O Cervo

Faltava pouco para a alvorada e um brilho difuso já se via junto ao horizonte no leste. Galchobar acordou sobressaltado, mão no cabo da espada que mantinha sob a manta dobrada que fazia de travesseiro. Sentou-se, arma em punho e olhou ao redor. Tudo parecia tranquilo e adormecido, um fio de fumaça azulada elevando-se das cinzas da fogueira que acendera na noite anterior. E mais além, no ponto em que a floresta encontrava o prado onde passara a noite, ele o viu parado, encarando-o. O maior cervo que ele jamais vira em toda a sua vida, uma galhada imensa, retorcida, como se fosse uma árvore que houvesse crescido à beira do mar batida pelos ventos. Ficaram encarando-se durante alguns instantes que pareceram durar uma eternidade, até que, tão silenciosamente como viera, o cervo entrou na floresta e desapareceu de vista. Galchobar embainhou a espada e ergueu-se, totalmente desperto. Era hora de prosseguir viagem.

* * *

- Você é um convertido - disse o bispo para Galchobar, de forma categórica. - Então, o que viu não pode ter sido Cernunnos!

- Era Cernunnos! - Gritou Aouregwenn, a druidesa da vila, que embora oficialmente não exercesse mais a função, persistia nas velhas práticas pagãs.

Confuso, Galchobar olhava de um para outro sem saber o que dizer.

- Um cervo deste porte, só pode ser a representação do Cristo - insistiu o bispo, dedo em riste.

- Diga-me, Galchobar, filho de Nuallán, você viu alguma cruz entre a galhada do cervo? - Inquiriu Aouregwenn.

Galchobar parou um instante para pensar.

- Bem... não tenho como confirmar. Ainda estava escuro...

Aouregwenn encarou o bispo, cabelos desgrenhados ao vento:

- Se ele não viu uma cruz, claro que era Cernunnos!

Galchobar abriu os braços num gesto apaziguador.

- Peço-lhes que se acalmem... seja lá o que for que eu tenha visto, ambos concordam que era um símbolo de boa sorte?

- É uma revelação da salvação em Cristo - disse o bispo.

- É um guia para o Outro Mundo - disse Aouregwenn.

Galchobar, entre a druidesa e o bispo, respirou fundo e perguntou:

- Podem conviver com isso? Há um outro mundo, para o qual nos guia o mensageiro divino?

Druidesa e bispo encararam-se, expressões fechadas. Finalmente, o bispo disse:

- Está bom para você, Aouregwenn?

A expressão da druidesa foi pouco a pouco desanuviando-se, até que finalmente deixou entrever a sombra de um sorriso.

- Acho que posso viver com essa definição, bispo Patrício.

[09-01-2017]