989-HOMEM PÁSSARO X HOMEM TIGRE

A instalação do rádio em nossa casa, no ano de 1943, alterou definitivamente a rotina da família. Papai ficava horas, à noite, ouvindo notícias da guerra. Mamãe dedicava mais de meia hora após o almoço, ouvindo a novela da uma hora da tarde. Heleninha ouvia programas musicais e aprendia a “tirar” as letras de música cantadas por Francisco Alves e Ângela Maria.

Logo aprendi a manobrar os botões para encontrar as estações que transmitiam meus programas prediletos. As aventuras do Homem-Pássaro aconteciam na Rádio Nacional, às cinco e meia da tarde. Um capítulo pequeno, de apenas quinze minutos, a cada dia, de segunda a sexta. A dinâmica das aventuras era tremenda, se a gente perdia um capítulo, perdia também o fio da meada. Então, era escutar atentamente, todos os dias. Na Rádio Tupi do Rio, Tarzan vivia as mais estupendas aventuras pouco antes das sete da noite.

Durante muito tempo, só achei graça nestes dois programas, que ouvia religiosamente, não obstante as implicâncias de mamãe, que me mandava tomar banho justamente na hora do Homem-Pássaro. Papai também interferia, dizendo que as histórias de Tarzan eram bobas ou violentas . Não sei de onde ele formou tais conceitos, pois jamais ouvira um capítulo das “Aventuras de Tarzan”.

Estava no terceiro ano do grupo escolar e já havia lido todos os livros da turma do Sítio do Pica-pau Amarelo. Não contente em ler, gostava de escrever, inventando novas situações para Emília, Pedrinho, o Visconde de Sabugosa ou Rabicó. Mas não estava satisfeito, pois eram personagens que já existiam e tinha de manter uma certa coerência com as histórias já contadas por Monteiro Lobato (ele que me perdoe a audácia.) Quando fiz uma redação com a história de Emília fazendo estrepolias na nossa sala de aula, Dona Marocas achou graça, mas me advertiu:

— Está boa. Mas as histórias de Emília só quem pode escrever é o autor. O Monteiro Lobato.

Aquela censura foi uma pá de cal sobre minha literatice incipiente. Ouvindo os movimentados episódios do Homem-Pássaro, deu-me um estalo: passei a escrever as peripécias do herói contra os criminosos, as lutas contra os inimigos. Imaginava o herói voador sobrevoando a cidade, rápido como um raio. Escrevia com a letra caprichada nos cadernos de “lingua-pátria” (como se chamava a matéria de português), entremeando minhas histórias com as poesias de Olavo Bilac e textos de Machado de Assis.

Já estava, então, no quarto ano do curso primário. Um dos últimos comentários de que me lembro, acerca de minhas redações, foi ainda de Dona Marocas:

— Você está escrevendo o que já foi escrito. Para fazer um programa de rádio, os autores têm de escrever tudo, tintim por tintim. Os artistas do rádio decoram tudo, para ser falado em cada capítulo. Você tem de ser criativo. Tente criar um personagem, uma história imaginada por você mesmo.

Depois de tal comentário, desisti de escrever. Ou melhor, minha atenção ficou voltada para o discurso de orador da turma na formatura do grupo escolar, e, em seguida, para o exame de admissão ao curso ginasial. O primeiro ano deste curso também foi muito diferente e não pensei mais em escrever histórias.

No segundo ano conheci um colega especial: Teófilo, que tinha estado no seminário mas, por questão de saúde, teve de abandonar o estudo religioso. Muito inteligente, lia muito, e me fascinava o seu conhecimento literário. Das conversas que mantivemos, me animou a ler muito e a escrever.

Minha leitura predileta então eram os livros da Coleção Terramarear, que publicava os romances de aventuras em terra, mar e... ar. A coleção começava com “Mowgli”, de Rudyard Kipling, seguindo-se aventuras escritas por Fenimore Cooper, Robert Louis Stevenson, e, naturalmente, a saga insuperável de Tarzan. Li todas as histórias de Tarzan e muitas dos outros autores. Lia depressa e logo-logo tinha lido todos os títulos dos volumes da biblioteca incipiente do ginásio.

— Por que você não escreve uma aventura passada no Brasil? — Teófilo me incitava. — Um personagem índio, vivendo na Amazônia, pode ser legal.

Decidi-me. Comprei um caderno exclusivo, grosso, para a história que iria escrever. Comecei a escrever secretamente, isto é, não quis que Teófilo nem ninguém vissem antes de terminada a história. Pensei na história de um menino branco abandonado na selva amazônica, que fora acolhido por uma tigreza, tal qual Mowgli tinha sido criado por uma loba, ou Tarzan, criado por Kala, a macaca do bando de Kerchak.. . Levei mais de seis meses para escrever os primeiros capítulos. Foi quando criei coragem e mostrei o caderno ao Teófilo. Ele levou para casa, e depois de uns três ou quatro dias, me devolveu os escritos.

— Você até que escreve bem. Mas sua história não pode ser. Um bebê humano criado por uma tigreza, na selva amazônica...

— Como, não pode ser? É igual a história de Tarzan, de Mowgli. Até na história de Roma tem Rêmulo e Rômulo criados por uma loba.

— Sua história tem uma coisa impossível. — Ele falava devagar, parecia não querer dizer o que realmente achava do meu “romance” de aventuras. — Um fato completamente fora da realidade.

— Então , o que é? Fala logo, cara!

— É simples. Na Amazônia não existem tigres.

Senti um frio na barriga. Uma imensa decepção comigo mesmo. Ele tinha razão. Não podia continuar com esse romance.

Pela terceira vez, meu instinto literário tinha sido golpeado.

O que não iria impedir a minha volta, muitos anos mais tarde, à arte maravilhosa da literatura.

ANTÔNIO GOBBO –

BELO HORIZONTE, 13/OUT. 2006

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/03/2017
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