Detalhes de você

Semana passada comecei a reparar que você sempre calça o pé esquerdo primeiro do que o direito. Que passa por portas olhando para o chão, e que toca a maçaneta, sempre pedindo licença no lugar em que planeja entrar. Me dei conta de que você sempre coloca duas colheres de açúcar e mistura bem antes de provar. Se precisar de mais doce, você coloca mais duas colheres. Sempre par, nunca ímpar. Faz lista sobre metas para cumprir, filmes para assistir e lugares para ir. Você prefere a graça de riscar uma coisa de uma lista feito em papel, do que excluí-la de sua agenda no celular. Prefere a tarde do que a noite. E a noite do que a manhã.

Reparei que você corta o cabelo sempre na lua crescente, que pede permissão ao pé de acerola para pegar suas frutas e conversa com as plantas que você tem na cozinha, pedindo conselhos e contando suas histórias. Percebi que você estuda durante toda a tarde sem pausa, até as cinco e vinte. Às cinco e vinte você se levanta e vai para a sala, olhar o sol entrando pela porta e fazendo uma sombra amarelada na parede. Dá aquela sensação de paz na alma, sabe? Te ver sentada tomando café e encarando a parede, me acalma também. Percebi que você prefere vermelho escuro – cor de amor maduro – e não escuta música nacional. Canta as músicas em inglês baixinho, como se fossem preces para si mesmo. Dança de olhos fechados, e toma seu corpo como uma peça rara e única. Você se arrepia quando toco seu ombro e suspiro no seu ouvido. Escuta Beatles quando quer sonhar.

Você cruza as pernas sempre a direita por cima da esquerda, joga o cabelo para trás e arqueia a sobrancelha quando falam uma coisa absurda. Você tem filtro só quando quer ter, o que no geral significa que você vai rasgar as verdades na cara alheia se precisar. Você tem aprendido a escutar os outros, e reparado mais. Você tem estado introspectiva nos últimos meses, o que me assusta, mas também me encanta. Sua mente é uma arena de gladiadores onde eu sinto que irei perder, mas não resisto em entrar. Você prefere assistir filmes de terror a tarde, e de romance a noite. Toma café como se fosse água, dispensa o chá de saquinho e demora o tempo necessário para abrir um abacate com um corte exato. Se irrita com atrasos e relaxa com silêncios. A calma só passa pela porta quando você mata sua fome.

Você tem preferido sair sem maquiagem há alguns meses. Pisa de pé no chão, dança para lua em dia de céu estrelado, e abraça as pessoas durante vinte segundos – e sempre com muita força. Você sorri e ilumina a cidade. Ainda odeia falar ao telefone, demora para responder as mensagens e escreve textos com uma simplicidade que irritaria Machado de Assis. Vai as lágrimas de uma forma muito fácil, mas grita com uma facilidade maior ainda. Você desabrocha feito as flores que tanto ama, sempre com uma faceta nova, mas segue sendo a mesma mulher – mesmo em fases diferentes. Não cansa de rabiscar tatuagens em sua pele clara e macia. Solta pequenos gemidos enquanto lê um livro bom. Você não percebe, é claro, mas esbanja sensualidade com o cabelo caído na cara e a testa franzida enquanto tenta entender um cálculo ou uma teoria.

Você continua sendo aquela mulher brava que eu conheci na fila da padaria, irritada porque a atendente tratou mal um senhor que estava se atrapalhando com as notas para pagar. Você ainda toma as dores alheia, levanta a voz quando se faz preciso e come pão de cebola todos os dias de manhã. Você ainda é a mesma mulher brava que eu conheci na fila da padaria, eu apenas sei mais dos detalhes agora. Detalhes tão seus e sobre você, que me fazem pensar que eu poderia arriscar escrever um livro sobre isso.

E até poderia, assumo.

Você sorriria para o papel, surpresa pela minha ousadia e me olharia com aquela cara de quem sabe que é amada feito Helena de Tróia. Aquela cara de paz e tranquilidade que só você faz. A cara de quem sabe que também moveria mil navios e dez mil homens. Você nunca pediu por nada disso, mas esse é o preço de se conviver com você. Não que você ceda o lugar vago ao teu lado, a gente que insiste em sentar mesmo que você diga que não. Sempre dizendo sim quando quer dizer sim, e não quando acha que um talvez não basta. Você não mede palavras, somente traça limites. Um detalhe que faz de você uma mulher intensa, mas precavida. Não faz sentido, mas ainda assim é um detalhe que é só teu.

Mariana Ravelli
Enviado por Mariana Ravelli em 10/05/2017
Código do texto: T5995442
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