MUITO ANTES DE KALAHARI

(Antes que os MUNDOS PARALELOS ® entrassem em colisão)

INTERLÚDIO

Ano 1973

"...Acendeu um cigarro e deitou-se a fumar e relembrar da época em que ele ainda não era Sarrazin o Mercenário; senão apenas Martin, o aprendiz de mercenário; e também de como tudo começou, uma tarde em Paris..."

"...Ou não foi em Paris?"

"...Não, não foi em Paris..."

"...Sua história vem de mais longe. Até o escurecer de Kalahari ainda tinha tempo de repassar toda sua vida..."

*******.

FIM DO INTERLÚDIO

Ano 1967

A Madrinha.

Martin tinha apenas quatorze anos quando sua madrinha Raquel Inês; uma das mais jovens e ricas fazendeiras pecuaristas de Uruguai; chamou-lhe à sua presença, pouco depois de ambos voltarem da fazenda no interior no mês de março, em vésperas de iniciarem-se as aulas.

Todo ano, nas feiras escolares, Martin ficava pelo menos dois meses no campo, aprendendo coisas relativas à veterinária da criação de gado, dirigir máquinas e andar a cavalo.

Raquel Inês era uma hábil amazona, mulher de facão e revólver na cintura, que dirigia com mão de ferro as fazendas herdadas do seu avô; que juntas somavam mais de sessenta mil hectares, nas quais se criavam bovinos e ovinos, além de cultivar-se trigo, cevada, aveia, milho e sorgo, para sustentar toda essa multidão de animais de carne, leite e lã.

O pai de Raquel Inês, Marcelo, um famoso advogado criminalista, era um homem de cidade que nunca tinha se interessado pelo campo, que detestava profundamente; motivo pelo qual o velho e sábio avô deixou as fazendas em testamento diretamente para sua neta preferida, uma esbelta e atlética jovem que adorava o campo, montava a cavalo melhor do que um homem; curava animais doentes, sabia dirigir caminhões, colheitadeiras e tratores e pilotava o avião da fazenda.

Raquel Inês era uma moça loira e bonita, socialite, frequentando seguidamente as colunas sociais dos jornais, e, portanto, cheia de pretendentes, e era apenas dez anos mais velha do que seu afiliado.

No dia do batizado de Martin, a mãe dela pediu dispensa ao colégio de elite da filha de dez anos, para que a menina pudesse ser madrinha daquele menino de seis meses, filho da sua querida professora de francês.

À medida que o menino foi crescendo, Raquel Inês o tratou como se fosse uma segunda mãe.

Nas férias escolares, o pai o levava aos acampamentos de caçadas e pescarias por uma ou duas semanas, quando voltavam carregados de carne de javali, capivara, lebres e codornas.

Desde a morte trágica do seu pai, Juan, um conceituado engenheiro de ferrovias, um ano antes, Martin tinha ficado sob a tutela não oficial da sua madrinha a maior parte do tempo, já que ela o amava profundamente.

A morte do pai num acidente cortou toda aquela rotina familiar, e Raquel Inês resolveu que sempre tomaria conta do menino naqueles períodos de férias em que ele mais sentiria a falta do seu pai.

Raquel Inês já tinha trocado suas roupas de trabalho por suas roupas da cidade e estava no seu escritório, revisando alguns papéis, quando Martin entrou.

Recém-chegados da fazenda, ambos estavam bronzeados pelo sol.

–Mandou me chamar, Dinda?

–Sim, meu filho. Senta aí – disse ela e foi direto ao assunto:

–Meu filho, agora que já é um moço crescido, devemos falar de maneira diferente, como pessoas adultas.

–Obrigado – disse Martin, corando de felicidade pelo fato de sua madrinha considerá-lo como adulto.

–Tenho acompanhado sempre com interesse todo teu crescimento, e isso foi muito bom para mim, que cresci junto contigo. Posso agora me considerar uma pessoa bem melhor. Acho que quando casar e tiver meus filhos, poderei ser uma excelente mãe.

–Será sim. Já tivemos conversas que eu não teria com a minha própria mãe.

–Sei disso. Ela é de outra geração bem anterior e seus conceitos estão arraigados demais para mudar. Mas eu penso diferente.

–Ainda bem.

–Por isso não escaparam de meus olhos tuas brincadeiras de médico com as filhas do capataz da fazenda, dentro do galpão de tosquia, no meio dos fardos de lã.

Martin gelou.

Uma eletricidade percorreu sua coluna e abriu a boca para tentar dizer algo, mas ela o cortou com um gesto de mulher habituada a dar ordens.

–Não estou te censurando, Martin. Apenas, como tua segunda mãe, que me considero, eu devo preparar-te para a tua vida futura e evitar-te aborrecimentos.

Martin ficou em silêncio.

–A partir de agora, quero que saiba uma coisa muito importante, meu querido: até os cavaleiros mais valentes usavam armadura.

–Sim.

–Por isso, já que os homens são diferentes das mulheres, que quando não são umas porcas mal lavadas, têm o péssimo hábito de engravidar, quero que sempre tomes as devidas precauções.

Ela abriu uma gaveta e pegou uma caixa com desenhos brancos e pretos.

–Isto é para ti, meu jovem cavaleiro. Tua armadura a partir de hoje.

–Branco e Preto! Importados! Poxa! Obrigado!

E foi assim que Martin ganhou sua primeira caixa de preservativos importados da marca Black & White, os mais conhecidos daqueles anos sessenta. Usou o primeiro para se masturbar e o segundo, para perder sua virgindade com Marinês, a babá do irmãozinho da sua madrinha.

Marinês tinha 16 anos, baixa, cabelos e olhos negros, pernas grossas, coxas firmes e alguma experiência adquirida com um namorado cafajeste vistoso de 25 anos.

Marinês consumiu mais quatro preservativos no mês seguinte, e Martin teria gastado a caixa toda nela, não fosse uma maravilhosa menina que conheceu nesse ano, e que, embora não fizesse sexo em seguida com ela, pelo menos serviu para fazer-lhe perder todo interesse pela babá Marinês.

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Infância.

Martin apaixonou-se pela primeira vez quando estava na segunda série do primeiro grau. Ela chamava-se Sônia Mabel, tinha olhos negros e cabelos castanhos encaracolados.

A segunda vez foi na quarta série, ela chamava-se Maria Mercedes e tinha olhos castanhos, cabelos lisos, pretos e curtos.

A terceira e fulminante vez foi quando ele já tinha 11 anos, e estava preste a passar para o segundo grau.

Ela chamava-se Lilian Esther, tinha nove anos, estava na quarta série, e era loira de cabelo comprido e olhos azuis. Seus pais eram de origem inglesa.

Nunca falaram de amor. Sempre foram amigos, até quando ele saiu do colegial para ir à faculdade. Ele nunca teve coragem de confessar a ela o que sentia, e ele nunca soube o que ela sentia. Nos anos seguintes, ela tornou-se sua musa e continuaram se vendo, como amigos. Apesar de ele ter se apaixonado por outras mulheres, nunca se esqueceu da menina loira.

Muitos anos depois, no século XXI; já conhecido nos círculos privados como o misterioso LORDE DO ESPAÇO; um velho guerreiro em luta pela liberdade do planeta Terra; de novo viajando pelo mundo com mais de 50 anos de idade e pai do então capitão da Força Aérea Espacial Brasileira; Alan Claude Sarrazin, um herói espacial; ele confessaria a uma amiga íntima, entre uma batalha e outra:

–Se a Lilian me chamasse hoje, eu abandonaria tudo e correria ao seu encontro.

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Letícia.

Martin estava passando pelo período da adolescência em que tudo se questiona, tudo é rebeldia, e apesar do carinho da sua madrinha, resolveu que devia pagar-se seus próprios estudos, assim como seu falecido pai fizera nos anos trintas.

Seu primeiro emprego foi numa fruteira, onde começou lavando o chão, a contragosto da sua mãe e da sua madrinha.

Depois vendeu jornais, engraxou sapatos na praça, lavou carros importados numa garagem subterrânea, propriedade de um velho ucraniano chamado Basílio Sabat, que lhe ensinou as primeiras palavras do idioma russo e os fatos da vida.

Aos quinze anos, já morava sozinho numa pensão para estudantes, a cinquenta metros da Praia de Pocitos, perto de onde morava sua madrinha, já que se desentendera com a sua mãe, super protetora, que odiava de morte todas as garotas que se aproximavam dele.

Estava trabalhando desde fim de março como iluminador num canal de TV. Foi aí que conheceu a Letícia Cardelino, semanas depois da conversa com a sua madrinha.

Ela tinha treze anos, alta, magra, olhos azuis, e cabelo loiro cortado a la garçon, como era a moda das meninas que imitavam a famosa modelo inglesa Twiggy, que fazia furor nas revistas de moda da época.

Letícia passava algumas temporadas com sua tia em Montevidéu apesar de residir a maior parte do ano em Buenos Aires, com seus pais, seu irmão casado, Horácio, e sua irmã mais nova, Esther. Eles eram donos de uma importante loja de eletrodomésticos em cada uma das cidades. Em Montevidéu a loja era dirigida por uma tia, irmã do seu pai.

Foi um período feliz, em que Martin quase se esqueceu da sua musa. Em 1969, já com 16 anos, e cursando o primeiro semestre de História na faculdade, Martin empregou-se na fábrica Motorola de televisores, como técnico, já que, paralelamente aos seus estudos de segundo grau, tinha feito um curso de dois anos de eletrônica, radio e TV.

Esse ano, pelo mês de agosto, estreou um premiado filme francês na cidade. Martin telefonou num sábado chuvoso e tormentoso para Letícia, que passava uns dias na cidade, e combinaram encontrar-se na frente do cinema. Ela faria 16 anos no dia Primeiro de setembro.

Estava linda, descendo do táxi.

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Amor de Verdade.

Após o cinema foram a um bar para tomar café e conversar deles mesmos, e depois pegaram um táxi para a pensão de estudantes. As ondas do mar estavam tão fortes que a espuma batia nas janelas dos edifícios de frente ao mar e banhava os carros que passavam.

O que aconteceu naquele dia em que foram ver "Um Homem e uma Mulher", Martin escreveria, cheio de saudade e tristeza, em agosto de 1973, num bar de Antuérpia, Bélgica, quando já estava morando na Europa:

Letícia.

Tarde de chuva

agosto

Brilha de luz o asfalto

Os carros passam

Espero.

Guarda-chuvas escondem problemas.

Ela desce do táxi

Cabelo curto

como de rapaz,

Loira como trigo.

Capa de chuva

Curta até os joelhos

Botinhas pretas.

Caminhamos

cinema.

Ela chorou com Jean Louis Trintingnat,

Eu emocionei com Annouk Aimeé...

Depois, à avenida...

Bar,

dois cafezinhos;

Nos entendemos.

Meu quarto

Conversamos, rimos,

Cautela de primeira vez

Nos amamos.

Sofremos a dor

Virgindade perdida.

Felizes aquela tarde

Um amor lindo

A chuva na vidraça.

Choramos,

tempo curto,

O relógio teimava por correr.

.......................................

Uma tarde igual

O telefone tocou

Seu irmão disse

–Sua doença é fatal.

Três meses no máximo.

Novembro terminava

e aconteceu.

A leucemia levou minha Letícia

E deixou esta pedra

Aqui onde estava antes

meu coração.

Por isso, em agosto,

Nunca vou a Montevidéu.

Por isso,

Nas tardes em que a chuva

bate na vidraça,

Bebo, choro e lembro;

Da época em que era feliz.

*******

A família de Letícia aconselhou o jovem a não ir ao enterro em Buenos Aires e que aconteceu em 29 de novembro de 1970, ao dia seguinte de sua morte.

–Ela não está como a conheceste – disse Horácio, seu irmão ao telefone – estava esquelética, sem cabelo e muito sofrida. Será melhor que a lembres bonita como era, senão vais sofrer muito, como nós que a vimos definhar em poucas semanas sem poder fazer nada.

Apenas em 1991; quatro anos antes do golpe de estado mundial e dos Mundos Paralelos ® entrarem em colisão; numa viagem de negócios à Argentina, Martin conheceria o túmulo de sua amada no cemitério de La Chacarita em Buenos Aires.

Foram duas horas, a despeito do frio daquele fim de tarde de 22 de junho, em que ele, sentado junto ao panteão familiar dos Cardelino, contou a ela; com lágrimas que gelavam no seu rosto ao vento inclemente, toda sua vida.

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CONTINUA EM: CHEGAM OS PARAQUEDISTAS - (já publicado)

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O conto MUITO ANTES DE KALAHARI - forma parte integrante do romance inédito: HISTÓRIA DE MARTIN ® – Volume 1, Capítulo 1, Páginas 9 a 13.

Gabriel Solís
Enviado por Gabriel Solís em 08/01/2017
Código do texto: T5875854
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