por este ter mandado incendiar, em sua retirada para a França, a cidade de Pamplona por onde passou, para que esta não servisse de fortaleza aos mouros que vinham logo atrás.

Foi uma carnificina terrível onde além dos soldados acabou igualmente perdendo a vida o sobrinho de Carlos Magno, Rolan, que comandava esse destacamento.

Dizem que a terra tingiu-se de sangue. A montanha de cadáveres era tão grande que todos foram enterrados em uma sepultura coletiva, pois seria impossível fazê-lo de outra forma.

A noite já se aproximava quando eu e Frida avistamos o Seminário. Fomos os últimos a chegar ali. Olhei meu relógio e percebi, meio incrédulo, que havia feito cerca de 26 km em 12 horas desde Saint-Jean. Uma média portanto de pouco mais de 2 km por hora (horrível, pois a média desejável situa-se entre 3,5 a 5 km por hora).

Assim que fomos avistados pelos voluntários da Colegiata, estes vieram correndo em nossa direção, apressando-se em aliviar-nos de nossas mochilas (coisa que comumente não ocorre). Certamente perceberam de longe que tínhamos tido dificuldades na travessia desse trecho. Frida foi carregada por dois jovens até o albergue do Seminário.

Exausto como Hércules após ter cumprido as 12 tarefas que lhe foram impostas pelo Oráculo por ter assassinado sua mulher e filhos por influência de Hera, a vingativa mulher de Zeus, tomei uma ducha quente, quase fumegante, mas que exigia que eu apertasse a cada 10 segundos o botão do registro para que a água não cessasse (coisa dos econômicos e precavidos europeus).

Espanha, misteriosa Espanha......
Sergio Righy
Enviado por Sergio Righy em 01/10/2017
Reeditado em 28/05/2018
Código do texto: T6129896
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