A vida de Antonio Vitorino dos Santos: um cabra da peste no sertão da Paraíba

A vida de Antonio Vitorino dos Santos (11.01.1911-29.06.1988), agricultor, natural de Flores-PE, distante 18 km de Princesa Isabel-PB, é um grande enigma. Nunca falava sobre o seu passado, sobre os seus antepassados. Não é fácil imaginar como sobrevivera, com aquela cor, àqueles tempos árduos nos sertões pernambucanos. Naqueles tempos, vivia-se a nova república, denominada de velha. Naqueles idos de Brasil pós-império, as exclusões social e racial imperavam, mesmo Gilberto Freyre afirmando o contrário.

É possível que tenha ido parar em São Gonçalo-PB como outros milhares de sertanejos, tangidos pelas boas novas das obras de açudagem. Poderia ter feito o penoso percurso Pernambuco-Paraíba em um confortável pau-de-arara das antigas, alimentando-se apenas de poeira e sol na lancinante travessia ou, talvez, tenha vencido o trajeto a pé, pelos descaminhos das florestas da caatinga.

Segundo Nóbrega (2004), naqueles tempos “Era então o sertão riscado de caminhos arremendados, estradas tão imperfeitas que as primeiras chuvas apagavam.”

Seu Antonio era homem de serviços braçais. Não tinha medo de serviço pesado e nunca fraquejou diante de uma seca hedionda. Já aos quatro anos de idade seria apresentado à seca - logo aquela delatada por Raquel de Queiroz. Ainda não sabia o que era, nem do que se tratava, mas, sem demora, percebeu a sua perversidade e maléficas intenções.

A aparência franzina e a estatura diminuta maquiavam o seu vigor físico, mas delatavam o déficit calórico diário entre o que consumia e o que gastava nas atividades laborais, observado de perto pelo astro-rei do sertão. Na década de 1960, possuía um pequeno roçado nas proximidades da HPS, onde plantava batata doce, macaxeira, feijão, milho, dentre outras culturas, que ajudavam no sustento da família.

O que lhe sobrava em disposição física, faltava-lhe em sanidade mental. Não possuía a coleção completa das células cerebrais. Faltavam-lhes algumas. Não se sabe se era defeito de fábrica ou desgaste do modo de vida espinhoso. A ausência da dentição contribuía para o emurchecer e esqualidez da face. Era um homem açoitado pelas secas e pela vida. O sertão era bom, mas cobrava o seu preço. E não era barato...

Respondia pela alcunha de “valete de paus”. Respondia, entre aspas, com pedras e paus. Não gostava, nem de longe, do apelido. Quem assim o chamasse, era carta fora do seu baralho. Não abrandava o seu ímpeto nem mesmo quando era molestado pelas crianças, que não perdiam uma boa oportunidade para chacoteá-lo.

Quase nada se sabe sobre as origens de sua família pernambucana. Entretanto, analisando o contexto histórico-geográfico da sua cidade natal, bem como a sua data de nascimento e raça é possível efetuar algumas inferências. É lógico afirmar que Antonio era filho de descendentes de povos africanos que foram escravizados. É provável que seus pais, Agustinho Vitoriano dos Santos e Francisca Maria da Conceição, tenham nascido livres, por volta da década de 1880, beneficiados pela Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, que considerava livre todos os filhos de mulher escrava nascidos a partir da data da lei.

Em 1885, a Lei dos sexagenários libertava os escravos acima dos 60 anos de idade, e em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea, sancionada pela princesa Isabel, aboliu definitivamente a escravatura no Brasil.

Por outro lado, imagina-se que seus avós e antepassados anteriores não tiveram sorte melhor, uma vez que devem ter nascido antes da década de 1860, ou seja, no seio da escravatura imperial brasileira. Seus avós podem ter nascido em solo brasileiro, visto que em 4 de setembro de 1850, com a Lei Eusébio de Queirós, ocorreu a extinção do tráfico de escravos africanos para o Brasil, tão veementemente denunciado pela poesia triste e contundente de Castro Alves, conhecido como o poeta dos escravos.

No dia 21 de janeiro de 1950, o Senhor Antonio casa-se com Raimunda Maria da Conceição, conhecida como Dona Raimunda, nascida no dia 2 de fevereiro de 1920, em Caraúbas-RN. Dona Raimunda já possuía quatro filhos: Antonio, Lourdes, Zé Tarzan e Zezinho.

Na década de 1950, a família se muda para a histórica Rua da Baixa, próximo à Rua da Medidora, às margens da atual BR-230, que na época ainda não existia. Todas as casas eram, tipicamente, de taipa. Também conhecida de pau a pique, era construída pelos próprios moradores e consistia no entrelaçamento de madeiras verticais fixadas no solo, com vigas horizontais amarradas entre si por cipós. Em seguida, o esqueleto de madeira é preenchido com barro, formando as paredes rústicas. O piso era grosseiro, de terra batida. A casa de Dona Raimunda ainda possuía uma peculiaridade: o teto era constituído por palha de carnaúba. Em noites de boas chuvas, a família dormia nos embalos dos respingos que furavam o bloqueio da módica “palhoça”, sem, no entanto, deixar de apreciar, através das frestas das palhas, os clarões dos raios que rasgavam os céus durante as tempestades invernosas. Em noites de lua clara, até mesmo os raios lunares conseguiam romper o telhado e adentravam na casa, trazendo um pouco de luminosidade e magia para as noites sombrias do sertão.

Na década de 1950, o DNOCS de São Gonçalo impunha rígidas normas administrativas no âmbito de sua competência. Neste sentido, o rigor era tanto que nenhum trabalhador, morador local ou visitante podia sequer pegar ou comer uma fruta sem autorização do órgão. Certa vez, Seu Antonio Vitorino, que trabalhava como cassaco, foi demitido porque, durante o expediente, retirou, para chupar, uma laranja do pé em área do DNOCS.

Dona Raimunda e Seu Antonio permaneceriam nesta residência até o ano de 1972, quando o DNOCS determinou a expulsão de moradores da periferia que não possuíam vínculo com a entidade. Alguns moradores da Rua da Baixa: Seu Biza e Dona Otília, João Ferreira, Raimundão, Dudu e Mariá, Zé Tingó e Maria Gaspar, Chico Ginó, Seu Leopoldo...

No ano de 1972, devido à implantação do PISG, o DNOCS determina a expulsão dos moradores e a desativação da Rua da Medidora e parte da Rua da Baixa. Desta feita, com muita tristeza, Seu Antonio e Dona Raimunda deixam São Gonçalo depois de quarenta anos e vão morar em Marizópolis, que se tornaria o destino de muitos são-gonçalenses, deserdados compulsoriamente de suas origens. Em Marizópolis, o casal moraria nas ruas Erminio Vale e Rita de Abreu.

Em maio de 1973, Dona Raimunda retorna a São Gonçalo por alguns dias, para cuidar de Nina durante o seu resguardo do nascimento de Dedea. Entretanto, todas as quartas-feiras, religiosamente, Dona Raimunda e Seu Antonio saíam de Marizópolis a pé, ao raiar do sol, com destino a São Gonçalo, onde passavam o dia na casa de Zé Tarzan (filho de Dona Raimunda). No dia seguinte, à tardinha, retornavam para sua casa, de ônibus, na viação Santa Cruz ou viação São José. Algumas vezes, Zé Tarzan levava sua mãe de volta no seu veículo, sob a alegre companhia dos filhos. Estas visitas perdurariam até o falecimento de Seu Antonio, no ano de 1988.

Na segunda metade da década de 1970, Zé Tarzan compra uma casa para Dona Raimunda e Seu Antonio, que até então moravam de aluguel em Marizópolis. A casa, embora apresentasse um modelo antigo, era bastante espaçosa e com um muro muito grande.

No dia 29 de junho de 1988, em Marizópolis, Antonio Vitorino falece de causas naturais. O tempo passara depressa para ele. Morreria relegado ao mesmo ostracismo do nascimento.

Seu Antonio era um homem de poucas letras e de muitas lidas nos roçados. A prática que lhe sobrava com a enxada, faltava-lhe com a caneta. Apenas aprendera a rabiscar o nome, vez que sentia necessidade de desenhá-lo nos apontamentos da vida, nas dolorosas frentes de emergência que acudiam o Nordeste quando as boas chuvas se negavam a cair.

Era um homem de poucos amigos, embora não tivesse inimigos. Tinha um bom coração. A pele escurecida e os cabelos difíceis de pentear o denunciavam: era descendente de povos africanos, que foram escravizados, dos canaviais pernambucanos. Nascera vinte e dois anos após a abolição da escravatura. Felizmente, não conhecera a penumbra das senzalas. Era um alforriado pela própria época. Morrera, exatamente, um século após o país virar uma de suas páginas mais tristes da história.

Falecera às 6:30 da manhã, sem nunca reclamar da sorte, muito menos das intensas dores a que fora acometido. Em um gesto nobre e louvável, apesar do visível desgaste interior, morreu silencioso, tácito, sem querer causar transtornos para a família, à qual reservava gratidão em demasia. A estrada da vida chegara ao final para ele. Tornar-se-iam, assim, realidade os últimos instantes de um sertanejo típico. Um legítimo representante do anacrônico nordeste rural. Foi no dia de São Pedro, dono das chaves do céu. A família aproveitou a forte presença do Santo e reivindicou um lugar para o falecido no paraíso celestial. Algumas fogueiras da noite anterior ainda ardiam em brasas. Era um feriado clássico no sertão.

O seu sepultamento foi um evento pouco concorrido. Sobraram vários ingressos. Desse modo, Deus não teve maiores transtornos com o seu chamamento: poucas pessoas reclamaram a sua morte. Nenhum parente consanguíneo compareceu. Há tempos que perdera o contato com os seus entes queridos das terras de Manuel Bandeira.

Nas proximidades do tímido cemitério local, o melancólico e lamurioso cortejo adentrou em uma viela estreita, descendo ladeira abaixo. Na realidade, era um beco íngreme transformado em rua. A apertada ruela era formada por casas simples, taperas de barros nanicas e desalinhadas. Alguns moradores saíram às calçadas para prestar homenagens ao extinto. Não sabiam quem era, mas sabiam que era um dos seus. Muitos vieram parar naquele lugar depois que foram expulsos de São Gonçalo, pela modernidade da instalação do perímetro irrigado. O chão esburacado revelava a passagem recente de algumas chuvas. Por outro lado, criminava que o poder público nunca havia andado por lá. A comitiva, conduzindo o corpo do morto, tinha que se esquivar dos restos mortais das fogueiras de São Pedro. A rua, demasiadamente estreita, servia para dar impressão de um espetáculo fúnebre lotado.

Embora a rua fosse constituída por casas de pau a pique, já havia umas poucas e atrevidas residências de alvenaria, apesar do reboco áspero, paredes em latente desaprumo e pintura em cal parcialmente anegrejada. Este fato representava muito mais que a transição de um estado de miséria para uma pura condição digna de moradia, ainda que mínima. Significava, sobretudo, uma ação de rebelião contra o descaso e inércia do estado e das próprias intempéries e infortúnios que afligiam o povo esquecido do Nordeste. O flagelo, que teimava em se perpetuar, começava a ser execrado a partir de iniciativa de suas próprias bases.

O cemitério Santo Antonio recebeu o seu chará de covas abertas. Seria a sua derradeira morada. Quem descesse aquela ladeira deitado com as mãos cruzadas, nunca mais retornaria. Aquele cemitério havia sido construído bem distante do centro da cidade e numa baixada de fatigante acesso. Não obstante, com o crescimento urbano, logo se viu arrodeado de ruas, vielas e becos, o que era uma prática comum em muitos e insolentes arruados nordestinos.

Aquela rua era desprovida de cores, nublada pelo luto, dominada pelo semblante funéreo de suas casas. Jamais saíra de um estado absoluto de quaresma. Seguramente, é a rua mais soturna daquela povoação. A testemunha ocular de todas as mortes, de muitas orfandades, de inúmeras dores, de tantos soluços... Até mesmo nas horas de recesso das madrugadas era possível sentir a fragrância da morte, escutar os sons do adeus, ouvir os lamentos da saudade, presenciar o fraquejar da fé...

Mas alguns residentes até gostavam da vizinhança daquele campo-santo. Sentiam-se privilegiados ao imaginar que seriam sepultados no terreiro de casa, que não precisariam pagar passagem pela última viagem.

Desde os primeiros rastros de boiadas no interior do Nordeste até o século XIX, Marizópolis, hoje cidade, não passava de terras devolutas e esquecidas, como tantas outras deste vasto sertão de Meu Deus. O município fica localizado em um imenso relevo, entrecortado bem no meio pela rodovia transamazônica. Por ser o ponto mais alto da região, tornou-se o refúgio dos são-gonçalenses, quando Boqueirão enchia até a tampa e causava assombro e desassossego à população.

No mesmo ano de 1988, Zé Tarzan vende a casa no então distrito de Marizópolis e sua mãe vai morar em Juazeiro da Bahia, com a filha Lourdes, o genro Júlio e a neta Selma.

Vivendo na Bahia, Dona Raimunda não conseguia disfarçar a bucólica melancolia. A imaginação não tinha limites. A desfamiliarização com as letras a impedia de escrever como os poetas dos sertões, mas não a impossibilitava de racionar como eles.

Vez por outra, era flagrada pela família em estado de meditação profunda. Um longa-metragem de pensamentos invade a sua mente, quando se depara em épocas pretéritas. Embriaga-se saudosamente em cenas realescas exibidas em preto e branco. Passava sua vida a limpo. Algumas vezes, em delírios incompreensíveis, chegava a assentar até mesmo os sertões no banco dos réus. Mas, como era uma mulher justa, apesar das agruras que vivera, conduzia um julgamento digno, respeitável. Ao final, todos eram legitimamente absolvidos. Até mesmo o tempo, implacável senhor da vida e da morte. Detentor de uma irreversibilidade mórbida e escancarada, o tempo nunca se arrependera do que fizera, pois jamais voltara atrás nos seus atos.

Nos versos dos poetas, o tempo geralmente assume papéis antagônicos: às vezes, herói; às vezes, vilão. Sem, no entanto, jamais abrir mão do protagonismo. É sempre dúbio com o sertanejo: oferta sabedoria, mas deduz os dias úteis do seu calendário da vida.

Nos primeiros meses de 1995, Dona Raimunda adoece gravemente. Sem querer dar razão aos seus pressentimentos, recebe as juras e ameaças da morte (HÉLIAS, 2015). É avisada que seus derradeiros dias de vida haviam chegado. Não conseguia disfarçar o seu sentir, a sua inquietação.

Pouco depois, falece na casa da filha Lourdes, em Juazeiro da Bahia, aos 75 anos de idade, levando para o túmulo um pouco da história, cultura e nostalgia do Nordeste rural brasileiro. Desde jovem, trazia no olhar profundo e nas mãos ressecadas pelo sabão as indeléveis marcas de uma vida fatigante, sem canja.

Josemar Alves Soares
Enviado por Josemar Alves Soares em 14/01/2017
Reeditado em 11/01/2024
Código do texto: T5882083
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