ANTÔNIA: A GENTE COLHE O QUE PLANTA.

Sozinho. Lançado no chão. Piso frio. Corpo débil. Respiração cada vez mais ofegante. Fraco, ferido e cansado. Mais cansada ainda estava a mente dele pelo esforço de tentar aceitar sua própria culpa por aquela situação. A dor do golpe certeiro que lhe derrubou ainda era forte no seu rosto. Seus braços e pernas permaneciam inertes e dormentes. A sua barba grisalha manchada de sangue foi ficando molhada por causa do suor frio que corria em seu corpo. Em silêncio e ainda em choque, com o rosto grudado no solo, ele pode ver e sentir o liquido quente e vermelho que formava a poça de sangue ao seu redor. Largado para morrer, sem receber nenhum socorro. Seria este os seus últimos minutos de vida? As palavras ditas a ele, pouco depois de receber aqueles dois tiros, se repetiam como quedas de gotas d’água caindo em sua cabeça: “A gente colhe o que planta! ”.

Dizem que o roteiro da vida passando na mente é o que vem antes dos últimos suspiros. As pegadas, formadas com sangue, em direção a porta de saída, o fizeram se lembrar da primeira vez em que os sons de um salto alto despertaram toda a sua atenção. Aquelas passadas firmes e decididas entrando no restaurante, acompanhadas do doce e forte perfume que exalou o ambiente, foram o que atraiu os olhares de todos os homens para aquele belo rosto e corpo exuberante. A linda mulher, aparentemente orgulhosa, em seu vestido preto e curto em demasia, demostrou-se frágil e tímida ao pedir licença para um senhor de cabelos e barba bem grisalhos, sentando-se ao seu lado. Ela reclamou, com desprezo, de dois daqueles homens que ali estavam e de suas investidas, declarando para o tal senhor todo o seu incômodo. O senhor, que era ele, ficou encantado com aquela formosa mulher morena de cabelos longos e ondulados, que parecia ser provida da virtude de escolher para si somente a companhia de homens maduros e experientes.

“Qual o seu nome? ”. “Cássia”. Ela respondeu. Aquele foi o início de uma descontraída e cordial conversa que se tornou habitual após a troca dos números de telefone. O contato contínuo fez com que aquele encontro se repetisse por várias vezes naquele mesmo restaurante, sempre acompanhado de vinho, toques singelos e olhares marcantes, sob a admiração e espanto de todos à volta. Ele jamais se permitiu desiludir pela facilidade em cativar o sorriso e a atenção daquela mulher, tão fascinante, provavelmente devido a ingenuidade dela, tão exposta quanto suas belas pernas. A bonita amizade se tornou em uma troca diária de carinho, carícias e afagos. Até que, em uma noite, ela revelou-se envolvida pelos galanteios daquele senhor grisalho e experiente, disposta a uma entrega total de corpo, de vida e de sonhos ao seu lado. Aquela foi a primeira noite de suor, sussurros, apertos, tapas e gemidos, dos quais, em toda uma vida, ele jamais havia experimentado. Totalmente envolvido, saciava-se na nudez daquela pele lisa, de coxas grossas e seios volumosos, embriagando-se de prazer a cada encontro erótico.

Por aquela atração cada vez mais envolvente e aquele sentimento cada vez mais cúmplice, ele lhe fez juras de amor e por ela largou tudo. O tal senhor, desprovido de muitos bens, tinha dantes apenas o prestígio dos familiares, dos filhos e da comunidade. A esposa, que até então permanecia ao seu lado, sempre se esforçou para manter o casamento, muitas vezes suportado, em nome da conduta religiosa e social. Ele era um homem bem estimado, conhecido pelas suas constantes ações de caridade e tendo, como um pecado perdoável, apenas a leve inclinação para a bebida quente e o vinho. O que todos não sabiam é que ele carregava consigo outro mal, um segredo oculto que ele jamais imaginaria que também fosse o terror de sua mente naqueles últimos minutos de dor, frio e sangue.

Quando jovem e recém-casado, tinha ele uma vizinha idosa, pobre e viúva, na qual ele ajudava por intermédio da igreja com doação de alimentos e cestas básicas. Esta vizinha tinha uma neta de nome Antônia que sempre passava o período das férias com a avó. Ela era só uma linda, alegre e tímida criança de onze anos e longas tranças, mas não para ele. Todas as tardes, o jovem homem observava a menina ajudando a avó no trabalho com a pequena horta. Uma plantação modesta que havia no terreno amplo, sem cercas, que se estendia pelos fundos da velha casa onde elas moravam.

Um dia, Antônia estava sozinha a colher alguns tomates já maduros. O jovem homem se aproximou e conversou com ela por alguns instantes. “O que você está colhendo agora? ” Ele indagou. “Tomate! ”. Ela respondeu sorrindo pensando que ele não conhecia a tal planta. Ele, com os olhares oscilantes nos pequenos seios que nela se formavam, mal prestava atenção em suas palavras, mesmo assim continuava a lhe fazer perguntas bobas só para se manter perto de seu pequeno fascínio. “Tomate é? E por que tem tomate nelas? ”. Ele falava se aproximando cada vez mais. “Porque minha avó plantou tomate! ”. Ela respondeu sorrindo de novo sem notar o mal intento. “Hum! ”. Ele disse, enquanto se abaixou, segurou uma das mãos dela, acariciou e beijou. Ela, com a mais pura ingenuidade, continuava o diálogo: “Sabe, minha vó sempre diz que a gente colhe o que planta”. Ela mencionou tentando ser gentil e pensando o quão pouco aquele bom moço entendia de horta. “Ah! Então a gente colhe o que planta? ”. Ele continuava perguntando, desta vez acariciando seus braços e sua cintura. “Sim, senhor! É o que minha vó diz!”. Ele prosseguiu: “Então, se plantou tomate tem que colher tomate, não é Antônia? ”. Ela sorriu outra vez e então ele lhe fez um convite: “A sua avó foi ao mercado com a minha esposa. E como elas vão demorar, minha esposa pediu para preparar um lanchinho para você lá em casa. Tem bolo de milho, você gosta? ”.

Antônia, muito contente, deixou a cesta de tomate no chão e acompanhou o jovem para saciar sua vontade de comer bolo de milho. Ele também pode ter suas vontades saciadas. Antônia não pôde sair, nem fugir, nem gritar. Sua avó não ouviu o seu constante choro quando voltou do mercado, nem entendeu o silêncio da neta daquele dia em diante. Ele convenceu a menina a culpar a si mesma por tudo o que aconteceu. Antônia voltou para a casa dos pais e nunca mais retornou. O jovem homem continuou ajudando a senhora idosa e sempre perguntava pela menina. Aquela senhora sempre falava da bondade de seu vizinho para todos os seus familiares e amigos. Após dois anos, a avó de Antônia faleceu e ele nunca mais ouviu falar da criança. Naquele chão frio, envolto em sangue, o velho homem nunca imaginou que seria forçado a sentir tão profundo remorso pelo o que fez.

Após ter deixado mulher, filhos e seu próprio prestigio para ir viver com a amante, ele pediu para Cássia lhe esperar em uma pequena casa, na qual ele havia alugado. Este seria o local escolhido para o início de sua nova vida juntos. Cássia estava a sua espera com um delicioso bolo que ela havia preparado. “É de milho! Você gosta? ”. Ela o observava em silêncio enquanto ele saboreava e a elogiava por sua prenda. Cássia acariciava seus braços enquanto sorria para ele, satisfeita. Após comerem juntos, a campainha tocou. “Não estou esperando ninguém”. Ele disse. “Eu irei atender! ”. Ela respondeu. Cássia se levantou da mesa, caminhou e de forma imprudente, sem perguntar quem era, abriu a porta da frente. Dois homens bem armados, com armas de fogo e porretes, invadiram tranquilamente a casa. Ele reconheceu se tratar dos dois homens do restaurante dos quais Cássia havia reclamado de suas investidas. “O que está acontecendo? ” Ele perguntou e abraçou Cássia pensando se tratar de um roubo. Os homens não responderam. Um deles puxou Cassia para si e a agarrou. “Solte-a!”. Ele contestou. Mas, para sua surpresa, eles se abraçaram em um ardente beijo. “Cássia?! O que está havendo aqui, Cássia? ” Ele perguntou apreensivo e surpreso ao perceber toda a trama e traição. “Oh, nada demais querido! Só viemos fazer uma colheita!”. Os três sorriram e ela falou em voz áspera dando ordens aos homens para que iniciassem a agressão: “Acabem com ele!”.

Cássia assistia tudo sentada, tranquilamente, com as pernas cruzadas. O seu rosto era sério e sombrio. Quando cessaram a violência, ele, caído e quase inconsciente, olhou para ela e sussurrou perplexo: “Cássia?! “. Ela foi até ele, abaixou-se, aproximou-se do rosto sanguento e falou com voz baixa e firme: “Antônia! ”. Ele arregalou os olhos e abriu a boca surpreso. Ela continuou: “Se lembrou? Isso mesmo! Antônia de Cássia. Você tirou tudo de mais precioso que eu tinha, toda minha pureza, inocência e alegria, me lançou na pior vergonha. Agora sou eu que te deixo sem nada! ”. Ela segurou a mão dele, a beijou e lhe perguntou em tom irônico: “O que você está colhendo agora? ”. Ela continuou acusando-o enquanto lágrimas caíam de seus olhos: “Eu era só uma criança! Uma menina feliz e... frágil (nesse instante, ela interrompe o próprio choro e volta a falar em tom áspero) ... e agora aqui está você, um velho! Sem força, sem felicidade, sem moral! Agora é você que não pode sair, nem fugir e nem gritar”. Ela se levantou e como um último ato de vingança chutou o corpo ferido dele, dizendo-lhe em voz alta: Se sinta culpado agora! ”. Cássia deu as costas para ele enquanto caminhava para a porta de saída. Os dois homens ali parados apontaram as armas. Ele pôde ouvir os estrondos enquanto sentia a pressão das balas penetrarem seu corpo. Os homens saíram em seguida e foram em direção ao carro. Ela, ao fechar a porta da sala, olhou para trás e proferiu suas últimas palavras: “A gente colhe o que planta”.

Momentos de silencio e de terror se passavam. Ainda caído, e vivo, após vários instantes envolto naquela poça de sangue, ele sentiu o tremor do solo, como se fosse de um grande veículo se aproximando. Os tiros foram em suas pernas o deixando imóvel. Cássia e seus compassas fugiram e nunca mais foram encontrados. Levaram o carro e tudo de precioso que o velho homem ainda possuía, toda a economia que ele havia reservado para que eles dois iniciassem sua nova vida juntos. Ele sentiu o tremor do chão aumentando e pode ouvir o som da sirene de uma Ambulância. Ele mexeu levemente a cabeça em concordância e disse: “Sim!”. Em pensamento, ele concordava que não havia vingança melhor para a Cássia do que ainda lhe conceder o socorro. Pois, ele sabia que daquele dia em diante, após ter ficado inválido e ter perdido tudo, não havia nada mais útil para ele desejar do que a morte.

Jaildes Ferreira
Enviado por Jaildes Ferreira em 28/09/2017
Reeditado em 07/10/2017
Código do texto: T6127514
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