Ponto C

E quando ela voltava do banheiro da danceteria, a pista de dança fervendo com "Blue Monday", do New Order, ele traçou um curso de interceptação e os dois se encontraram a meio caminho da mesa onde as duas amigas dela aguardavam.

- Oi - disse ele, abrindo um sorriso generoso que contrastava com o bronzeado da pele e os olhos verdes.

- Oi - respondeu ela, sem ação. Já havia visto o cara circulando pela danceteria e ele parecera tão bonito que comentara com as amigas que devia ser gay. Pelo visto, concluiu rapidamente, não era.

- Você me ajuda? Estou meio perdido por aqui...

Ele tinha um sotaque engraçado, avaliou ela. Talvez fosse estrangeiro...

- Claro! Em que posso te ajudar? - Respondeu, tentando parecer desinteressada.

- Podemos falar a sós?

Ela o encarou com ar de incredulidade.

- Aqui? Olhe em torno, estamos numa danceteria!

- Ah, desculpe, - disse ele, sempre sorrindo - quis dizer na minha mesa. Sem as suas acompanhantes por perto.

Ela olhou para a mesa onde as duas amigas a encaravam com olhos arregalados. "Invejosas", pensou.

- Por que não? - Respondeu, sorrindo também.

* * *

E na manhã seguinte, ela acordou na imensa cama de casal do quarto dele, numa cobertura de São Conrado - não muito distante da danceteria, aliás. Em algum lugar lá fora, Paul McCartney cantava "Silly Love Songs", e era bem como ela se sentia. Nunca um encontro casual parecera tão feliz e tão promissor. Como se adivinhasse seus pensamentos, ele entrou no quarto, recém-saído do banho, uma toalha branca enrolada na cintura, passando os dedos pelos cabelos castanhos longos desgrenhados. E abriu aquele sorriso, tão seu.

- Está com fome?

Ela puxou o lençol de cetim até os seios e sorriu de volta:

- Muita! Ontem à noite, você não me deu muito espaço para...

Ambos fizeram um silêncio cúmplice.

- Que péssimo anfitrião sou eu - disse ele, quebrando a pausa. E virando-se para a entrada do quarto, gritou:

- Alcides! Traga o desjejum!

Para surpresa dela, instantes depois uma criatura bípede de corpo cinzento cilíndrico, adentrou o quarto, carregando uma bandeja de café da manhã nos braços articulados.

- Mas... mas é o... - gaguejou ela.

- Sim, o robô da novela - respondeu a criatura, com voz metálica. Colocou a bandeja sobre um criado-mudo e saiu gingando.

O rapaz estava rindo. Dela.

- Você precisava ver a sua cara... - disse.

Ela franziu o cenho.

- Olha, isso foi uma brincadeira de mau-gosto! Todo mundo sabe que o robô da novela era só uma fantasia com um anão dentro!

Ele sentou-se ao lado dela na cama e beijou sua testa.

- Ter escolhido esse formato foi certamente uma decisão deliberada. Afinal, era algo que vocês do ano de 1985 já haviam visto na TV. Mas o robô é de verdade. Não há nenhum anão dentro daquela vestimenta metálica.

- Lá vem você com suas histórias de viajante do tempo... - resmungou ela.

- Então ainda não acredita?

Ela o encarou muito séria e nada disse.

- Alcides! - Ele gritou novamente.

O robô ressurgiu, gingando.

- Como quer que eu limpe esse duplex imenso se toda hora fica me interrompendo? - Reclamou, com sua voz metálica.

- Aproxime-se - disse ele, sem dar atenção às queixas.

O robô parou junto da cama. O rapaz ergueu-se e abriu o painel traseiro do corpo cilíndrico, revelando uma profusão de circuitos e engrenagens que se moviam, LEDs que piscavam. Ela olhou tudo, boquiaberta.

- Então... então... - repetiu.

- Convencida agora de que sou um viajante do tempo?

Ela balançou a cabeça em concordância, sem dizer palavra.

- Eu sugiro que comam, antes que esfrie - disse Alcides. - E, se puder me fazer o favor, cubra as minhas intimidades que não gosto de me ver exposto assim...

Ele suspirou e recolocou o painel em seu lugar.

* * *

Os policiais civis se despediram do gerente da danceteria e saíram para a rua, onde haviam deixado a viatura estacionada sobre a calçada.

- O que acha? - Inquiriu o inspetor Oliveira, quando entraram no veículo.

- Ele não sabe de nada - retrucou o detetive Santos, ligando o motor. - O cara esteve aqui duas ou três vezes antes, mas essa foi a primeira vez em que parece ter saído acompanhado.

Olhou pelo retrovisor e virou o volante para sair da calçada, devagar.

- Algo me diz que que não vamos ver essa garota novamente - comentou Oliveira.

- E nem o cara - disse Santos, engatando uma segunda. - Ele achou o que queria.

Um Puma vermelho passou por eles, em sentido contrário. No rádio do carro, em alto volume, "Head Over Heels" do Tears for Fears.

[26-02-2017]