A trilha dos vinte

A quaresma, um período de jejum e privações para alguns fiéis religiosos e também período cheio de superstições e lendas.

Para nós garotos adolescentes era mais um período para acampar e curtir. Estivemos planejando este acampamento durante um longo tempo. Definindo como ficaria a disposição das barracas ao redor da fogueira, o que cada um deveria levar entre outras coisas mais.

Em outro ponto, meu irmão e seus amigos estavam também fazendo seus planejamentos.

Chegou o tão esperado dia da viagem. Chegamos na rodoviária praticamente todos juntos. Ao todo estávamos em seis moleques: Coxinha, Menon, Cipollari, Biagino, Gauxo e eu.

A viagem que durava em média quarenta minutos foi de bagunça e curtição dentro do ônibus, como sempre.

Quanto desembarcamos e chegamos à clareira onde sempre armávamos as barracas vimos que meu irmão e seus amigos, estavam em oito ao todo, já estavam com fogueira acessa e um pedaço de carne assando nela. No grupo do meu irmão estavam: Ovo, Ricardinho, Tchutcho, Luidy, Langhammer, Miler, Neto e meu irmão Ígor.

Ficamos leriando sem fazer nada, apenas jogando conversa fora e planejando a trilha que faríamos à noite. Sempre que íamos acampar na fazenda nós fazíamos a trilha da cachoeira, mas desta vez iria ter o maior número de participantes de todos os tempos, afinal além de nós que já estávamos lá, o Tocha ainda estava para chegar com mais alguns chegados.

Esta trilha percorria um pequeno córrego e serpenteava por quase toda a fazenda indo terminar em um tanque. O tempo total para percorrê-la toda era em média três horas e meia.

Quando começou a anoitecer ouvimos alguns barulhos na mata acima de nós. Eu peguei minha faca e o Coxinha pegou seu facão de cortar lenha e fomos ver o que era. No fim das contas, eram os piás: Tocha, Nei, André, Silvio e Batata, que iam tentar nos assustar, mas tinham se esquecido que estavam lidando comigo.

Rimos à beça e fomos fazer as apresentações devidas de quem não se conhecia ainda.

Nós havíamos criado uma pira de que aquilo era um exército, tinha até nome BIBSC - Batalhão de Infantaria Blindada Santa Clara e cada membro tinha sua patente de acordo com o número de vezes que já tinha ido acampar lá.

Eu era o comandante do pelotão e tinha a maior patente, era Tenente-Coronel. Quanto aos outros, cada um tinha sua alçada na hierarquia conforme mencionado antes. Os novatos eram sempre recrutas que tinham que passar por alguma provação antes de serem admitidos como soldados. Esta provação quase sempre era atravessar um banhado se arrastando segurando um toco simulando uma arma.

Era regra geral também que todos portassem uma arma de pressão, daquelas compradas em qualquer loja de 1,99 e que soltavam bolinhas coloridas para nossas guerras.

A noite caiu, como era sexta-feira santa e como nós adorávamos assustar uns aos outros, nos sentamos em volta da fogueira para contar histórias assustadoras. Claro que nenhuma saiu tão boa porque todos estávamos bêbados.

Lembro que tinha um moleque, que eu não tinha visto antes, com cabelinho Chanel jogado para o lado que estava tocando violão na roda.

Eu também tinha meu violão e o peguei para tocar junto e o Coxinha também. Claro que nenhum de nós sabia grande coisa de tocar violão de modo que cada um tentava tocar alguma coisa que não casava com nenhum outro.

Faltavam vinte minutos para meia-noite e este era o horário em que sempre começávamos a organizar o grupo da trilha. Desta vez, como eram muitos teríamos de organizar melhor.

Fiz com que todos ficassem alinhados de acordo com suas patentes e no grupo apenas um era recruta, o moleque com cabelo Chanel.

Enumerei cada um deles e disse-lhes que este número deveria ser gritado quando fosse hora da contagem. Era um recurso que sempre utilizávamos nas trilhas para evitar de alguém se perder.

A ordem sempre era respeitada, eu sempre ia na frente seguido pelo Coxinha ou pelo Tocha, no final, desta vez ficou o Gauxo e o Ovo se revezando como último da fila.

Iniciamos a trilha, passando pelo denso samambaial e descendo um a um a íngreme encosta da cachoeira. Quando todos terminaram de descer e estavam posicionados na areia na base da cachoeira eu apontei para onde a trilha realmente começava.

Tínhamos de passar pelos troncos caídos que quase formavam uma barragem na água e então entrar pela escuridão.

Uma das regras era não utilizar lanternas. Tínhamos apenas isqueiros conosco para poder acender nossos cigarros e iluminar algo que fosse extremamente necessário.

Antes de passar pelos troncos iniciei a contagem gritando um e todos os demais gritaram seus números em ordem, até que chegou ao final com o vinte. Como sempre, alguém pelo meio modificou a voz e gritou vinte e um para zoar. Todos rimos e eu passei pelos troncos dando início a trilha.

Desta vez a trilha parecia mais difícil do que de costume. O córrego estava com um volume maior de água e havia muitos galhos caídos atrapalhando a travessia.

Chegamos ao primeiro obstáculo que se tratava de uma pequena cerca de arame farpado que separava os pastos. Esta cerca ficava em uma junção de córregos chamada de barra. Para atravessá-la tinha-se que abaixar na água e passar por baixo, com muito cuidado para não se enroscar.

Obstáculo vencido, era hora da contagem. Novamente chegamos no malfadado vinte e um de zoação.

Era hora também da pausa para o primeiro cigarro e um rápido descanso.

Quem sempre levava os cigarros era o Coxinha, que havia criado um método infalível para evitar de molhar os mesmos. Ele colocava tudo em um saco plástico e o prendia em seu ombro por dentro da camiseta.

Já fumados e descansados, demos sequência à nossa aventura. Caminhamos mais uma hora mais ou menos e nos deparamos com o segundo obstáculo que tinha um grau de dificuldade maior que o primeiro. Aliás, a trilha toda tinha ao todo cinco obstáculos enumerados e cada um era mais difícil que o anterior em algum aspecto.

Este em específico tratava-se de um grande tronco de árvore que caíra há muito tempo sobre o riacho e bloqueava parcialmente a passagem. Neste trecho da trilha, como regra todos deveriam passar por baixo do tronco rastejando. Era possível passar por cima, mas para isso a regra de não sair da água seria quebrada.

Fui o primeiro. Me postei com a barriga para baixo e comecei a passar pelo tronco. Cada vez que eu passava ali pensava que ou o tronco havia cedido e baixado um pouco mais ou que eu estava mais gordinho do que antes.

Quando cheguei ao outro lado gritei em sinal para que o próximo viesse.

Assim, sucessivamente todos passaram por baixo do tronco chegando até onde eu estava.

Fizemos novamente a contagem e fumamos mais um cigarro. Sobre isso de fumar, não eram todos que fumavam, no grupo de amigos do meu irmão nenhum fumava, apesar de beberem até mais do que nós mais velhos, apenas para esclarecer.

Retomamos a caminhada. Não tínhamos a lua para nos informar o horário nem tampouco portávamos relógios de modo que era impossível saber que horas eram.

Estávamos andando pela água, já visivelmente cansados pelas dificuldades encontradas quando um cheiro de lodo se irradiou ao nosso redor.

Eu sabia que havíamos chegado no pântano e este era o único trecho da trilha onde era permitido sair da água. O pântano não era nem um pouco confiável para se caminhar.

Saímos da água e alguns metros mais à frente surgiu o terceiro obstáculo. Tratava-se de uma cachoeira onde, pelas regras da trilha, deveríamos descer da forma como conseguíssemos.

Novamente eu fui o primeiro à descer, mas a dificuldade para mim se tornara simplicidade, pois eu já sabia onde apoiar os pés e as mãos para descer.

Brincadeira de criança.

Ajudei aos demais à descerem e quando todos já estavam embaixo da queda d´água comigo e fizemos a contagem percebemos que faltava um.

Era o Silvio.

Gritamos por ele e ouvimos seu grito em resposta. Ele estava lá em cima ainda, olhando e avaliando. Me perguntou:

- Sabe se é muito raso aí embaixo?

E eu respondi que não tinha muita certeza, mas que mais perto da queda d´água era mais fundo um pouco e perguntei porque ele queria saber.

Sua resposta veio no formato de um grito e um pulo.

Água foi lançada sobre nós, fazendo apagar o cigarro que o Coxinha havia acabado de acender.

De repente um outro grito. Mas agora de dor.

Era o Silvio. Ele caiu de mal jeito e errou um dos pés na hora de pousar na água. Seu pé direito caiu direto na laje de pedra da base da cachoeira.

Ele mal conseguia apoiar o pé no chão.

Ficamos um longo tempo parados enquanto ele tentava se recuperar.

O Silvio era o tipo do cara que nunca se dava por vencido e sempre tinha que mostrar que era o mais fodão de todos. Passada uma meia hora do “acidente” ele disse-nos para continuarmos. Queria terminar a trilha logo, curtir um gole e relaxar.

Sendo assim tão contundente, continuamos. Mas não por muito mais tempo. Estávamos em uma curva do riacho que antecede uma barragem que meu avô havia feito. Esta barragem havia transformado o pequeno córrego em um tanque com uns cem metros de extensão que tinha de ser atravessado a nado.

Porém, a barragem não parecia a mesma e não vi nenhuma passagem ou o ladrão de água que evitava que a mesma ruísse.

Quebrando o protocolo das regras subi no barranco e o que vi à minha frente me desnorteou bastante. Era terra pura. A água do córrego simplesmente sumia naquele barranco. Chamei os demais para irem ver e me sentei pesadamente no gramado.

Acendi um cigarro e falei com o Ígor se por acaso ele sabia onde poderíamos estar. Ele disse que não e que não se lembrava de termos errado o caminho em nenhum lugar. E pensando nisso agora, era praticamente impossível errar o caminho, pois somente seguíamos o curso do rio e o único desvio neste curso ficava próximo ao final da trilha que estava muito à frente ainda.

Organizei um grupo de reconhecimento onde foram meu irmão, o Madalozzo, o Coxinha e o Tchutcho. Eu lhes disse para subirem um pouco mais acima de onde estávamos e tentassem se localizar.

Ao lado, o Silvio começou a reclamar por causa do pé.

O Tocha veio falar comigo junto com o Menon e ficamos discutindo e analisando as possibilidades. Lembro bem do que o Tocha disse:

- O pai falou: Vocês vão acampar na quaresma é? Não deviam ir. Sempre dá errado alguma coisa.

Eu lhe disse que estava tudo certo, mesmo sabendo que não estava.

De repente os piás do grupo de reconhecimento voltaram. E voltaram animados. O Ígor já foi logo dizendo que tínhamos que subir e pegar a estrada que estava do outro lado do mato.

Perguntei se alguém ali se opunha a cancelar a trilha e voltar para o acampamento e ninguém disse não.

Eu disse aos piás que fossem na frente nos guiando.

Seguimos em silêncio até alcançar um local que novamente me fez sentir bem. Era um invernada logo abaixo da casa.

Estávamos já mais contentes e falando dos planos de encher a cara e comer alguma coisa na fogueira quando sem mais nem menos enfiei minha perna em um buraco de tatu e torci o joelho.

Pronto, dois a menos na parada.

O Silvio e eu manquitolávamos e gemíamos. Estava feia nossa situação.

Acabamos por chegar na mangueira que ficava em volta da casa. Os piás passaram direto e seguiram para o acampamento. Eu não conseguia mais andar e fiquei por ali mesmo. Deitei em uma das redes de madeira e acabei pegando no sono.

Quando amanheceu eu fui acordado pelo meu irmão e seus amigos dizendo que os outros piás tinha destruído tudo no acampamento.

Levantei da rede e vi que meu joelho não estava nada bom. Tinha inchado e estava doendo bastante. Mesmo assim, resolvei que tinha que ir ao acampamento, afinal, tínhamos que desmontar tudo para podermos ir embora à tarde.

No meio do caminho encontrei com o Tocha e mais alguns que voltavam. Discutimos sobre o que tinha acontecido e fiz com que todos, menos o Silvio que estava com muita dor voltassem comigo.

Peguei a caminhonete do vô e a levei até o acampamento para recolher as coisas.

Chegando lá vi o estrago. Duas barracas destruídas e um monte de coisas espalhadas pela relva.

Juntamos tudo, limpamos o lugar e carregamos as tralhas na caminhonete.

Naquele mesmo dia o vô vendo o Silvio gemendo resolveu que ia levar alguns deles para a cidade na caminhonete. O Silvio estava com o pé quebrado em cinco ou seis lugares, como fiquei sabendo dias depois.

Já na cidade novamente, após todo o alvoroço do fim de semana fui até a casa do Tocha, para pedir-lhe desculpas por tê-lo tratado mal na fazenda e pelas discussões.

Ele disse que tudo bem, que já era normal a gente sempre brigar antes de vir embora.

Eu lhe disse apenas que não queria mais que ele levasse o tal guri com cabelo Chanel.

E qual foi o meu espanto quando ele disse que não tinha sido ele que levou o moleque? Ele disse ter pensado que era um dos amigos do meu irmão e que também não tinha gostado do cara.

Fui para a aula na faculdade intrigado com aquilo e resolvei conversar com o Gauxo sobre o assunto. Primeiro perguntei se ele se lembrava do tal cara e ele disse:

- Claro que lembro. Ele tava bem na minha frente na trilha. Eu e o Ovo éramos os últimos e ficávamos trocando de tempo em tempo e o cara tava bem ali. Durante toda a trilha. Mas espera, quando a gente parou naquele barranco eu não vi mais ele.

Perguntei para o Ígor em quantos eles tinham ido para lá e ele me disse que eram oito. Eu e os piás éramos seis mais os cinco que chegaram depois, ou seja, onze. Onze mais oito totaliza dezenove e havia vinte fazendo a trilha.

Falei com o Coxinha também sobre o assunto e ele também tinha certeza do número. E tinha mais, também lembrava do moleque e lembrava também dele tocando violão na roda.

O detalhe, no outro dia, quando fomos juntar as coisas, só existiam dois violões no acampamento e vários objetos haviam sumiram também.

Aquela foi a última vez que fizemos a trilha durante a noite. Todas as outras vezes ela foi percorrida durante o dia e nunca mais nos deparamos com o barranco.

Fernando Barreto
Enviado por Fernando Barreto em 14/04/2017
Código do texto: T5971122
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