O recanto

— Bahia. Bahia. Coh, coh, coh.

O velho caminhava pelo meio do capim gordura batendo uma na outra as mãos em concha e chamando pelo nome a madrinha do rebanho. Duas da tarde. Era hora da apartação da bezerrada, sem aquela desconvivência temporária das mamães e seus filhotes bovinos, na manhã seguinte não haveria leite para as crias humanas. Todos os dias naquela hora ele despejava, do saco para o cocho, o sal grosso tão apreciado pela criação. Por isso não era preciso chamar muito e logo se avistava pelos trilhos sulcados pelos cascos no pasto distante, ela, a madrinha, seguida de uma longa procissão de ruminantes. Bahia era uma vaca branca com vários nós na base das guampas, particularidade que o velho explicava de modo professoral representar o número de crias da estimada rês que, certamente, morreria velha e de morte natural. Depunham a favor de sua permanência ali a afeição e a promessa de longevidade do velho.

— Bahia. Bahia. Coh, coh, coh.

Na rede da varanda, eu tirava os olhos do livro e os recreava na paisagem de outubro. O capim renovado pelas primeiras chuvas. Os talhões de roça, caprichosamente delimitados, exibiam ao sol o milho jovem, de poucos dias, o feijão miúdo coetâneo que cresceria junto enlaçando suas ramas pelas hastes esbeltas. Cresceriam assim, gêmeos bivitelinos, cumprindo sua nobre missão de provedores do sustento daquela casa. Um pouco mais além o mandiocal, também fracionado em talhões de idades diferentes. Já lá na borda da mata a capineira em fase de rebrota, garantia o passadio do gado na próxima seca.

Para dentro da mata o estreito caminho ia se perdendo em cavas flanqueadas de cambaubais. Era tão pouco transitado que o capim invadia-lhe o leito, salvo nas paralelas escavadas pelas rodas cravejadas do carro de bois que o velho ainda conservava para pequenos serviços, para os quais reservara apenas uma junta de bois que como Bahia, também gozavam de certos privilégios. Lá vinham eles agora, Roxinho e Mulatão, na lanterna da fila, no seu caminhar pachorrento, imponentes, cada qual com sua meia tonelada de massa corpórea. Aqueles dois tinham personalidade. estavam sempre juntos como se uma trela imaginária os atasse um ao outro Sempre deixavam que as vacas e o gado miúdo se fartassem primeiro, mas quando finalmente se aproximavam do coxo tinham exclusividade, os demais se afastavam como se considerassem uma imprudência permanecer. Trabalhavam muito em determinadas épocas, arrastando o arado no preparo da terra para o plantio, ou transportando lenha, ou telhas, ou tijolos. Tudo no seu ritmo lento e contínuo, mas tinham também longas temporadas de descanso, quando o ócio os tornava ainda mais parrudos.

Agora o velho caminhava no meio do rebanho, cuidadoso, inspecionando cada rês com seus olhos experimentados. Havia sempre o risco de uma praga, uma verminose ou doença qualquer que ele sempre detectava pelos primeiros sintomas. Na copa da mata as cigarras soltavam seu escarcéu. A passarada, a julgar pelo silêncio, devia estar se escondendo do mormaço no frescor das grotas distantes. Eu impulsionava a rede com os pés e, tomado de profundo bem estar, mergulhava novamente no mundo da leitura.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 29/09/2017
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