Caminho de Santiago - Cap. 08/32 - De Pamplona a Puente la Reina

Jerry afastou-se a passos largos. Na véspera tinha me contado que pretendia encerrar seu Caminho em Santo Domingo de la Calzada, a 150 km de onde estávamos, pois necessitava voltar à Irlanda. Mais tarde viria para retomá-lo a partir daquela cidade.

Saí de Pamplona com a firme convicção de que ainda retornaria. Afastei-me lentamente de seu Centro Histórico e comecei a seguir as setas indicativas do Caminho. O tráfego de veículos começava a aumentar à medida que eu caminhava.

Passei ao lado da "Universidad de Navarra", situada num magnífico complexo estudantil de gigantescas proporções. Lindo lugar.

O sol começava a aparecer. Ainda era muito cedo, mas resolvi tirar meu casaco assim mesmo. Prefiro o frio ao calor. Detesto transpirar, ainda mais com uma mochila de 9 kg nas costas.

Não obstante a "faxina" realizada no dia anterior, ela ainda estava pesada.

Passei por Cizur Menor e em seguida atravessei a estrada enveredando por uma trilha de terra que cortava lindos campos floridos. O perfume exalado era inebriante. O vento começou a orquestrar uma sinfonia magistral, onde as flores se exibiam em graciosos movimentos. Avistei um banco sob uma árvore e acelerei o ritmo. Queria sentar-me ali na primeira fila e contemplar aquele espetáculo maravilhoso que estava acontecendo bem diante dos meus olhos. Algumas pétalas se desprendiam pela força do vento e ficavam sob o comando de sua experiente batuta, executando passos ornamentais como exímias bailarinas.

Alguém muito maior que o vento, e que está no comando de todas as coisas neste mundo, certamente tinha organizado aquele evento.

E justamente eu, mero pecador e mortal, havia ganhado dos céus aquele inesperado presente.

Absorto e feliz, fui sacudido inesperadamente pela realidade.

Um grupo de ciclistas brasileiros, vendo a bandeira do Brasil "espetada" na minha mochila, disparou em alto e bom som: "Vamos lá cara - nada de moleza" e distanciaram-se em ruidosas gargalhadas. Eles não haviam recebido ingressos para aquela sinfonia. Que pena.......

Prossegui para Guenduláin e depois para Zariquiequi, onde parei para descansar e encher meu cantil. Precisava me preparar para a longa subida que vinha pela frente e que me conduziria ao "Alto del Perdón" com seus 770 m de altura. Antes de iniciar a marcha resolvi tomar um canecão de cerveja saída daquelas lindas chopeiras de cobre, quase sempre jorrando do bico de uma águia. Recebi um pratinho com "pinchos" ou "tapas" - São "tira-gostos" que normalmente acompanham de forma gratuita as bebidas na Espanha.

"Pinchos", vem de "pinchar" que em espanhol significa ESPETAR (os salgadinhos). Já "tapas," vem de TAPAR (outrora tapava-se o copo da bebida com o pratinho do tira-gosto para evitar que alguma mosca caísse lá dentro).

O sol esquentava tudo do lado de fora do bar. Nem parecia primavera. Resolvi pedir mais uma caneca de cerveja. Lá veio ela com um novo pratinho de azeitonas, pepininhos e cebolinhas. Saboreei vagarosamente a bebida e como o bar tinha WI-FI pedi o login e "la clave" (senha) ao proprietário, pois queria aproveitar para mandar fotos, vídeos e noticias minhas para casa. Isto feito, pensei em sorver mais um canecão daquela deliciosa bebida, mas desisti por perceber que já estava ficando muito "alegre".

A bebida funcionou como combustível em minhas veias fazendo-me caminhar a passos decididos, aumentando a minha resistência. Por isso, quase passei direto pela "Fuente de la Reniega", onde segundo reza a lenda, o demônio apareceu a um peregrino que por ali passava sob um sol escaldante, quase morto de sede. Disse que lhe daria de beber se renunciasse a Cristo e a Santiago de Compostela.

- Prefiro então a morte, ter-lhe-ia respondido o peregrino.

Imediatamente um raio de luz perfurou a rocha fazendo jorrar um esguicho de água cristalina onde o caminhante saciou sua sede.

Pensando sobre esse fato e açoitado por um forte vento que dificultava minha subida, cheguei eufórico ao cume da "Sierra del Perdón" ou ao "Alto del Perdón" propriamente dito.

Eu me sentia como um soldado romano. As figuras esculpidas pareciam dar-me as boas vindas. Era o Monumento ao Peregrino.

Uma inscrição feita a fogo sobre o ferro dizia: "Donde se cruza el camino del viento con el de las estrellas".

A referência lembrava que o Caminho de Santiago, todo ele situado sob a Via Láctea, ali dava as mãos a um dos poderosos elementos da natureza.

O vento assobiava incessantemente obrigando-me a fechar o zíper do casaco e a segurar bem minha câmera. Não à toa naquela região no cume das elevações próximas, uma considerável quantidade de geradores eólicos havia sido instalada. Perfilados, lembravam os moinhos de vento contra os quais Dom Quixote se insurgiu. Tentei imaginar por onde andariam Marta e Paulo que desapareceram engolidos pela neblina nos Pirineus bem diante dos meus olhos.

Certamente já haviam passado por ali, pois quem consegue vencer os Pirineus não encontrará pela frente outro desafio de igual magnitude.

Após um rápido descanso, preparei-me para a formidável descida que vinha logo à frente. Eu teria que caminhar agora até Puente la Reina distante 11 km dali e baixar de 770 para 345 m de altitude .

Pra piorar, o declive além de pronunciado tinha inúmeras pedras soltas. Bastaria uma cochilada pra pôr tudo a perder.

Mais adiante encontrei as três baianas. Sarah havia torcido um pé e queria recuperar-se um pouco antes de continuar. Lamentei o ocorrido e ofereci ajuda.

Neise estava mais cordial comigo. Fizemos uma foto juntos e parti em seguida passando por Uterga.

Pouco antes da entrada desse "pueblo" de 170 habitantes, existe uma linda estátua conhecida como - A Virgen de Uterga. Contam que um peregrino sentiu-se mal do coração quando por ali passava e caiu fragorosamente ao chão. Socorrido pela ambulância, foi mais tarde aconselhado pelo médico em Pamplona a interromper imediatamente sua caminhada e voltar pra casa.

Este então rezou à virgem e prometeu que se conseguisse concluir o Caminho retornaria mais tarde para mandar fazer uma estátua em sua honra para colocá-la exatamente no local onde havia tombado.

Na manhã seguinte acordou disposto e continuou sua marcha sob os olhares atônitos da equipe médica. Não preciso contar o final, pois a estátua está lá.

Após Uterga, cruzei Muruzábal e parei em Óbanos para mais um canecão de cerveja, pois ninguém é de ferro como as figuras do "Alto del Perdón". Após caminhar mais 2,5 km entrei empoeirado, suado e exausto em Puente la Reina, onde para minha grande surpresa encontrei Jerry que apontando para um bar foi logo dizendo: "vai pro albergue deixar tuas coisas e venhas aqui pra gente tomar aquela cerveja que não tomamos em Pamplona". Concordei e fui andando. Ele não satisfeito disparou: "sem desculpas dessa vez, hein?".

Puente la Reina (Gares, em Basco) é uma daquelas lindas cidades que nasceram por causa do Caminho de Santiago e que dele muito dependem até hoje. Ali se unem as trilhas que começam em Saint-Jean Pied-de-Port (Caminho Francês) e em Somport (Caminho Aragonês). Remonta à Idade Média e tem entre seus destaques a Igreja do Crucifixo ligada à Ordem dos Templários, em cujo interior se encontra um lindo trabalho em madeira de um Cristo Crucificado com os braços em "Y", (dizem ser a única cruz existente no mundo nesse formato). Outra joia singular é a ponte sobre o rio Arga, em estilo românico, mandada construir pela Rainha da Navarra, Doña Mayor no século XI, para facilitar o deslocamento dos peregrinos que antes tinham que fazer a travessia de barco.

Fiquei no Albergue de Peregrinos dos Padres Reparadores, logo na entrada da cidade. Marquei minha cama colocando sobre ela meu saco de dormir, tomei meu banho, fiz a barba, lavei e estendi minha roupa no varal do pátio e fui imediatamente encontrar Jerry, o padre irlandês que havia conhecido em Pamplona. Ele devia estar impaciente.

Mas para minha surpresa, ele não estava lá. Resolvi sentar-me e pedir um canecão de cerveja que veio acompanhado do icônico pratinho de "tapas". Depois de uns 20 minutos chegou Jerry com um enorme Guia do Caminho, quase um catálogo telefônico.

- É pra você, disse-me.

Agradeci e falei que não poderia aceitar. Ele insistiu muito dizendo que era um presente especial. Acabei concordando, mas estava convicto que por trás da gentileza ele também estava querendo livrar-se do peso que aquilo representava.

Ficamos ali batendo papo enquanto as canecas de cerveja se sucediam num vaivém preocupante. Jerry é o que nós conhecemos como "bom de copo" e eu me esforçava muito para acompanhá-lo.

Contou-me sobre sua vida na Irlanda e a descoberta da sua vocação religiosa.

Falei-lhe também de minha família e de mim, da vida no Rio de Janeiro, dos problemas do nosso país, etc., etc., mas que precisava voltar ao albergue, pois este fechava pontualmente às 22H00. Ele havia se hospedado num hostal e não tinha esse problema.

Finalmente ele concordou e tirou do bolso sua câmera fotográfica, pedindo para o dono do bar tirar uma foto nossa.

Observei que era idêntica a uma que eu achara na praia numa das minhas caminhadas matinais e que conseguira devolvê-la à legítima dona semanas depois, através de uma pesquisa minuciosa nas fotos que estavam nela. Mais um canecão de chope e contei a Jerry esse acontecimento. Ele se levantou e me deu um forte abraço aprovando emocionado minha atitude: "You did right my friend Sergio - You're a good man".

Despedimo-nos com um longo abraço e voltei ao albergue meio trôpego (não era pra menos) e já no limite do horário de fechamento de suas portas, admirando as ruas medievais daquela linda cidade que agora se iluminava de uma luz dourada com o conluio e a magia de seus graciosos lampiões.

Eu era feliz e sabia......

Sergio Righy
Enviado por Sergio Righy em 08/08/2017
Reeditado em 26/09/2017
Código do texto: T6077359
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