Caminho de Santiago - Cap. 05/32 - Entrando em Zubiri

Assim que entrei em Zubiri começaram meus problemas.

Eu fazia o Caminho pausadamente, às vezes abraçando uma árvore ou a coluna secular de uma igreja. Gostava de fotografar de todos os ângulos do Caminho as belíssimas paisagens que se sucediam quase que indefinidamente. Por isso era frequentemente o último a chegar ao final de cada etapa. Eu tinha ido ali para aproveitar todos os momentos e enriquecer minha bagagem cultural. Tinha o tempo necessário para desfrutar do Caminho e era isso o que iria fazer.

Mas tudo tem um preço. O albergue municipal de Zubiri já estava lotado quando cheguei, assim como os hotéis. Apesar de todo o cansaço, pensei em caminhar mais 7 km até Larrasoaña, o próximo ponto alternativo.

De repente vi do outro lado da rua duas moças que me acenavam alvoroçadas. Eram Sarah e Thaís, duas baianas que eu havia conhecido no restaurante em Roncesvalles, pois o "cura" do albergue nos havia encaminhado à mesma mesa para o jantar.

Disseram-me não haver mais hospedagem disponível em Zubiri, mas que elas tinham encontrado um quarto com 4 camas numa casa particular e se eu não queria vir junto e compartilhar. Elas tinham uma outra irmã que morava na Espanha e que já havia arranjado tudo pelo celular, a quem então me apresentaram naquele momento.

Chamava-se Neise. Ela era mais velha que as outras duas e ao contrário destas, de muito poucas palavras.

Não demorou em deixar as coisas claras dizendo pras irmãs na minha frente: olhem aqui - vocês convidaram esse cara apenas porque o viram em Roncesvalles uma única vez? Assumam as consequências do que estão fazendo e não venham reclamar comigo depois.

Não pude deixar de rir diante de tanta espontaneidade e franqueza. Neise parecia haver incorporado o velho modo de ser europeu. Morei na Itália por dois anos seguidos (Pisa) e já estava acostumado. Os europeus não douram palavras, mas em contrapartida são muito leais e amigos de verdade.

Falei que não queria incomodar e que seguiria adiante. Sarah e Thais se opuseram imediatamente: oxente Sergio, imagina. Nada disso. Você vem com a gente sim.

Mas ainda não jantei, retruquei.

Vai lá que a gente te espera. O cara da casa só vai chegar aqui em meia hora.

Jantei rapidamente no restaurante logo em frente, mas não pude tomar o meu vinho pacientemente como gosto de fazer. Entretanto, as circunstâncias assim o exigiam. Fazer o quê?

O dono da casa chegou em 15 minutos e quando saí do restaurante notei que Neise estava passando uma esculhambação nas irmãs por estarem todos ali me aguardando com as respectivas mochilas já no porta-malas do carro. Pensei em mandar tudo às favas e prosseguir para Larrasoaña, ou até mesmo a passar a noite no meu saco de dormir em algum canto por ali sob uma marquise, mas por outro lado não poderia desdenhar da bondade de Sarah e Thaís. Além disso, na Espanha não há marquises.

Neise foi na frente com o espanhol e eu atrás imprensado entre as duas irmãs.

Já na casa, deixei que elas utilizassem o confortável banheiro da suíte em que estávamos e somente depois tomei meu banho escaldante, mergulhando imediatamente em seguida sob as grossas cobertas.

O problema é que sofro ciclicamente de pesadelos, chegando a gritar de madrugada em algumas ocasiões. Minha mulher já se acostumou. Eu havia me esquecido disso. Paciência - não tinha mais volta. Só me restava rezar para que nada acontecesse.

Despedi-me das três com um boa noite e entreguei meu espírito aos anjos. Neise não retribuiu a minha gentileza.

Lá pelas 3 horas da manhã não deu outra: sonhei que estava despencando de um precipício e dei um potente berro que fez estremecer a porta do quarto e balançar os quadros da parede.

- Puta que pariu, disparou Neise - que merda é essa??

Pedi um milhão de desculpas pelo ocorrido, mas o estrago já estava feito. Neise estava com a cachorra e dirigindo-se às irmãs vociferou: vocês foram as únicas culpadas dessa encrenca toda - se ele der outro grito como esse aqui dentro os três vão ter que pegar o caminho mais cedo pra Pamplona. Tô avisando!!!

Felizmente nada mais aconteceu, mas com medo de que pudesse vir a ocorrer algo novamente, não me atrevi a dormir.

De manhã cedo na mesa do café acabamos rindo um bocado sobre o ocorrido, inclusive Neise que parecia mais cordial comigo.

Contou-me que já estava na Espanha trabalhando há anos e não cogitava retornar tão cedo.

Deixei que elas partissem na minha frente para Pamplona, pois eu queria mesmo era caminhar sozinho durante os 23 km necessários para chegar a essa linda e milenar capital da Comunidade Autônoma da Navarra.

Sergio Righy
Enviado por Sergio Righy em 06/08/2017
Reeditado em 26/09/2017
Código do texto: T6075493
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