*A caminhada

A caminhada

Coisas que só acontecem comigo – XXXIV

Há uns dois ou três anos, fiz uns exames de rotina e um deles, o de triglicerídeos, acusou uma taxa de 350ml/dl. Lembro-me de que, ao ver o exame, o médico me sacudiu e perguntou se eu estava vivo mesmo. Como eu também não tinha certeza, respondi que talvez. Mas isso não é o caso.

Além de me aconselhar a fazer uma dieta, o médico também me recomendou caminhadas diárias e isso logo foi se tornando parte da minha rotina.

Certo dia, durante uma dessas caminhadas, fui abordado por uma moça bonita (nesses casos, é sempre uma mulher bonita!), que deveria ter uns dezessete anos, não mais que isso. Parecendo meio desesperada, pediu-me que a socorresse.

Fiquei assustado, pois não vislumbrava ameaça alguma naquele instante e, por isso, procurei acalmá-la:

– Calma, por favor! De que se trata?

– Meu pai vai me matar! Vim na lotérica pagar a conta de energia e perdi o dinheiro. Agora estou com medo de voltar pra casa!

– E de quanto é essa conta?

– É de R$ xxx,xx, mas ele me deu mais, deu R$ xxx,xx.

Ora, se fosse um homem, com certeza eu nem lhe daria atenção, no entanto, mulher é um ser sempre mais indefeso. Também não é novidade pra ninguém que, em meio a tantas, tem umas muito mais espertas e ladinas que o diabo.

Não me parecia ser o caso, mas eu também estava me metendo numa encrenca: pagar a conta e ainda voltar o troco! Tantas pessoas naquela avenida e ela achar de abordar exatamente a mim. Das duas uma: ou eu tinha cara de otário ou, de fato, fora o único em que ela acreditara.

É óbvio que eu teria um monte de desculpas para me safar daquela inconveniência.

Como ali perto tinha um supermercado com alguns caixas eletrônicos, fui até lá, retirei a quantia e lhe entreguei, mas com uma recomendação:

– Onde você mora?

– Na rua ..... n°....

De fato, era o endereço da conta.

– Você terá que me prometer duas coisas, sem as quais não teremos acordo.

– Ok, moço, eu prometo. O senhor pode confiar!

– Primeiro: eu sou muito conhecido aqui no bairro, portanto, você não dirá a ninguém que estou lhe dando essa ajuda. Segundo: como você disse que seu pai iria lhe matar, de agora em diante, sua vida me pertence. Portanto cuide muito bem de sua vida, pois eu não estou sabendo cuidar nem da minha...

Dizendo isso, entreguei-lhe a quantia e, surpreendentemente, ela me deu um beijo no rosto, agradeceu e saiu. Nunca mais a vi, embora morando no mesmo bairro.

Dois dias depois, falei do caso pra minha mulher, que me pareceu já saber. Neste mundo de internet, celulares com câmeras e filmadoras, os segredos andam cada vez mais desprotegidos.

Ela ouviu tudo num silêncio de me queimar os tímpanos. De quando em quando, franzia os cenhos como se descobrisse alguma pista. Terminando, eu disse:

– Pronto, foi isso.

Seguiram-se uns dez longos segundos, para que eu me sentisse no banco dos réus, no dia do juízo final.

– Engraçado...suas caminhadas sempre foram pela manhã muito cedo... Você mudou o horário por quê? Onde essa mulher mora? Como ela estava? Quem viu isso? Você pensa que estou engolindo essa palhaçada? Por acaso, tenho cara de tonta, de broca, de doida, de lesada? Aposto que ela tem idade de ser sua filha. Deve ser dengosa que nem uma gata! Não sabia que você era o Padre Pedro ressuscitado! Vamos, desembuche logo tudo de uma vez! Por isso que você andava com cara lambida, como cara de cachorro que come ovos no ninho... E você ainda me conta isso como se fosse a coisa mais natural do mundo? Por acaso meu marido é candidato ao Prêmio Nobel da Paz e eu não sei? Pois a partir de amanhã, irei caminhar com você. Você ainda não me viu com raiva, mas se prepare, porque vou descobrir essa história tim tim por tim tim... Ponha-se você em meu lugar e tente entender como me sinto... Desde quando você é assistencialista? Bonito você, muito bonito...!

Confesso que nunca pensei que, para fazer o bem, eu tivesse que pagar ainda mais caro do que já tinha feito.

Como dizemos cá no Nordeste: “tem vezes que, ao nos benzermos, quebramos as ventas...” Nem que eu tivesse trocado o vinho da Santa Ceia por cachaça, merecia aquele interrogatório. As mulheres que se dizem “não ciumentas” são mesmo as piores...

Vôte!

Um Piauiense Armengador de Versos
Enviado por Um Piauiense Armengador de Versos em 15/11/2017
Reeditado em 12/07/2022
Código do texto: T6172625
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.