Anote para não esquecer

Era uma noite calma de sexta-feira. Eu estava na cozinha, e ouvi quando o telefone tocou na sala de estar. Emília atendeu.

- Não... imagina! Eu estava com os pés pra cima... dez visitas no Vale do Rio Vermelho, o dia inteiro. Estou morta... Marcos está fazendo o jantar.

Eu estava.

- Bem... - ela hesitou. - Normalmente, eu não trabalho aos sábados, exceto em caso de emergência.

Uma série de ruídos de concordância. Calcei uma luva antitérmica e tirei o assado do forno. Provavelmente, Emília só iria comer uma fatia, mas eu não precisaria me preocupar com o almoço no fim de semana. Até porque, normalmente nós não parávamos muito em casa...

- Está bem. Eu não acho que seja nada, mas iremos aí amanhã de manhã.

"Iremos"?

- Beijo, tchau!

Desligou. Fui até a porta da cozinha, já tirando o avental.

- Quem era?

- A Rosalva - disse, e parou, aguardando alguma reação da minha parte. Fiz cara de paisagem, e ela prosseguiu:

- Estava reclamando que o consórcio anda esquecido... quer que eu vá lá dar uma olhada.

- Esquecido? Como assim... esquecido?

- Pois é - suspirou Emília, afundando-se no chaise longue marrom. - Desde quando homem ser esquecido é sinal de doença?

E, rapidamente:

- Desculpe, amor! Não quis ofender!

* * *

- Quero que converse com ele, veja se nota alguma coisa de estranho - explicou-me ela, enquanto dirigia nosso velho Pontiac Astre Coupe verde-musgo pela estrada de terra que levava até o sítio de Rosalva. Localizado nos arredores da Vila do Meio, o local era basicamente uma colônia agrícola, voltada para a produção de flores, mel - e rabanetes.

- Mas você é a ministra - ponderei. - Deve entender mais desses assuntos do que eu.

- E entendo - reconheceu ela, sem desgrudar os olhos da estrada. - Acontece que vocês fizeram o Ciclo Fundamental juntos, provavelmente devem ter lembranças em comum. É isso que gostaria que tentasse verificar... ver até que ponto vai o dano.

- Você está me deixando preocupado. Ontem à noite, pareceu achar toda essa história uma bobagem.

- Fui consultar os meus cristais depois que você foi dormir - confessou ela. - Pode estar acontecendo alguma coisa lá, sim. Precisamos tirar isso a limpo.

Sorri, enlevado.

- É tão bom quando você me deixa ajudar nos seus problemas...

- Por limitada que seja a participação - condescendeu ela. - Mas, neste caso, sinto que pode valer a pena. Afinal, vocês homens se entendem...

Tive que concordar.

* * *

- Não saia agora! Eu desço primeiro! - Alertou enfaticamente Emília após parar o carro sob um alpendre na lateral da casa de Rosalva, esticando o braço para pegar sua valise preta surrada no banco de trás. Era um imóvel grande, de madeira, com dois andares e uma varanda comprida na frente, com bancos balanço estilo namoradeira, e vasos de plantas. Tudo muito acolhedor e agradável, como eu bem recordava por ter ali estado inúmeras vezes. Com a chegada do carro, dois vira-latas aproximaram-se, mas pareciam amistosos. E depois, vieram as crianças. Pelo menos, meia dúzia delas. Quatro loirinhas, um menininho de cabelo preto e uma menina bem mulatinha, imensa juba ao vento. Idades entre 3 e 8 anos, calculei. Depois, uma adolescente, também loura, carregando um bebê de não mais de dois meses nos braços. Foi à ela quem Emília se dirigiu:

- Oi, Emma! Cadê sua mãe?

A garota fez uma vênia, dobrando ligeiramente os joelhos.

- Está com o consórcio, reverenda ministra.

E olhando para o carro:

- Trouxe o seu consórcio?

Acenei. Emma sorriu e acenou de volta. Creio que não a via há uns 5 anos... era uma garotinha de tranças, então.

- Trouxe. Mas ele vai ficar ali dentro até que eu fale com a sua mãe e descubra o que há de errado.

- É alguma coisa que afeta os consórcios? - Perguntou, ar de preocupação.

- É alguma coisa que afeta os homens - respondeu, curvando-se e beijando a cabeça do bebê. - Mas só os adultos; não se preocupe, Nicolas.

* * *

Emília voltou meia hora depois, com a estola roxa de reverenda ministra sobre os ombros, e um calumet vermelho nas mãos, aceso, queimando artemísia. Atrás dela, de cabeça baixa, a figura loura e imponente de Rosalva. Eu a vira de longe algumas vezes nos últimos anos, durante cerimônias e festividades, mas nunca mais pusera os pés em sua casa. As duas, contudo, continuaram amigas, e mesmo tendo podido chamar outra reverenda, preferira buscar auxílio com Emília. Ela estava certa; passado é passado. A vida continua.

Emília deu duas voltas completas ao redor do carro, dando baforadas com o calumet e cantando um mantra em voz baixa, enquanto Rosalva olhava tudo com ar de sofrimento. Não trocamos um só olhar. Finalmente, Emília fez sinal para que eu saísse do carro. Como conhecia o ritual, afastei-me do veículo o suficiente para que ela pudesse girar ao meu redor, jogando a fumaça do cachimbo sobre meu corpo. Por fim, ela parou e declarou, voz rouca de quem está num transe:

- Você está protegido.

Colocou-se de lado e dirigiu-se à Rosalva num tom de ironia feroz, irreconhecível para quem a conhecia no dia a dia:

- Você pode abraçá-lo... mas não se esqueça quem é a reverenda ministra aqui!

Rosalva flexionou brevemente os joelhos em sinal de respeito. Depois, ergueu a cabeça e me encarou. Seus olhos estavam marejados. Os lábios tremiam. Eu balancei a cabeça, em sinal de reconhecimento, sabendo que estava sob o olhar atento de Emília. Depois, caminhei até Rosalva e a abracei. Rosalva, que era mais alta e forte do que eu, me deu um abraço de urso, que quase me tira o fôlego.

- Você viu a pequena pantera negra? - Sussurrou ela ao meu ouvido. - É sua filha. Eliza.

- Eu imaginei - sussurrei de volta. - Ela é linda.

Em seguida, ouvimos o rouquejar de Emília:

- Chega! Temos trabalho à fazer!

* * *

Desgrenhada, suada, Emília saíra do transe. Voltara a ser a pessoa centrada e gentil que todos conhecíamos. Estávamos ela, eu e Rosalva no quarto onde repousava Neemias, o consórcio de Rosalva. Neemias era um homem grande e forte, tornando-os uma escolha óbvia para reprodução dirigida. Eliza, naturalmente, fora um acidente de percurso, ainda que um belo acidente, como eu pudera testemunhar. Mas fora o suficiente para que um Interdito fosse baixado entre nós - o qual, coincidentemente, estava acabando agora, cinco anos depois.

- Fale com ele - encorajou-me Emília.

Voltei-me para Neemias, deitado na cama de casal, expressão vazia:

- Irmão Neemias, você sabe quem eu sou?

- Você é o irmão Marcos - respondeu, após uma ligeira hesitação.

- E qual foi a última vez em que nos vimos?

Ele franziu a testa, concentrando-se.

- Na festa da colheita? Você dançou com Rosalva...

A última festa da colheita em que eu havia dançado com Rosalva havia sido há mais de seis anos, e certamente eu e ele havíamos nos visto inúmeras vezes depois daquilo. Rosalva balançou a cabeça em sinal de desânimo. Emília brincava com as pontas da estola, onde estavam gravadas cruzes célticas negras. Finalmente, respirou fundo e disse com voz tranquila:

- Marcos, você é o culpado disso tudo.

- Eu?! - Exclamei, indignado.

* * *

Eu e Emília estávamos sentados numa das namoradeiras da varanda da casa de Rosalva, nos balançando preguiçosamente, a minha cabeça repousando no ombro dela. A tarde caía. Um dos cães viera se deitar perto de nós, e volta e meia nos encarava com um olho, como se quisesse ter certeza de que ainda estávamos ali.

- Oh, meu amor - disse ela. - Mas claro que não foi intencional. Eu sabia de casos assim, mas não pensei que fosse tão forte em você.

- Então me explique - murmurei.

Ela começou a me fazer um cafuné.

- O seu subconsciente nunca aceitou a separação, embora agora tenhamos visto que era mesmo a melhor coisa a ser feita - Eliza à parte. E parece que essa insatisfação atingiu um clímax justamente quando o prazo de cinco anos transcorreu. Agora.

- Então eu ataquei Neemias? Psiquicamente?

- O seu desejo oculto de que ele apagasse os últimos cinco anos da memória, para que Rosalva ficasse novamente disponível... como se isso fosse possível. Bem, surtiu efeito. Ele não é páreo para um ataque dirigido seu, mesmo que totalmente inconsciente. Eu o pus para dormir. Deverá ficar bem em 24 h.

- Mas como posso controlar isso?

- Você não pode - respondeu ela, suavemente. - E só há uma maneira de resolver isso.

Ergueu a cabeça e chamou:

- Rosalva!

Instantes depois, Rosalva aproximou-se, enxugando as mãos no avental. Aguardou em silêncio, até que Emília falasse.

- Rosalva... - ela disse. - Ele é seu novamente.

Beijou-me a cabeça e ergueu-se do banco.

- Pelo menos, por esta noite. Eu venho amanhã cedo buscá-lo.

Parou, olhando para nós dois.

- O que está esperando, Rosalva? Há um lugar vago agora.

Rosalva flexionou os joelhos e sentou-se ao meu lado.

Ficamos olhando, enquanto Emília dirigia-se para o carro. Ela entrou, deu a partida e saiu, devagar.

Eu e Rosalva permanecemos em silêncio, durante um tempo que pareceu infinito. Por fim, ela estendeu timidamente a mão e tocou a minha.

- [19-06-2017]