O Paciente

Olhei para meu reflexo no espelho do banheiro e me vi infeliz. Mas a soma que haviam oferecido para que eu dirigisse "O Paciente Polonês" era alta demais para que a recusasse. Portanto, dane-se a minha infelicidade, disse lá com os meus botões. Quando saí do banheiro, Gislaine, minha produtora me lançou um olhar crítico.

- Eu sei que você sente dores quando é obrigado a dirigir filmes água com açúcar, mas a sua cara está péssima.

- Eu vou sobreviver - retruquei. - E temos uma audição de elenco para fazer. A Clara Castanho já chegou?

- A Clara desistiu. É justamente o que eu vim lhe dizer.

Praguejei em voz baixa. Clara Castanho era a minha aposta para protagonista feminina de "O Paciente Polonês": uma jovem atriz de TV, que vinha de um grande destaque na infindável novela adolescente "Tretas".

- Alguma justificativa?

- Surgiu um papel secundário na próxima novela das oito... exposição rápida e garantida. Ela lamentou e disse que, se algum dia você filmar "Uma Princesa de Vênus", teria interesse em participar.

- Mas eu não - resmunguei. - Ela acabou de trocar um papel de protagonista por uma ponta na novela do horário nobre... bom, quem sou eu para julgá-la?

- Um diretor três vezes premiado no Festival de Caldas Novas - repetiu Gislaine, com fervor.

- E no Festival de Curtas de Aberdeen, não esqueça.

- Ali você só foi convidado e não estava na mostra principal - corrigiu-me ela.

- Mas é bom para colocar no currículo - atalhei. E, olhando para meu relógio de pulso:

- Quem mais chamamos para a audição?

- Só a substituta de Clara Castanho... Maria Luíza Marques.

- Ah, a garota do comercial da pasta de dentes Sourire... pelo menos, já sabemos que tem dentes brancos.

* * *

Minha ideia inicial é que iríamos fazer apenas a leitura fria de um trecho do roteiro, e depois, uma cena curta com Marcos Junqueira, o veterano ator que iria interpretar o papel-título. Mas, como eu não conhecia a interpretação da substituta, decidi realizar um teste mais tradicional, começando por um monólogo.

Os testes de elenco estavam sendo realizados num salão do estúdio, com uma mesa longa numa das laterais, atrás da qual nos instalamos eu, Gislaine, Estevão Ribas, meu diretor de fotografia, e o próprio Junqueira. Ao nosso lado, uma câmera de TV num tripé e o operador, Felipe. A marcação para os atores fora colocada cerca de quatro metros à nossa frente - um "X" feito com fita crepe no chão.

Tudo pronto, virei-me para Gislaine, e avisei:

- Vamos começar.

- Maria Luíza! - Gritou Gislaine

Acionei o cronômetro. E, quando a porta lateral do estúdio se abriu, me vi, pela primeira vez frente a frente com ela que se tornaria parte essencial da minha vida profissional: Maria Luíza Marques. Estava então com 22 anos, era branca, magra, 1,60 m de altura, cabelo castanho liso. Viera vestida de modo sóbrio, com um vestido azul-escuro acinturado, de alcinhas, barra pelos joelhos, sapatos de salto alto pretos. Entrou de modo confiante, passadas seguras, fez contato visual comigo e com os demais presentes e parou sobre a marca. Anotei na minha agenda: "boa presença".

- Boa tarde - disse ela, olhando direto para mim. - Eu sou Maria Luíza Marques, e vou apresentar um monólogo do terceiro ato de "Dores de Amores".

Balancei a cabeça em concordância. "Dores de Amores" era uma boa escolha para alguém que queria um papel em "O Paciente Polonês".

A atriz entregou o texto sem afetação, com emoção, e dicção clara. Concluiu em precisamente três minutos.

- Muito bem, Maria Luíza... - elogiei-a, polidamente. E virando-me para o operador da câmera:

- Felipe, dê-lhe a cópia do roteiro. Gostaríamos de ouvi-la ler a cena 5, página 7.

Maria Luíza recebeu a cópia do roteiro das mãos do operador, respirou fundo, e começou a ler as falas da protagonista. À minha esquerda, Junqueira balançava a cabeça em aprovação:

- Ela é boa... - repetia baixinho. - Ela é boa.

* * *

Para o diálogo entre Junqueira e Maria Luíza que finalizaria o teste, mandei colocar duas cadeiras de frente uma para a outra, sobre a marca no chão do estúdio. Foi dado um tempo para que os atores decorassem suas falas, e depois fiz meu trabalho de direção.

- Esta é a cena no terceiro ato do filme em que a enfermeira avisa ao paciente que terá que abandoná-lo à própria sorte, pois os nazistas estão avançando pela França. A enfermeira percebe então que seus sentimentos pelo paciente já não são mais apenas aqueles ditados pelo cuidado profissional... dúvidas?

- Por mim, OK - foi a resposta de Maria Luíza.

- Vamos começar então... ação!

Maria Luíza olhou para Junqueira com expressão atormentada:

- Sei que não é isso o que queria ouvir... mas terei que partir. Em definitivo, receio.

- Por quê? Imaginei que tudo houvesse voltado ao normal entre nós...

- Os tempos em que vivemos não são normais... a guerra que parecia tão distante e irreal, agora está às nossas portas!

- Sei o que quer dizer... então, o nosso caso é sem esperança?

- O amor é como uma doença incurável, do qual a redenção se dá pela morte!

- Então é isso o que deseja? A morte?

- Não! Eu quero viver... mas para isso, terei que renunciar ao amor que sinto por você. Não posso levá-lo comigo!

- A mim ou ao meu amor?

- O meu amor por você, carregarei comigo enquanto eu viver...

A cena havia acabado, mas Maria Luíza virou-se para mim e disse:

- Diretor, estava aqui pensando numa ideia que mudaria esse filme completamente.

- Pois não, Maria Luíza. O que seria?

- A enfermeira veste o paciente como um oficial da SS, e consegue tirá-lo do hospital passando bem no meio das tropas nazistas, sem que eles percebam o truque.

Nós, na mesa de audição, nos entreolhamos.

- Mas Maria Luíza... esse filme é uma tragédia. Ele não termina com um final feliz.

- Não precisa terminar com um final feliz - atalhou ela. - Mas me digam se essa cena não criaria um belo suspense no fim do terceiro ato?

Junqueira levantou o polegar direito. Havia acabado de se render à Maria Luíza Marques.

Em seguida, foi a minha vez de levantar a bandeira branca e me render à ela também.

- [28-09-2017]