Catullo da Paixão Cearense (1863/66 - 1946)

Catullo da Paixão Cearense nasceu em São Luís do Maranhão, entre 1863 e 1866( não se sabe ao certo) em um sobrado colonial revestido de autênticos azulejos portugueses . Era filho do ourives José Amâncio da Paixão Cearense[1] , dono da mais importante oficina de ourivesaria e relojoaria da cidade[2], e de Maria Celestina Braga da Paixão que tinham outros três filhos. Ainda na infância em São Luís já era versejava a desafio e conhecera seu futuro companheiro de sucesso - o violão . Aos dez anos mudou-se para o Ceará com seus pais , onde "convivera com os rústicos, escutara os violeiros, encantara-se com a natureza silvestre e trouxera o sertanejo o ambiente sertanejo na alma (Maul, 1971). Lá Catullo possivelmente tivera contato com o violão ,cantando e acompanhando-se dele mas é na capital imperial, quando junto de sua família chega aos 17 anos de idade, que ele efetivamente o explora e como veremos o legitimará junto a sua voz e poesia como "poeta nacional". [3]

Sobre seu contato com o violão, sabe-se que não foi tido de bom grado pela sua família. Logo quando chegou no Rio , Catullo começou, com regularidade, a frequentar as noites cariocas, estabelecendo contato com os grupos modinheiros e chorões que logo logo o levaria a boemia. Conta Maul (1971) que

" os anos foram passando rápido e Catullo não demorou muito em descobrir os seresteiros urbanos, os boêmios que, de violão em punho, percorriam as ruas sombrias nos arrabaldes e altas horas da noite, chamavam às janelas as moças urbanas."

Sabe-se que ainda em fins do século XIX e até meados do século XX, o violão era estereotipado, era um instrumento malquisto pela sociedade, considerado instrumento de vagabundos afeitos a vadiagem e alheios ao trabalho. Somente com o decorrer da primeira metade do século XX com a ampliação de escolas músicas pelo país e a valorização de músicos instrumentistas voltados para o instrumento como Villa-Lobos e o próprio Catullo ( mais tarde a bossa nova também colaboraria para isso) foi que o violão começo a ser visto de outra forma menos pejorativa, apesar de ainda hoje observarmos resquícios dessa concepção. Sobre esta visão diz CatulAos 19 anos, interrompi os estudos para abraçar-me fervorosamente ao violão. Naquelle tempo esse instrumento era repelido dos lares mais modestos [Grifo meu)]. Quem o tocasse era um desacreditado. Foi nesse tempo que entrei a escrever e a cantar modinhas (...).[4]

Esse ponto de vista , em geral, predominante rendeu-lhe uma surra marcante, ficando destacada em suas memórias. O gosto de Catullo pelo instrumento desagradava enormemente seu pai . Conta-se que seu pai, ao vê-lo chegar em casa depois de uma noitada "farreando" com os amigos, chegou a quebra-lhe o violão na cabeça. Assim narra ele

Foi a primeira sova que apanhei. Hoje, porém, eu compreendo meu pai. Naquele tempo, o violão era um instrumento maldito. A sova foi tamanha que me escondi durante semanas em Copacabana, em casa de um negro velho de nome Oliveira, soldado reformado da guerra do Paraguai. Naquele tempo, Copacabana era um areal sem fim. E dizer alguém, como eu digo, escondi-me em Copacabana, era o mesmo que falar: ninguém me encontraria. Meu pai queria meter-me na Marinha para curar-me do violão. Ameaçou muitas e muitas vezes (...)[5]

Sobre este paradigma recaído sobre o instrumento não clássico, é importante ressaltar as discussões em torno do violão ser estereotipado , depende da condição e do prestígio social de quem usa. Sabe-se que Catullo era afeito a leitura de clássicos, tanto nacional quanto estrangeiro, Maul destaca que o poeta lia desde Sotero dos Reis, João Lisboa, Arthur Azevedo, Humberto de Campos, Gonçalves Dias ( o qual ocupara a mesma cadeira na academia maranhense de letras e que Mário Meireles diria ser dele Catullo discípulo) à autores estrangeiros como Lamartine, Lecomte de Lisle, Herédia, Victor Hugo, Espronceda, Campoamor, Zorrila , Salvador Rueda ( do qual foi tradutor meticuloso) . Por conseguinte , evidencia que o poeta sabia francês e castelhano, a ponto de o próprio Rueda se impressionar com a fidelidade da tradução feita por Catullo de sua obras "Poesias Completas". Além disso Catullo era um exímio intermediador da linguajem popular para a considerada culta, sua fama inicial como compilador de modinhas(a qual ele disse que civilizou) adequando-as ao cânones literários da época, rendia-lhe um status que mesmo o violão sendo malquisto na sociedade, permitia-lhe adentrar-lhe com ele nos bailes e salões cariocas .

O ápice de sucesso ainda enquanto músico de modinhas foi quando da composição e gravação de Luar do Sertão em 1914 ao adentrar efetivamente no tema do sertão o qual se tornou febre entre os letrados brasileiros na virada do século XIX para o XX . Recebido com grande entusiasmo pela crítica e tendo grande recepção do público, Catullo foi se instituindo como expressão da musicalidade nacional, chegando-se a apresentar no Calácio do Catete - sede do governo federal - a convite do então presidente Hermes da Fonse e suas mulher, Nair de Teffé, para uma platéia de políticos e intelectuais . (Moraes, 2014) . Tendo já grande prestígio, Catullo começa a dialogar efetivamente com o mundo literário quando da publicação de " Meu sertão" , a partir de então, foram uma série de livros entre eles "Sertão em Flor" (1919) "Alma do Sertão" (1929) " Um boêmio no céu" (1941) que o consagraria como legítimo "Poeta do Sertão" e "Poeta Nacional". Assim o Catullo que primava pelo "purismo do vernáculo" , que queria "civilizar a modinha" transformou-se em um poeta do sertão que primava pelo linguajar "bárbaro " do homem sertanejo entendido por ele como a verdadeira fala do brasileiro , como visto neste trecho de "Meu Sertão" :

Quizera ser ignorante

como um cantor sertanejo

era esse o meu desejo

não ter nenhuma instrucção

Mas ter o dom do improviso para dizer

, de momento, as dores do pensamento

e as maguas do coração (Cearense, 1918, p.26)

Mas na frente continuava :

Nada achareis neste livro,

Narcisos afrancezados

Vós estaes acostumados

Com essas lyras de alem mar

Este instrumento que eu trago aqui,

por cima do peito,

é tão bárbaro e imperfeito,

que só eu posso escutar

(idem, p. 29)

Morreu em 10 de maio de 1946 vítima de uma parada cardíaca, "deixando preparado uma última obra : uma coletânea de letras de modinhas que seria publicada ainda em 1946, após sua morte, com o título de "Modinhas" .

Para findar, deixo aqui um trecho de sua música mais famosa "Luar do Sertão" , composta em 1914 por Catullo da Paixão Cearense. Após grande polêmica na época, hoje se credita a melodia a João Pernambuco (1883-1947) e à letra a Catullo.

"Não há ó gente ó não

Luar como esse do sertão"

NOTAS:

[1]Em uma biografia sobre Catullo feita pelo também poeta Carlos Maul, o biógrafo salienta : "No começo desta história saiu José Amâncio da Paixão Cearense, pai de Catullo, como natural do Maranhão, quando ao certo ele era do Ceará. Mudado para o Ceará e aí instalado com sua oficina de ourives, depressa se popularizou, e todos o chamavam de ‘o cearense’, devido à sua procedência. De tanto ouvir tratarem-no assim, acabou por fazer um registro de seu nome com esse acréscimo. E ao nascerem-lhe os filhos batizou-os a todos com o sobrenome de ‘Cearense’”. Cf: MAUL, Carlos. Catullo. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1971. P. 14n. 2ª edição.

[2] Posteriormente, começaria a empobrecer por conta de envolvimento em um crime para ajudar um amigo, como o próprio Catullo diz "[...] Meu pai, rico comerciante, acabou pobre, por se ter devotado à defesa dum compadre implicado num crime" (MEIRELES, 1963.p.87) . Sobre esse crime ver MORAES, Evaristo de. O caso Pontes Visgueiro: um erro judiciário -2 ed.- São Paulo: Siciliano, 2002 e ELUF,LuizaNagibe. A paixão no banco dos réus. Caso passionais célebres: de Pontes Visgueiros a Pimenta Neves. – 3. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2007.

[3] Possivelmente pois Há controvérsias. As leituras da obra de Maul e de Meireles MEIRELES, MÁRIO M. Catulo, seresteiro e poeta. São Luís : Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial, 1963.) indicam que Catullo ainda no Ceará já tocava o instrumento , cantando modinhas conhecidas e algumas de seu improviso. Porém na obra já referida de Kleiton de Souza Moraes o historiador expõe que foi no Rio de Janeiro que o poeta aprendera a tocar o instrumento.

[4] CEARENSE, Catullo da Paixão. Notas. In: CEARENSE, Catullo da Paixão. Matta illuminada. Rio de Janeiro: Castilho, 1924. P. 235.

[5] Apud : MORAES. Op. Cit. P.22

REFERÊNCIAS :

MORAES,Kleiton de Souza. Catullo da Paixão Cearense ou Como se constrói um autor (1894-1946 ) . 2014. Tese (Doutorado em História ) - Programa de Pós Graduação em História Social , Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

MAUL, Carlos. Catullo: sua vida, sua obra, seu romance. Rio de Janeiro: Editora e Imprensa de Jornais e Revistas S.A. 1971, p. 67

MEIRELES, Mário M. Catulo, seresteiro e poeta. São Luís : Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial, 1963.

MORAES,Kleiton de Souza. De bardo trovador a poeta do sertão: a literatura de Catullo da Paixão Cearense (1908-1930). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011

Pedro Bittencourt
Enviado por Pedro Bittencourt em 05/06/2017
Reeditado em 05/06/2017
Código do texto: T6019310
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