LCM: a cura
A noite havia caído na capital do Império, e o fog invadira as ruas. O fedor do Tâmisa, trazido pelo vento, também diminuíra com a noite, o que era um alívio para os moradores do West End. Na cabeça-de-porco a qual os Abercrombie dividiam com mais oito famílias, os tempos estavam mais difíceis do que nunca. Primeiro, o pai, Jonas, havia sido preso por dívidas e levado para a Queen's Prison. A mãe, Etta, e os dois filhos menores, haviam contraído cólera, e o filho mais velho, um rapaz de treze anos chamado Joshua, havia ido buscar socorro no único lugar em que poderia obter algum apoio: a sede local da LCM.
A LCM - abreviatura em inglês para Missão Cristã de Londres - era uma entidade multidenominacional destinada a levar o Evangelho às áreas mais pobres da cidade. O pai de Joshua, ao ficar desempregado, fora contratado como pregador itinerante pela LCM, para realizar um trabalho de porta em porta, que basicamente consistia em convidar as famílias locais à frequentar às congregações das diversas igrejas participantes do consórcio. O que ganhava com essa atividade, todavia, era muito pouco para que pudesse por em dia suas dívidas. Acabou sendo preso como caloteiro pela Scotland Yard e recolhido à prisão.
Ao chegar ao prédio da missão, Joshua, contudo, não estava pensando no pai, mas na mãe doente e no casal de irmãos pequenos. O que seria, principalmente dos menores, se a mãe morresse? Subiu até o primeiro andar, onde ficava a sala do chefe local da LCM, e o encontrou sentado atrás de sua escrivaninha, lendo a Bíblia. Deu duas batidas na porta, que estava aberta. O homem, Padraic O'Rourke, um irlandês forte e ruivo, vestido de negro, ergueu os olhos da leitura com ar surpreso:
- Olá, Joshua - saudou-o com expressão preocupada. - Sua mãe piorou?
- Reverendo O'Rourke... eu não sei mais o que fazer. Estou desesperado - disse o garoto, sentando-se numa cadeira que lhe foi indicada pelo religioso.
- Situações desesperadoras exigem novas abordagens, dizia meu pai - ponderou o reverendo. - Duas pessoas já morreram naquela cabeça-de-porco onde vocês moram, e creio que metade dos residentes contraiu cólera. Creio que está na hora de pedir a ajuda de alguém que possa interceder no mundo material... porque no mundo espiritual, apenas Jesus Cristo tem esse poder.
- Quem, reverendo? - Perguntou esperançoso o garoto.
- Um conhecido meu - respondeu O'Rourke, revirando as páginas de uma agenda ensebada. - Ah, cá está. John Snow.
- John Snow?
- Dr. John Snow. Um excelente médico... um tanto ou quanto excêntrico, mas... é o que temos.
E erguendo-se e pegando sobretudo e chapéu num cabideiro ao lado da escrivaninha:
- Vamos, Joshua, temos que pegar um coche de aluguel!
* * *
O Dr. Snow, um homem alto, de cerca de 40 anos de idade, ostentando profundas entradas de calvície, recebeu-os no pequeno escritório de sua residência. Ouviu com atenção o resumo da história feito pelo reverendo O'Rourke, e depois voltou-se para Joshua Abercrombie.
- Da sua família, apenas você não contraiu cólera, rapaz?
- Sim, senhor... Dr. Snow.
- Você trabalha?
- Sim, doutor. Como aprendiz, num curtume.
Estranhamente, Snow abriu um sorriso e exclamou:
- Esplêndido! Esplêndido!
E retomando o aspecto circunspecto anterior, prosseguiu no interrogatório:
- Sua mãe e seus irmãos menores contraíram o cólera?
- Sim, doutor.
Snow voltou-se para o reverendo.
- Os miasmas, O'Rourke! Eu não havia lhe dito que isso era uma grande bobagem? Esse rapaz trabalha o dia inteiro num curtume, exposto sabe lá Deus a que tipo de miasmas... e está aqui tão saudável quanto poderia estar, vivendo numa cidade infecta como Londres! Enquanto isso, sua mãe e seus irmãos, que pouco saem de casa, contraíram a moléstia. O que depreende disso, O'Rourke?
O reverendo abriu as mãos, como quem pede desculpas.
- Que a origem do mal está dentro ou próxima da casa?
- Exatamente, O'Rourke, exatamente! - Exclamou triunfante Snow. E virando-se novamente para Joshua:
- Está decidido: amanhã farei uma visita à sua residência, rapaz.
O'Rourke pôs a mão no ombro de Joshua.
- Sei que estará trabalhando, mas não se preocupe: levarei o doutor até lá para ver sua mãe e seus irmãos.
- Como posso agradecer, doutor? - Perguntou Joshua, entre aliviado e apreensivo. Afinal, dinheiro para pagar a visita de um médico estava além de suas possibilidades.
- Serei pago pela Ciência, rapaz - respondeu-lhe Snow, piscando um olho.
* * *
- Acha que isso dará certo? - Questionou o reverendo O'Rourke tão logo saíram da cabeça-de-porco para a rua. Ajeitando a cartola na cabeça, o Dr. John Snow fez um sinal afirmativo.
- Não há mágica no tratamento do cólera... sangrias, ópio... nada disso resulta se a causa do mal está em outro lugar.
Fez sinal para um coche de aluguel que se aproximava.
- Água fervida, reverendo. Apenas isso. Já que não tem outro lugar de onde retirar a água que bebem, e que certamente está contaminada por fezes, ferver a água pode representar a diferença entre a vida e a morte.
O coche parou ao lado da calçada. O'Rourke estendeu a mão para o médico.
- Jesus Cristo intercedeu através de você, Dr. Snow.
Snow apertou a mão que lhe era oferecida. Depois, tocou a aba da cartola e respondeu, sorrindo:
- Para Jesus, bastava dizer uma só palavra para que a cura fosse alcançada, reverendo. Eu ainda preciso resolver as coisas presencialmente.
- "Vai, seja feito conforme a tua fé" - respondeu O'Rourke.
- Amém - despediu-se Snow, subindo à carruagem.
E para o cocheiro, na boleia:
- Vamos para o Soho, Broad Street!
- [23-07-2017]