A Modelo e o Filósofo

Mergulhe de cabeça em si mesmo, flutue pela devassidão de sua essência, porque em qualquer outra, além de não te pertencer, é mero artificialismo que para o introspectivo de propósitos e conceitos, nada lhe é útil.

Bela. Deveras, uma bela mulher. Letrada. Presunçosamente, da cabeça aos pés era inundada de predicados. Com grandes dotes à conquista, sentia-se realizada de ser formada em dormitórios, os quais propiciou-lhe as mais belas poesias, muitos pares de sapatos, guarda-roupas abarrotados, perfumes importados e variadas conquistas que uma donzela não deflorada, pode almejar.

Nos espaços em que adentrava, tapetes vermelhos corriam em disparada para acariciar o deslizante desfile de seus pés. Velas bruxuleavam à meia luz. Vitrais mudavam de cor e o teto abobadado resplandecia ao vê-la apossar de olhos inebriados. Olhos que rodopiavam dentro das órbitas, procurando decifrar os mistérios contidos naquele requebrado, híbrido de esbelta sensualidade e avario feminino. Não havia cama masculina que não a desejasse. Aplausos; assovios; aplausos. E por onde passava, deixava o perfume da conquista. Liberava o hormônio do desejo. Indubitavelmente, ser benquista, a realizava e compensava os olhados sexuados, com um sorriso dissimulado.

Com seu fiéis escudeiros, um fone de ouvido e um cobertos achados nos monturos, o Filósofo seguia perdido pela vastidão das estradas. O horizonte lá no fim de mundo não lhe metia medo. Ia sem destino, porém com a cachola abarrotada de propósitos e enquanto nas as realizava, a música o entretinha. Ao notar o alarido descomunal no entorno por onde passava, mudou o percurso e ainda que não fosse convidado, achou por bem fazer uma visita inesperada ao local. Diminuiu o volume da música que entupia seus ouvidos de novidades:

"Baby

Dê-me seu dinheiro que eu quero viver / Dê-me seu relógio que eu quero saber / Quanto tempo falta para lhe esquecer

Quanto vale um homem para amar você / Minha profissão é suja e vulgar / Quero um pagamento para me deitar

Junto com você estrangular meu riso / Dê-me seu amor que dele não preciso"

Expulso pelos seguranças, pois não havia sido convidado para o evento, do lado de fora, um mendigo bisbilhotava pela greta o desfile. Jamais passara pela sua cabeça coisa tão bela e ao mesmo, esquisita; afinal, quem propôs ao mundo tanta desigualdade: de um lado, um maltrapilho condenado à fome e do outro, alguém fadado ao elogios obsequiosos da plateia. E enquanto um nunca houvera degustado palavras de apreço; o outro, nunca soubera o que é desonra. O infeliz pensava que ele e a Modelo eram peixes de mesma espécie, um nadando em remansos calmos e plácidos, e o outro em mares tormentos e revoltos, no mesmo aquário.

Separadas por espessas portas trancadas e grossas paredes feito um bunker alemão, duas realidades se deparavam: dentro, a realização e conquista de poder e ser o que quisesse ser; fora, a perda dos sentidos pela desilusão imposta pelo destino. Obras do acaso? E enquanto um indagava o sombrio sobre os porquês, possibilidades e merecimento; o outro atirava pétalas de rosas à lua.

Lá dentro, seguia o desfile. O jurado cabisbaixo. Mentes absortas, compenetradas repensando as cenas. Apreensão na plateia; em contrapartida, a elegância da beldade pousava silente para as fotos. E como esperado , o resultado se repetiu. Chamada a discursar, subiu ao palco e regozijou: "existem muitas formas de uma pessoa tentar se engrandecer. Uma delas é divulgando as realizações. A outra é desmerecendo quem realiza. Pessoas que normalmente se incomodam com os feitos alheios estão sentindo falta de realizar. Realize e vocês se sentirão mais em paz com vocês mesmas e o que os outros escrevem, desfilam, aparentam, divulgam ou deixam de divulgar, não parecerá tão importante.

Suas palavras atingiram o mendigo como uma morsa apertando o objeto, como uma flecha que acerta o combatente de frente numa emboscada. Notara que aquelas palavras furaram-lhe as vistas, cegara-lhe as emoções, mas não cegara-lhe a razão. A cerimônia chegava ao fim. Em fila indiana, a ganhadora do concurso adentra a limousine. Convidados assoviam. Saraivadas de aplausos.

Espreitando o movimento, agora no espaço republicano e pertence à todos, liberto para o ir e vir, o mendigo dispara sua razão, até pouco tempo antes difamada, contra a emoção declarada: "Parabéns donzela! A realização íntima é a auto estima do ego; e o seu deve estar reinando solene nas alturas. Ao voltar à Terra, onde ele pousar, a humildade bate asas. Safa-se, pois, perante as conquistas e realizações, como foi vosso discuso permeado pelas entrelinhas do separatismos, os contrários, se repelem. No entanto, sem se declarar realizada, a morte recolhe em seu lar fedido a porcos ou adornando com flores perfumadas, tanto a realização, quanto o realizador. Quando estivermos lá, terei a oportunidade de cumprimentá-la pessoalmente por essa data especial. Só pode superior, quem presta-se às passarelas da superioridade; contrário, inversamente proporcional, só pode ser humildade, que deriva dos perigos impostos pelo destino. Estou de partida para nunca mais; mas antes, parabéns novamente; e em nome da humildade combatendo o ego... fui! Tchau ego das passarelas!

"Baby

Nossa relação acaba-se assim / Como um caramelo que chegasse ao fim / Na boca vermelha de uma dama louca

Pague meu dinheiro e vista sua roupa / Deixe a porta aberta quando for saindo / Você vai chorando e eu fico sorrindo

Conte pras amigas que tudo foi mal / Nada me preocupa de um marginal"

Deu meia dúzia de passou e estacou repentinamente. Uma flor da espécie heliotropia mirava detidamente o sol. Tentou recordar seu nome, mas nada o fazia voltar a realidade: estava tomando pela sensação transcendente de estar; mas onde? Colheu um maço de flores e exatamente no momento que ia jogá-lo para o ar, algo o repreendeu: "acima da poesia, está a racionalidade filosófica, como poucos filosofam o desatino, vem e vão, padecem pelo mundo sem tino. Ponteiros que correm; viver em vão. Mas o que seria da alma sem poesia, música, mendicância, filosofia?

A resposta lhe veio de imediato e não poderia ser outra, senão, estar a só, estando com todos; realizando o irrealizável; conquistando, sem se deixar conquistar; amando sem ser amado, em qualquer lugar. Definitivamente, enquanto a morte não o separa, ele de seu Eu perispiritual, nunca mais foi visto naquelas paragens. Porém, está na estrada. Segue seu caminho cantarolando Zé Ramalho e nos momentos vagos, entre uma divagada e outra, astutamente, lança indigeríveis pétalas de flores aos porcos.

"Baby

Nossa relação acaba-se assim / Como um caramelo que chegasse ao fim / Na boca vermelha de uma dama louca

Pague meu dinheiro e vista sua roupa / Deixe a porta aberta quando for saindo / Você vai chorando e eu fico sorrindo

Conte pras amigas que tudo foi mal / Nada me preocupa de um marginal"

"Toda mulher Modelo, toda madame, toda mulher possui um segredo, um segredo, toda Modelo, toda madame, toda mulher possui. Joia guardada em um porta joia, pelo menos para um vagabundo como eu, jamais será revelada. Contento-me com os desígnios, sob os quais tenho que trafegar; sobretudo porque Deus não é humano de carne e ossos, motivo de ainda apreciar e abrir as portas para os andantes e pobres desvalidos de realização; pois, esses não usam máscaras e maquiagens em seus rostos ensandecidos pela honesta vergonha! - estava ofegante pela estafante caminhada. Respirou fundo, tomou fôlego e finalizou o devaneio:

Assim que terminou a música, sentido profunda leveza interior, sentou-se no meio atrapalhando os transeuntes e suspirou esse pensamento numa folha de papel que lhe servia de amiga e nunca disse não para os seus anseios:

- Minha escrita possui alma, vida própria e não descarto sua leitura por algum leitor; porém, alerto sobre a apreciação conceitual do que for lido, afinal de contas, a loucura, a psicopatia e a revolta interior não se manifestam pelas gritos insolentes das palavras.

Pode ser o que for, mas o Filósofo das ruas nunca deixou que sua filosofia morresse à míngua pelas metades. E sobre as ocorrências daquele dia, nada mais deveria ser acrescentada, enfim, era noite e ele corria contra os ponteiros dos relógios para arrumar um lugar para dormir; pois, onde estava não havia viadutos, rodoviária, pontes elevadas e cabanas cobertas com lona rota disponível para recolher-se; abrigos que humildemente ele chama de minha casa, minha vida; meus aposentos itinerantes.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 17/05/2017
Reeditado em 18/05/2017
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