O terceiro dia

E ao saber que Nuno Coelho era versado em religião cristã, o ulemá Munir el-Jalali, conselheiro do califa Abu Yaqub Yusuf, solicitou que o prisioneiro fosse levado à sua presença. Coelho ficou extremamente agradecido por sair da masmorra onde estivera encerrado desde sua captura pelos mouros, e pôs-se a imaginar um meio de não voltar para lá.

- Onde aprendeu árabe? - Foi a primeira pergunta do ulemá.

- Na Escola de Tradutores de Toledo.

- E você está a par das Escrituras cristãs?

- Não sou um religioso, mas meu pai ordenou-me estudar num monastério. A ideia era que eu tomasse os votos, mas meu irmão mais velho faleceu em combate e meu pai mudou de planos... porém tenho maior intimidade com a pena do que com a espada.

"De outro modo, provavelmente não teria sido capturado com vida", pensou.

- Bem, imagino que esteja a par da história de Lázaro, ressuscitado pelo Profeta Issa Ben Mariam?

- Profeta... ah, sim, Jesus Cristo. Estou a par.

- Quantos dias faziam que ele estava morto, quando foi ressuscitado?

- Segundo São João, quatro dias.

O ulemá balançou negativamente a cabeça.

- Foram três dias, segundo nos relata Al-Tha'labi.

- Mas... tendo São João escrito muitos séculos antes de Al-Tha'labi, é de se acreditar que ele tinha melhor conhecimento sobre o tempo transcorrido, não acha? - Ponderou cautelosamente Nuno Coelho.

O ulemá o encarou com simpatia.

- Você é jovem. Há muitas coisas que desconhece sobre o cristianismo.

Nuno Coelho viu um raio de esperança brilhar sobre si.

- E eu estou disposto a aprender... desde que encontre alguém que queira me ensinar.

- Isto pode ser arranjado... - disse o ulemá. - Mas você precisaria se converter à verdadeira fé primeiro. Como foi capturado, não poderá optar pelo exílio, naturalmente. Ou se converte, ou morre.

"E se eu morrer", pensou Nuno Coelho, "certo está que não ressuscitarei fisicamente nem no terceiro, nem no quarto dias".

E foi assim que Nuno Coelho morreu para a religião cristã, e renasceu como muçulmano sob o nome de Abdallah al-Islami, secretário do ulemá Munir el-Jalali, seu patrono.

- [20-08-2017]