A Última Chance

Não era por amor que ia visitá-la, mas por compromisso. A hipótese de se tratar de amor o sentimento que o unia à esposa só durara até ele se apaixonar por Eloísa. Depois de Eloísa, só restara a coabitação, os bens em comum, os filhos. Com Eloísa entendeu e experimentou o que depois dela passou a chamar amor. E por essa experiência pagou o preço de viver pelas décadas seguintes com uma mulher que lhe inspirava culpa, pena e, às vezes, um pouco de asco.

Acordou por volta das cinco da manhã, embora as visitas só começassem às nove. Seu primeiro pensamento foi em Eloísa, como acontecia quase todos os dias nos últimos vinte e um anos. O desejo nunca experimentado de tê-la em seus braços ao acordar, o cheiro de sua pele depois do banho, o café fraco que ela lhe preparava quando a visitava, o perfume floral que ela usava.

Eloísa padeceu nesse amor. Desfez seu casamento na certeza de que Antonio era o homem de sua vida e por quase nove anos, com algumas pequenas interrupções, manteve um romance clandestino com ele. Nove anos de encontros semanais corridos, nove anos sem dormir uma noite inteira abraçados, sem uma viagem de férias, sem uma noite de sábado ou um almoço de domingo. Enfim livre, casou-se de novo, de novo se separou e mais uma vez tornou a casar. Por nenhum dos dois maridos foi apaixonada.

Também pensava em Antonio praticamente todos os dias. As boas lembranças apenas. As sensações antes nunca sentidas e jamais repetidas que seu corpo com ele havia experimentado.

Antonio acabou se atrasando. Sentiu-se um pouco culpado por chegar ao hospital somente depois das dez da manhã. Sentir-se culpado, entretanto, o aliviava automaticamente da necessidade de punir-se pela negligência com a mulher hospitalizada. A dor da culpa funcionava mais uma vez como sua redenção.

Foi por conta desse atraso que dividiu o elevador que dava acesso ao andar da UTI cardíaca com a senhora graciosa em que Eloísa havia se transformado. O perfume que ela usava fez seu coração bater mais forte. Eloísa também se sentiu afetada pela presença do senhor longilíneo e elegante de pé ao seu lado. De forma sincronizada, como numa cena cinematográfica, viraram seus rostos um para o outro no exato momento em que o elevador parava no quinto andar, onde a UTI cardíaca estava localizada.

- É você Eloísa?

Eloísa sentiu uma fraqueza nas pernas.

- Sim. Eu mesma... Como vai você, Antonio Almeida?

- Que surpresa... Eu estou bem... A Célia está na UTI cardíaca. Vim visitá-la.

Eloísa sentiu o mesmo aperto no peito que sentia na época que eram

amantes sempre que o nome de Célia era pronunciado. Tanto tempo depois, a mesma perturbação a atormentá-la.

- Vim visitar meu marido, Ulisses. Também está na UTI cardíaca. Passou mal anteontem, precisava ficar em observação, como não havia nenhum quarto desocupado, o colocaram na UTI. Deve ter alta amanhã.

- Então, você está casada?

- Pela terceira vez...

- Reconheci você pelo perfume.

Eloísa sentiu um arrepio percorrer suas costas, como quando, amantes, ele aspirava seu perfume enquanto se abraçavam. Era como se o tempo não tivesse passado.

- Você mudou pouco. Continua bonita.

- Que exagero, Antonio. Você está sendo gentil.

Uma onda de calor aqueceu o corpo de ambos. Mais uma vez surpreendiam-se com o mistério daquele amor. Procuraram as palavras certas a serem ditas, mas as palavras não vieram. Desconfortáveis com o silêncio, comentavam ansiosos o que lhes vinha a cabeça, os filhos crescidos, os netos, os livros que liam, a vida que levavam.

- Vamos almoçar?

Eloísa pensou rápido. Melhor um jantar. Teriam mais tempo. Sua casa ficava a três quadras do hospital. Com o marido hospitalizado, estava sozinha. Às oito estava bom pra ele? Ainda gostava de comida japonesa? Posso levar um Merlot Californiano que meu filho trouxe de viagem, levinho e frutado, como você gosta. Excelente! Vou preparar aquela mousse de chocolate. Você ainda gosta? A antiga cumplicidade num instante restaurada. Eloísa deu o endereço. Antonio exultava. O corredor de hospital, apesar do movimento, pelo tempo que durou desse diálogo, deixou de existir. Os dois, absolutamente concentrados, só tinham olhos e ouvidos um para o outro, como nos bons tempos passados.

Despediram-se. O compromisso da visita aos cônjuges os reclamava.

A visita ocorreu desatenta. As cabeças grisalhas ocupavam-se com o futuro próximo, agendado para as oito da noite. Postaram-se ao redor do leito dos cônjuges de forma a não se avistarem. Sinal de respeito que não evitou que um mesmo pensamento torpe atravessasse, muito rápido, a mente dos dois. Quem sabe os dois ficavam viúvos ao mesmo tempo? Aquele encontro talvez não fosse uma mera coincidência, mas um presságio.

Chegaram filhos, genros, noras e netos para a visita. Seria possível apresentarem-se todos uns aos outros, os dois dizerem-se amigos antigos e criarem um ambiente de camaradagem. Naquela idade, certamente ninguém suspeitaria de um romance entre eles. Mas menos por temerem trair-se do que por uma secreta vaidade que sentiam em conservar tão privado seu envolvimento, mantiveram-se discretos, fingindo-se completos desconhecidos até partirem, ao término da visita, lançando apenas um ao outro um prudente olhar enviesado.

As oito em ponto o porteiro chamou pelo interfone:

- Dona Eloísa, o senhor Antonio esta aqui.

- Obrigada, Renato. Pode deixá-lo subir. Estou esperando.

Antonio chegou com uma caixa de bombons trufados. Eloísa agradeceu com um sorriso emocionado. Eram seus bombons favoritos na época em que se encontravam. Quase comentou, impulsiva, que, por causa do diabetes, agora só comia chocolate amargo, o que seria um comentário absolutamente inadequado.

Os dois começaram pouco a vontade. A conversa não avançava. Felizmente havia o vinho. Rejuvenesceram no meio da segunda taça. A prosa espalhou-se como nos tempos antigos por vários assuntos, as digressões emendavam-se. Até que Eloísa tocou-lhe as costas das mãos, depois as coxas e então os dois se beijaram.

Daí pra cama foi um pulo. E da cama para o céu, o próximo salto. Duas vezes se elevaram, um prodígio na idade em que estavam. Quando baixaram, nus, na cama, sorriram satisfeitos, trocaram palavras de amor, recordaram o passado e se admiraram de como ainda combinavam.

Eloísa ousou achar que ainda tinham uma chance. Aos sessenta e muitos os dois, até os noventa, mais de vinte anos lhes restavam. Aconchegou-se em Antonio e sussurrou que podiam separar-se, ficar juntos. Viajar, caminhar na praia de mãos dadas, dormir e acordar lado a lado. Que ainda tinham um futuro e que era um erro desperdiçar novamente aquele sentimento tão raro que os ligava.

Antonio desatou seu abraço, afastou-a levemente e montou a mesma cara de triste, a expressão que Eloísa tantas outras vezes antes presenciara. Alegou que a esposa estava doente e, uma vez mais, que ela sabia que lhe faltava coragem.

Eloísa olhou-o com dó. Olhou-se a si também, refletida no espelho do guarda-roupa, com o mesmo pesar. Banharam-se e vestiram-se os dois. Depois jantaram. Conversaram amenidades. Despediram-se com um abraço apertado. Nunca mais se encontraram.

Melisas Ribeiro
Enviado por Melisas Ribeiro em 19/03/2016
Reeditado em 03/04/2016
Código do texto: T5578119
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