San Juan de Ortega é um lugar perdido em meio ao nada, mas nem por isso desprovido de importância histórica. Ali se encontram o Monastério de San Juan de Ortega, a linda Igreja de San Nicolás de Bari, em estilo românico, e um albergue paroquial com 68 leitos.

No dia exato do equinócio da primavera, um único raio de sol passa por uma abertura específica na parede da igreja atingindo em cheio a figura da Virgem Maria esculpida sobre seu capitel principal. Isso ocorre apenas uma vez por ano e atrai espectadores de todas as partes. A fumaça do incenso faz com que esse acontecimento seja ainda mais espetacular, pois o raio de sol invade a igreja como uma lança, transformando-se em uma linha perfeita como a de um “laser”, atingindo em cheio o ventre da Virgem.

Enquanto todas as demais figuras esculpidas na igreja olham para o Anjo da Anunciação, a Virgem Santa é a única a olhar diretamente para a abertura por onde entra o raio. Para tornar o acontecimento ainda mais notável e emblemático, isso tudo se dá exatamente a 9 meses do dia do nascimento de Jesus, deixando clara a ideia da concepção.

Isso tudo me foi explicado e mostrado espontaneamente pelo pároco local que veio receber-me quando entrei na igreja. Curiosamente notei que nenhum outro peregrino ali se encontrava. Fiquei conversando ainda um bom tempo com ele e não vi ninguém chegar. Como é possível que alguém possa deixar de lado tanta história? Além do mais, a própria igreja é de uma beleza ímpar e nada cobra aos seus visitantes.

Notei que quando saí o número de peregrinos tinha aumentado consideravelmente do lado de fora. Quase não havia mais lugares nos bancos existentes na frente da igreja e do albergue. Acabei encontrando muita gente que tinha conhecido pelo Caminho. Isso é perfeitamente normal – esses encontros casuais se sucedem e ocorrem ciclicamente. As pessoas vêm e vão em nossas jornadas sem qualquer conotação específica. Eu pessoalmente preferia a solidão das caminhadas para obter uma maior condição de reflexão daquilo que estava vivendo. Em raríssimas ocasiões tive alguém caminhando comigo e quando isto ocorria era por pouco tempo.

Em San Juan de Ortega você não tem para onde ir. Ou fica naquele pequeno núcleo na frente dos prédios que compõem o Monastério ou segue adiante. Depois de ter conversado com amigos feitos no Caminho e ter tomado algumas cervejas com eles, chegou finalmente a hora do jantar. Havia uma lista de espera, pois o refeitório não conseguia abrigar 68 pessoas de uma só vez.
 

Vi um casal sendo chamado. Eu estava convicto que havia dado meu nome antes dele e fiquei preocupado de não ter ouvido a convocação.
Levantei-me e fui indagar pessoalmente ao administrador se não estaria havendo algum engano, explicando que vira o casal dar o nome depois de mim. Fui recebido com extrema grosseria pelo responsável que com o dedo em riste me disse que sabia trabalhar e que não fazia besteiras. Fiquei visivelmente constrangido com o acontecido e disse ao nervoso senhor que por favor não gritasse comigo, pois isso era algo que não tolerava de ninguém, mesmo não estando em meu país.

Em seguida meu nome foi chamado e fui conduzido pelo mesmo autor da grosseria a uma mesa retangular com vários lugares vagos. Ele colocou-me exatamente em frente a um casal que conversava em inglês. Cumprimentei-os e me apresentei formalmente.
Perguntei também em inglês de onde eles eram e a moça me disse: sou Isabella, brasileira e venho do Rio de Janeiro. Sorri e já falando em português disse-lhe que eu também era brasileiro e vinha igualmente do Rio de Janeiro. Expliquei que havia combinado através de endereço e-mail obtido na lista de peregrinos da AACS, dividir um táxi de Pamplona a Saint-Jean-Pied-de-Port com alguém com o seu mesmo nome, o que acabou não ocorrendo.
Para minha surpresa ela falou: “pois foi comigo mesmo – eu me enganei na data que chegaria a Pamplona e por isto nós não nos encontramos”. A vida é realmente cheia de surpresas. Logo em seguida fui dormir.

Acordei sobressaltado às 2 horas da manhã e fiquei rolando na cama. Aquele episódio e a indelicadeza do administrador não me saiam da cabeça. Vou embora daqui, decidi. Levantei-me com todo o cuidado do mundo para não acordar ninguém mexendo o menos que podia na minha mochila. Mas havia um problema: os benditos sacos plásticos. Por mais que a gente queira, é quase impossível que eles não façam algum ruído, ainda mais no silêncio da madrugada.

Assim que estava de pé, já pronto para sair, recebi um tremendo soco na cabeça seguido de uma frase em alemão que não consegui decifrar. Era uma senhora de uns 80 anos que dormia na parte de cima do beliche onde eu estava e que certamente fora despertada involuntariamente por mim.
Fiquei atônito com aquilo, pois por mais que eu estivesse errado não era o caso de ter levado um sopapo daqueles no meio da noite. Decididamente San Juan de Ortega não estava indo muito com a minha cara, pensei.
Avaliei a situação e fiquei olhando aquela senhora sentada na cama e que me encarava fixamente. Minha única reação foi dar um passo para trás, estender o braço e a mão em sua direção e bater meus tênis dizendo: “HEIL HITLER!!”.
Ela deve ter sido secretária dele.

Abri a velha e pesada porta de madeira do albergue temendo encontrar o tal espanhol da véspera. Fechei-a delicadamente e pus-me em marcha em direção a Burgos, 28 km à frente.

Era uma madrugada sem lua e sem estrelas e estava difícil ver as setas que indicavam o Caminho. Peguei a engenhosa lanterna, daquelas de colocar na cabeça que havia ganhado do meu amigo Andrea em Estella, e fui em frente. Cheguei a uma bifurcação onde não havia nenhuma indicação de qual seria o caminho a seguir.

Instintivamente peguei o da direita e continuei andando. Uma hora depois cheguei a Agés, um povoado de 60 habitantes. Tinha acabado de encher meu cantil numa linda e antiga fonte, quando passando na frente de um pequeno albergue vi uma mulher parada em pé. Só me faltava essa, pensei: uma assombração para completar os últimos acontecimentos.
Na realidade a pessoa estava bem viva. Viu minha bandeirinha do Brasil espetada na mochila e disse: “Olá. Você é brasileiro? Está indo para Burgos? Posso ir contigo?”. Era Fernanda, uma alagoana que fazia o Caminho pela segunda vez. Claro que sim, respondi-lhe.

Contou-me que havia perdido o sono sem um motivo aparente e que não conseguiria esperar o dia amanhecer. Disse-lhe de minhas desventuras no albergue com o administrador e com a senhora alemã. Rimos muito a respeito.

O dia já começava a raiar quando passamos por Atapuerca e iniciamos a dura subida ao Alto da Matagrande, com muitas pedras soltas espalhadas pela trilha. Detive-me por um momento a tirar algumas fotos do sol que nascia magnificamente e Fernanda distanciou-se bastante de mim na íngreme subida.

De repente, ela escorregou numas pedras lá em cima e, girando-se, começou a descer perdendo nitidamente o controle de seus passos. Vinha em velocidade. Não deu outra: acabou aterrissando violentamente de barriga num mergulho tipo “peixinho” feito pelos jogadores de vôlei quando ganham um campeonato. Coitada....

Apressei-me em socorrê-la e a confortá-la.
“Eu caí”, ela disse (como se fosse possível eu não ter percebido).
Fiquei ali fazendo-lhe companhia até que começaram a chegar outros peregrinos, dentre os quais algumas conhecidas dela.
- Vá em frente Sergio, disse-me. Não te prendas. Estou bem e, se necessário, minhas amigas me ajudarão.

Meio chateado com aquele episódio continuei a caminhar, passando por Villalval, Cardeñuela Riopico e Orbaneja Riopico. Subitamente percebi que não conseguiria cumprir todo o percurso até Burgos. Sentia-me aborrecido, fraco e desanimado. As experiências da véspera, incluindo a da fossa comum onde foram enterradas as pessoas fuziladas pelo Regime Franquista, tinham sido demais para mim.

Ao entrar em Villafria de Burgos resolvi dar-me um presente: hospedei-me num Hostal bem na entrada da cidade, com um quarto só meu, com um banheiro só meu, com minha própria televisão, WI-FI, etc. Eu merecia!!!!!! Tomei um banho quente, deitei-me e adormeci profundamente.
 
Sergio Righy
Enviado por Sergio Righy em 29/09/2017
Reeditado em 09/10/2017
Código do texto: T6128344
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