Razbliuto

Ele era muito esperto. Não dizia nada, mas eu sabia. Eu ficava observando enquanto falava sem parar, parecia que eu não estava prestando atenção em mais nada, mas eu estava reparando em todos os detalhes pequenos, pequenos como devem ser os detalhes. O jeito de coçar o nariz, preocupado com alguma coisa distante, tudo sempre distante. Às vezes, quando eu lembro, parece que foi coisa de outra vida, que eu era outra pessoa; engraçado é que a música que mais me lembra você é de uma banda que você detestava. Não poderia ser diferente, afinal a nossa história foi marcada por erros. Erros de perspectiva – que são os piores erros, achar que errou sem ter errado de fato. Até porque não existia o "de fato", existia a minha cabeça, a sua cabeça, os nossos pensamentos desencontrados e as inseguranças todas. Nós tentando ser humanos e descobrindo um gosto de beijo cada dia diferente do anterior. Os russos tem aquela palavra, "razbliuto", sem tradução para o português, que designa o sentimento de vazio entre duas pessoas que um dia se amaram. Uma falta de tradução que nos designa. Pode ser, de novo, coisa da minha cabeça doente. Nós estávamos doentes e vivíamos disso, de sofrer pelo não-saber. Eu fui aprender sobre você em outras pessoas, que vieram depois. Fui colecionando outras histórias para completar as lacunas da nossa. Eu via você nas pessoas e sacava: "então era isso". Misturei nossa história com outras, não tenho certeza se aquele dia no parque foi com você mesmo ou com algum outro. Mas você não deixava de estar ali, de qualquer jeito. Fiz as pazes com tudo. Sobrou um dossiê de poemas que contam a história toda, se colocar em ordem dá pra reproduzir dia após dia, porque eu escrevia tudo. Era como um jeito de esvaziar aquele monte de coisas que eu não podia dizer. Embora eu falasse muito, tinha outro muito que não era dito. Justamente o que era mais importante! Justo eu, que passava essa impressão de falar tudo e mais um pouco. Que não dava trégua. Não surpreende que eu esteja aqui hoje escrevendo sobre esse período jurássico, porque às vezes as coisas voltam. Às vezes sonho com você, mas não consigo ver seu rosto. Deve ser meu inconsciente tentando me proteger. A única que coisa que lembro com clareza é do cheiro. O ser humano é um animal sensorial, afinal de contas. Um cheiro de madeira, carvalho, cedro, jacarandá. Um cheiro forte, firme. Um cheiro único. Cheiro d'Ele. Eu gostava muito. Um cheiro de verão e suor se misturava, cheiro do azulejo frio e do apartamento muito antigo onde tudo aconteceu. Que coisa! Quem passa pela calçada e olha para a janela do teu velho quarto nem imagina o tanto de coisa, de riso, de lágrima, de qualquer coisa que não existe mais. Estamos de aniversário de novo, do dia em que fomos cada um para um lado, sem olhar pra trás, mesmo eu querendo saber se você poderia estar olhando, talvez. Só segui pela rua vazia, entrei no ônibus e desejei "bom dia", pensando em sublimar pra outro plano, outro planeta. Passei pela cidade como se já não estivesse. Os anos passaram por mim como se fossem instantes. Eu não percebi o tempo. E aqui, no mesmo lugar, que parece já tão longe, sigo. Deixando flores nas ruínas da memória de um amor triste.

pedro toscan
Enviado por pedro toscan em 24/02/2017
Reeditado em 05/08/2019
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