O sol parecia estar disposto a encenar uma de suas melhores apresentações naquele dia. A temperatura começara a subir inexoravelmente e resolvi pegar o Caminho para Navarrete, antes que as coisas se complicassem. Seriam mais 13 quilômetros até lá. Queria ficar onde estava, mas achei que tinha caminhado muito pouco - somente 10 km - quando o normal gira em torno de 25 km/dia. Não obstante, saí de Logroño com a firme convicção de que ainda voltaria algum dia para conhecê-la melhor.
Enveredei por ruas tortuosas e movimentadas e assim, aos poucos, fui deixando mais uma bela cidade para trás. Foi um parto suave, sem dores. Eu estava feliz e bastante disposto a caminhar.
Um silêncio quase absoluto, que só o Caminho de Santiago tem, aos poucos se impunha sobre o falatório das pessoas e o ruído dos automóveis. O ser humano parece não saber fazer outra coisa a não ser barulho e provocar a erosão.Talvez estivesse sendo excessivamente crítico em meu julgamento, pensei comigo mesmo.
Fui seguindo as famosas setas amarelas e após caminhar por 7 quilômetros sem descanso, cheguei ao "Parque de la Grajera". O lugar era maravilhoso. Muito verde, com um grande lago, frondosas árvores, bancos de cimento estrategicamente colocados e principalmente água - muita água. Eu estava precisando dela. Enchi meu cantil e mergulhei a cabeça sob o jato daquele precioso líquido que jorrava de uma grande bica estilizada de metal. Molhei-me todo, mas foi delicioso!!
Repousei por uns 15 minutos deitado sobre um dos bancos, olhando as copas das árvores logo acima de mim. Ao levantar-me, reparei que havia uma capelinha com uma santa ali bem perto. Parecia ser a Virgem Maria. Parei bem em frente e resolvi fazer uma prece, coisa rara para mim, devo admitir.
Pedi pela minha mulher, filho, netos, irmã, parentes e amigos. Agradeci pelo fato de ter chegado até ali sem qualquer sequela. Eu não tinha nem mesmo uma única bolha nos pés, terror de todos os peregrinos. Agradeci por estar vivendo jornadas inesquecíveis e por ser ainda lúcido e saudável, apesar dos meus quase 70 anos. Pedi para nunca fazer o mal a ninguém e que, ao contrário, pudesse ajudar os meus semelhantes.
Retomei finalmente a marcha. O dia esquentava cada vez mais e eu tinha uma subida de 3 km para vencer até o "Alto de la Grajera". Cheguei lá em cima extenuado. O suor saía por todos os meus poros.
Resolvi sentar-me sob uma árvore, quando comecei a ver alguém vindo em sentido contrário e a passos largos. Eu podia ouvir o ruído provocado pelos cajados que usava: um em cada mão - tac, téc, tac, téc, tac, téc, tac.......
Aquele som perfeitamente cadenciado ia aumentando aos poucos e se aproximava cada vez mais e onde eu estava.
- Um peregrino fazendo o Caminho de Santiago no sentido inverso? Isso não costuma ser boa coisa, pensei.
Percebi tratar-se de uma jovem. Ela caminhava bem no meio da trilha olhando para o chão, como que procurando por alguma coisa. Levantei-me e indaguei se ela estava precisando de ajuda.
Era uma linda moça de uns 20 anos. Tinha uma beleza fulgurante, difícil de não ser notada. Era alta e esguia. O esforço que empregava caminhando determinadamente sob aquele sol impiedoso, lhe iluminava ainda mais o rosto suado, tornando-o ainda mais vívido e colorido. Parecia um anjo. De onde tinha saído? Para onde ia? O que objetivava? Ofereci-lhe meu cantil. Ela estava visivelmente cansada e bebeu sofregamente, acabando com toda a água que eu tinha. Acho que a dela tinha terminado. Ela desculpou-se.
- Não foi nada - pego mais depois, falei. Quero mesmo é saber qual é o teu problema.
Com os olhos úmidos, explicou-me que havia perdido sua pedra e tinha que encontrá-la, custasse o que custasse.
- Pedra? Perguntei por ter achado que não tinha entendido muito bem.
- Sim, minha pedra - Eu a trouxe da Holanda. Antes de vir para o Caminho meus parentes e amigos fizeram cada um deles um pedido a Santiago de Compostela segurando uma pequena pedra. Algumas dessas pessoas estão enfermas e nela depositaram suas últimas esperanças.
Eu prometi a eles que a colocaria aos pés da Cruz de Ferro que existe no Caminho logo após Foncebadón, como normalmente fazem os outros peregrinos. E eu simplesmente a perdi. Como pude fazer isso? Já liguei para os albergues e restaurantes por onde passei, mas ninguém a encontrou. Devo tê-la perdido pelo caminho e preciso encontrá-la de qualquer maneira.
- Ponderei dizendo-lhe que sua empreitada era muito difícil, até mesmo impossível. Falei que deveria desistir e explicar aos seus parentes e amigos o que havia acontecido. Eles saberiam entender e certamente a desculpariam.
- "No way" - nem pense nisso, respondeu-me determinadamente.
Quando falou, seus olhos verdes faiscavam. Ela me olhava com certa fúria por eu estar atrapalhando seus planos. Meio sem graça, talvez por ter percebido seu descontrole, agradeceu-me pela ajuda e continuou sua caminhada.
Não havia mais ninguém ali, provavelmente pelo forte sol que fazia naquele momento. Apenas eu, ela e o silêncio do Caminho. Meio surpreso e inconformado com aquele desfecho, deixei minha mochila encostada na árvore e alcancei-a logo adiante.
Segurei-a firmemente pelo braço e falei: tudo bem, você pode continuar a fazer o que quer, mas antes lembre-se de que um peregrino jamais deve voltar sobre seus próprios passos. Isto é desdenhar do que você já conquistou até aqui com a ajuda de Santiago. Ele te quer bem e deseja te receber em sua Catedral!! E dessa maneira talvez você nem chegue lá. Ela agora parecia estar considerando os fatos, pois me olhava com outra expressão - estava refletindo. Começou a ensaiar um choro baixinho, quase imperceptível.
- Eu continuei: e quanto à tua pedra, esqueça-te dela. Santiago já a pegou pra ele. Por isso é que tu não a encontras. Ainda assim, se queres tanto colocar uma pedra aos pés da Cruz de Ferro como prometeste, retoma a tua marcha e escolha a mais bonita que achares no Caminho.
Encoste-a à tua testa e mentalize com muita fé, pedindo que todas as preces, anseios e energia que te confiaram antes da tua vinda pra cá, sejam transferidas para ela. Isso feito, quando chegares aos pés da cruz, faça uma oração e deixe-a cair para que tome seu lugar entre as outras milhares que ali estão. Assim, tua missão estará cumprida e prosseguirás teu Caminho em paz.
Logo que acabei de dizer isso, ela largou os cajados e abraçou-me, chorando convulsivamente. Quando parou, distanciou-se um pouco e olhou-me com ternura - tinha a gratidão estampada em seu rosto.
Com um grande e iluminado sorriso me disse: "thank you man. You really helped me".
Retomou vigorosamente e a passos largos seu Caminho, dessa vez na direção certa, enquanto eu fiquei ali estatelado sem entender como tinha conseguido dizer tudo aquilo. Na verdade não entendi até hoje.
Vi-a desaparecer ao longe após uma curva na trilha de terra, não antes de ter parado e acenado demoradamente para mim.
Nesse momento quem começou a chorar fui eu......
Como é bom fazer o bem. Senti uma grande onda de felicidade invadindo todo o meu corpo. Uma recompensa extraordinária, sem par....
E eu, que fiz milhares de fotos pelo Caminho, não me lembrei de fotografar essa moça. Nem mesmo perguntei seu nome. Sua imagem ainda permanece viva em minha mente.
Retomei devagar e aos poucos minha marcha para Navarrete.
O perfume daquela jovem desconhecida parecia ter ionizado o Caminho e estava em todos os lugares sobrepondo-se ao das flores.
Custei a conciliar o sono naquela noite. Seria ela realmente um anjo? Com este pensamento em minha mente acabei adormecendo, por fim - tinha que sair cedo no dia seguinte.
A cidade de Nájera, próxima parada indicada no mapa estava esperando por mim.
 
Sergio Righy
Enviado por Sergio Righy em 29/09/2017
Reeditado em 09/10/2017
Código do texto: T6128303
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