Minha Sombra

Eu já não conseguia me encontrar. Estava perdida dentro de mim mesma. A solidão que antes me atormentava as madrugadas não me causava mais medo e nem ansiedade. A sensação era de encontro. Precisava resgatar as outras personas que havia perdido. A cada insônia, um novo encontro e quase como uma dança eu trocava a cada noite de par. Era o encontro com todo o meu eu que havia trancado no baú da minha insegurança.

Tudo começou quando a cigana leu o meu destino, o caixão, o cigano e os ratos revelou uma morte anunciada. Ri da minha própria falta de sorte! Uma semana depois, eu estava no meu próprio funeral. Desde então, a falta de sentido no fazer das coisas na hora do dia me incomodava. Perdi os ritos, esqueci-me dos sonhos, tudo que eu havia conquistado era um peso, uma amarra, eu me sentia presa as minhas próprias escolhas. Não queria perder o controle da minha própria vida, portanto me encaixei a viver no meu próprio delírio. Encaixei-me em uma fôrma que não me cabia, como uma contorcionista, me moldei ao que não foi feito para mim. Quando me dei conta, as dores nas costas tornaram-se insuportáveis.

Vi-me côncava como quem deseja o retorno a vida uterina, precisava me encolher, sentir-me nutrida pelo pouco espaço que me resta. Já havia dado demais a ponto de sentir-me vazia, oca, estava a ponto de quebrar, embora soubesse que era preciso remendar as rachaduras com barro novo, eu não podia parar! Não me autorizei a adoecer, o outro afinal, precisava de mim, de modo que a minha existência estava atrelada ao ser do outro.

Precisava desesperadamente ter acesso a minha intimidade. Eu e a intimidade estávamos tão distantes que fiquei sem jeito de me aproximar dela. Fui aos poucos então. Comecei revisitando alguns versos escritos no passado, fui me chegando devagar ao que era eu, escutei as musicas que antes me faziam chorar, tentei ver os filmes que me tocava. Mas, não é que eu não consegui sentir mais da mesma forma? O meu eu, já não era mais eu. Estava diferente, senti uma estranheza ao de mansinho me aproximar dela. Como mudei tanto sem se quer notar uma diferença? O tempo havia lançado o seu ultimato, eu não conseguia mais continuar a seguir aquele caminho. Mas como eu poderia arriscar tanto? Eu não tinha força para continuar, mas também fui tomada por um pavor aterrorizante que a mudança me trouxe. Eu estava torta e endurecida na fôrma que não foi feita para mim, meus ossos atrofiaram-se no molde. A minha forma estava completamente alterada.

O ser eu mesma já não existia, o meu ser de ontem havia mudado de tal modo que o ser de agora se tornou um estranho. Percebi que as cordas que me amarravam as minhas escolhas estavam reprimindo a minha alma. Ela estava tão inchada, inflamada, infeccionada pela falta de liberdade que eu só poderia respirar se cortasse as amarras. Mas, o medo de liberta-la era tão grande, tinha medo que a sua grandeza me tomasse de tal forma que me tornaria apenas sentimento e intuição. Eu sou muita alma. Mas, preciso da razão, pois não quero perde-la e nem mesmo da sensação de estar no controle dos meus pensamentos. Sabia que ao libertar a minha alma, a minha vida voltaria a ter sentido, mas perderia o controle das coisas. Não posso ser apenas alma, preciso de molde. O desejo de viver a serviço da alma era fulminante! Mas como poderia liberta-la? A minha alma estava enfurecida! Ao solta-la de certo ela sairia como lobo faminto atrás de uma caça. Ninguém poderia segura-la, muito menos controla-la. Há deixei tanto tempo confinada no baú da minha insegurança que agora só com muito esforço e paciência poderia doma-la, muito embora reconheça que alma não se domina. Teria que aceita-la e convida-la para um jantar a dois. Sabia que esse encontro seria um convite ao inferno. Mas, depois de me preparar com um banho das Deusas, me armei com a força de Artêmis e me vesti com a armadura de Jorge. Então, como Perséfone me vi sequestrada pelo Deus do submundo. Sim!Eu estava no inferno e gostei! No inicio, tive medo, mas me apaixonei pela minha própria dor e gozei ao toque da melancolia. Não sabia se a realidade da qual eu vivia era o meu próprio delírio. Se o que via, ou acreditava que via, era uma alucinação. Um sintoma da minha vertigem psicótica. Não penso em morrer, jamais pensei. Nunca me senti tão viva! Nunca me senti tão verdadeira! O sentido das coisas voltou a fazer sentido. Confrontei a minha sombra e nesse combate nos tornamos grandes amigas. Nunca fui boa, nunca tive pena, sempre amei a rejeição, o inferno sempre me atraiu. Meu olhar sempre foi contemplativo para o negado, o desprezado! Quero o que ninguém quer, desejo o que jogam fora e transformo lixo em obra de arte. Olho a dor com prazer, com gosto, com desejo. A maldade não me ameaça. Ando de mãos dadas com ela, danço ciranda com ela, ela está em mim e eu estou nela.