MEU IRMÃO DAVI – O BEBÊ QUE EU MUITO ESPEREI

Em 1967 eu era o bebê da casa. Em setembro, eu tinha um ano e nove meses. Minha irmã, Vera Lúcia, nascera um ano e dois meses antes de mim. Agora ela estava com quase três anos.

Não me recordo de tudo desse tempo. São poucas memórias um tanto enuviadas. Entretanto, recordo de minha mãe gigantesca à beira de um fogão. Eu a via de baixo para cima, segurando na barra de seu vestido de florezinhas mosquitinho predominantemente azul claro e rosa claro. Sua barriga estava muito volumosa. Recordo a curva que o vestido fazia acima da barriga pela frente para depois cair em linha reta até a barra onde eu segurava no lado.

Recordo também um assunto corrente para mim naqueles dias. Logo a mãe ia buscar um outro nenê, que, em minha ideia, seria comprado. Um dia, para minha perplexidade, alguém me explicou que bebê não se compra. Ao contrário, se ganha. Fiquei maquinando como podia ser ganhar bebê, se tudo se comprava. E, sendo que, em minha ideia, um bebê devia ser muito mais importante que tudo, ele devia ser comprado.

Quando, em 2003, meu primeiro livro sofria a revisão literária para publicação pela Editora WS, de Porto Alegre, no capítulo onde descrevi, por minha visão de infância, a visão infantil de Hilel, o personagem central do livro, com três anos e meio de idade na história, uma das observações da revisora dizia que crianças tão jovens não têm pensamentos cognitivos tão complexos assim. Referia-se ao que eu descrevera sobre a distância de determinado dia da semana em relação ao dia vigente.

Costumo dizer que sempre fui muito observador (degustador) da magia de estar vivendo e por isso percebia com o ser (os sentidos) e o pensamento todos os acontecimentos da vida. Tudo novo que eu via requeria compreensão e todos esses questionamentos requeriam respostas, que eu, às vezes recebia dos mais velhos e outras vezes eu mesmo produzia, algumas vezes, equivocadas, outras, acertadas. E, para poder ver a vida (vive-la – degusta-la), jamais gostei de perder um minuto de luz do dia dormindo. Por isso jamais conseguia dormir enquanto fosse dia claro.

Talvez, por isso, tenho nítida recordação de muitos acontecimentos bem antigos - de brinquedos que tive, ambientes onde estive, objetos que vi, etc., e também dessas conjecturas que fazia na infância. Inclusive, embora não soubesse ver as horas, ao olhar no relógio, eu sabia quantos traços maiores (ou números) faltava para o pai retornar ao fim do dia e tinha noção quanto demoraria para o relógio andar cada um daqueles intervalos.

Bastante empolgado, eu desejava muito a vinda desse outro bebê que a mãe estava para buscar. Aguardava ansioso por sua chegada.

Sei que o bebê nasceu de parto natural em casa, em 25 de setembro daquele ano de 1967, mas me recordo um dia que eu chorava a falta da mãe, sendo consolado por alguém que dizia que ela tinha ido buscar o novo nenê. Então, relembrado disso, meu desespero pela ausência da mãe se convertia em expectativa por ver o novo nenê.

Recentemente minha mãe me informou que, porque o bebê ia nascer, eu fui levado por alguém para uma casa vizinha, por isso chorava por sua falta.

Não recordo, porém, do bebê recém-nascido. Recordo dele um bebê já grandão, com cabelos crespos louros e olhos grandes verdes num rostinho branco de anjinho de pinturas. Quando ele estava dormindo a chupar um bico azul, eu ficava ajoelhado adorando sua carinha serena, as pálpebras dos olhos fechadas a estender grandes cílios sobre as bochechas rosadas. À luz do lampião, ele parecia dourado.

Emocionado, eu dizia para a mão:

- Esse não é um nenê, mãe; ele é um anjinho que o Papai do Céu mando pra nós.

Recordo dele já caminhando aos cambaleios e falando tudo errado. Fazia muita traquinagem e chorava com muita força se o pai roçava a barba em sua carinha. Gostava muito de chutar as canelas das pessoas.

No inverno de 1968, depois de vários domingos de mutirões em que os irmãos do pai vinham ajudar, ficou pronta a casa de eucalipto sobre o porão de pedras que o pai construiu no mais alto dos três terrenos que adquirira na Rua Botafogo, no bairro Santo André, em São Leopoldo. O dia da mudança foi encantador para nós, pois foi demolido o barraco onde até então morávamos mais ou menos ao meio da profundidade do terreno e demolições sempre revelam achados interessantes para as crianças.

Brincávamos de roda cutia com nossas duas tias, Marli e Marta, pouquinho maiores que nós, quando ouviu-se o grito desesperado da mãe que achara o Davi com a boca circundada de uma pasta azul esverdeada que ele espremera de um tudo parecido com os de pasta de dente que encontrou entre os vestígios da demolição. Tratava-se de veneno de rato. A diferença na embalagem em relação ao tubo de pasta de dentes era que a tampa possuía uma cabeça.

No mesmo instante em que o pai acudiu, pedindo para algum dos seus irmãos correr de bicicleta e buscar um taxi, o tio Celino gritou do terceiro terreno vizinho ao lado dizendo que era para dar leite para tentar desintoxicar até que chegasse ao médico.

Alguém correu ao armazém do Vardinho, na poeirenta Av. Felipe Uebel, junto ao primeiro Arroio Kruse, uns trezentos metros abaixo da entrada da Rua Botafogo na Av. Jacob Uebel, e de lá retornou muito rápido com um saco de leite gelado que o Davi mamou no bico como se fosse um bezerro. E, sendo que continuou normal, foi ficando em observação até que viesse o taxi. Entretanto, não apresentou qualquer sintoma, a não ser que defecou muito cocô azul esverdeado.

Já morando na casa nova, quando ficávamos sós, mas cuidados por alguém, ele e atormentava a Vera Lúcia, estragando o que ela fazia. Ela se queixava para o pai e a mãe, que a autorizaram a chamuscar as pernas dele com uma varinha de guanxuma. Na próxima vez que ficamos só, e ele foi prevalecer-se dela, ela deu de mão na varinha que já tinha preparada. Entretanto, ele tirou a varinha de mão dela e deu-lhe muitas varadas nas pernas.

Ele gostava de imitar o picolezeiro filho da dona Intervina, que morava no final da nossa rua, junto ao mato. Com uma bolsa ao tiracolo arrastando pelo chão, ele dizia:

- Olha o “cocolé”, cinco bom e o resto não presta.

Entre suas peripécias estava pôr muito açúcar no café para esfriar, como ele dizia; quebrar pilhas de louça, como fez numa vez que teimou em pôr a mesa e pegou todos os pratos da cristaleira de uma só vez. Também contou para a tia Maria em seu colo na ida pra igreja no Sábado que a mãe fizera um bolo para o aniversário da tia, mas que não era para contar para ninguém porque a mãe tinha dito que era segredo.

Teimava em descer correndo os lances do trilho até o poço e o tanque no nível mais baixo da propriedade, já no segundo dos três terrenos. Por causa disso, certa vez tropeçou e caiu com a bochecha sobre as pontas de um toco apodrecido na beirada do trilho, ao meio da extensão desse segundo lance da descida, ferindo-se muito. A mãe teve muito trabalho para limpar o ferimento, pois precisou antes tirar os restos de madeira de dentro e o menino chorava com muita dor. No lugar ela pôs pó de café, conforme as receitas dos antigos, e em poucos dias o ferimento fechou e cicatrizou.

Aos cinco anos, quando foi para o jardim da infância, no primeiro dia a mãe levou-nos ao Grupo Escolar Dona Leopoldina, na Rua André Ebling, na última quadra antes da Av. Alta Tensão. Aí eu já frequentava a pré-escola desde o ano anterior, mas permaneceria por causa de meu aniversário na segunda metade do último mês do ano. Quando ela deixou-nos, ele ficou aos prantos, mas logo consolei-o com um abraço e o dizer de que logo a mãe viria nos buscar. Então logo ele já mostrou quão dono de si era.

Nada tímido, pouco dias depois ele mascava chiclete na fila para o cântico do Hino Nacional antes de entrar para a aula. Ao ver isso, a jovem professora pediu-lhe que tirasse o chiclete da boca. Ele obedeceu, mas, querendo aproveitá-lo mais tarde, pôs no bolso da camisa Volta ao Mundo que vestia. Mais tarde, na sala de aula, ela viu que ele pusera o chiclete no bolso da camisa e falou histérica que a mãe ia xingá-la por isso. E, descontrolada, começou a desgrudar os pedaços do chiclete de dentro do bolso dele. Com tudo isso, e vendo que seu chiclete se ia, ele irritou-se e começou a chutar-lhe as pernas, pelo que ela passou a tentar acamá-lo, tratando-o de Davizinho. E nesse momento nem a minha intervenção o acalmou. E, muito irritado, ele saiu pela sala indo para debaixo na mesinha sobre a qual estava o balde de alumínio com a água que bebíamos. Seguida por quase todas as crianças, ela foi a mesa e curvou-se para tirá-lo e continuar a aula. Ele porém, espalmando as mãos sob o tampo da mesa, ergueu-a, fazendo o balde virar sobre a professora, dando-lhe um completo banho.

Não recordo se ao fim do dia ele levou umas boas varadas da mãe. Mas é certo que levou.

Ao contrário de mim, ele dormia facilmente, cochilando em qualquer lugar onde fosse largado. Por isso eu vivia cuidado para que ele não caísse das cadeiras na escolinha e na igreja e do porta-pacotes da bicicleta do pai.

Para irmos à igreja, na Rua São Pedro, no Centro da cidade, o pai e a mãe levavam-nos de ónibus, quando não de bicicleta. O pai levava eu e o Davi um atrás do outro no porta-pacotes de sua bicicleta e a mãe levava a Vera Lúcia na sua. O, Davi, porém, até aí dormia. Por isso eu ficava atrás, me firmando sobre a bicicleta segurando no banco do pai. Assim meus braços serviam de cerca para que o Davi não caísse. E sempre que ele dormia inclinava por sobre meus braços e eu tinha que suportar a distância fazendo muita força.

Além do mais, eu era o modelo dele, talvez o alvo do que ele queria ser quando pequeno, embora que ele fosse infinitamente mais inteligente e com sete anos já era maior que eu. Por me ter como modelo, em tudo ele queria ser eu. Assim, tudo que eu fizesse ele queria fazer, o brinquedo que eu tivesse ele queria ter igual, a roupa que eu ganhasse tinha que ser dele ou ele tinha que ter. Assim a mãe fazia todas as nossas roupas iguais. Até se eu gostasse de alguma menina ele dizia que essa seria sua namorada.

Por isso, cedo eu descobri que tinha que cuidar tudo que eu fizesse na frente dele, pois ele iria fazer, com certeza, e, além de tudo, ele era super desastrado.

Certa vez, quando eu tinha por volta de oito anos, e morávamos com o pai e a mãe na chácara, na Av. Alta Tensão, no bairro Planalto divisa com São Cristóvão, junto com nossos avós e tios da parte do pai, aproveitando que ele não estava perto, subi em uma laranjeira espinhenta para pegar uma de suas laranjas bem no alto. E desci muito rápido para não acontecer de ele aparecer e me ver na laranjeira. Quando eu terminava de descer, porém, ele apareceu e, vendo que eu tinha subido na árvore pôs na cabeça que ele também ia subir. Insistentemente adverti-o que não subisse, pois, se caísse, ira se machucar muito naqueles espinhos compridos e grossos. Ele, entretanto, não fez caso e subiu protestando que ele podia fazer tudo como eu. Mas, logo em seguida ele desabou, espetando-se em muitos daqueles tenebrosos espinhos e ficando brabo comigo, culpando-me por ele ter caído.

Pouco tempo antes, quando ainda morávamos na Rua Botafogo, na casa que fora da Doralina, no outro lado da rua, na frente da nossa antiga casa do porão de pedra, depois de voltarmos de Taquara, onde moramos no ano de 1973, brincando com nossos amiguinhos, acho que o Jorge e a Eni, filhos do seu Adelino e a dona Dena, o Davi desabou decima da casa deles que estava em construção na Av. Jacob Uebel, poucos metros acima da esquina com a Botafogo.

Por esse mesmo tempo nosso pai trabalhava como cortador de serra-fita na indústria de calçados Mirela, na esquina das ruas Pandiá Calógeras e Medianeira, no bairro Cristo Rei. Sua seção produzia cepas de cortiça para os calçados plataforma femininos da época. Corria o ano de 1974. A direção da empresa dava-lhe os retalhos de madeira que ele retirava do depósito de rejeitos sem nada cobrar porque vendia as cargas para os vizinhos queimarem em seus fogões e fornos.

Quando estava de férias do colégio ele me levava junto e por lá eu passava o dia brincando sozinho e jogando retalhos de madeira para cima da caminhonete Chevrolet Pavão 1929. Ao final do expediente da manhã, ao ir para casa almoçar, levávamos uma carga e ao final da tarde, levávamos outra.

Por ser, porém, muito desastrado, o pai não levava o Davi. Um dia, entretanto, levou e ficamos a manhã brincando e jogando um ou outro retalho sobre a carroceria da caminhonete. Mas não chegamos a completar a carga, pelo que o pai nos ajudou no final da manhã para irmos entregar e almoçar em casa.

Subidos então no monte de retalhos, jogávamos os pedaços de madeira sobre a carroceira da caminhonete. O Davi, entretanto, querendo jogar mais do que eu, desceu para o pé do monte para jogar os retalhos de lá, pois ficava mais perto para alcançar a caminhonete. Postou-se justamente no curso dos retalhos que eu jogava de sobre o monte na carroceria. E logo um retalho que joguei com pouca força bateu na beirada superior da sebe e ricocheteou de volta, caindo justamente sobre a cabeça dele, abrindo um rasgo que custou alguns pontos. Por sorte o hospital é bem pertinho dali.

Por esse tempo houve um grande surto de meningite e notícias circulavam de crianças que tinham morrido com a cabeça rachada por causa da doença. Com uma dor de cabeça incontrolável e rigidez na nuca, o pai e a mãe correram pro Hospital Centenário receosos de que o Davi pudesse ter sido acometido da moléstia. Depois de poucos dias ele retornou completamente fora de perigo.

Quase um ano depois, em 1975, o pai e a mãe já tinham se separado, tínhamos ido morar com a mãe na casa do tio Amélio na beira do arroio Kruse, no Santo André, perto de onde o seu Pedrão instalaria naquele mesmo ano seu tradicional bar e armazém, e o pai, que quando saiu de casa tinha ido morar com a Noeli na Campina, voltara com ela a morar na parte do casarão da chácara onde antes morávamos com o vô, a vó e os tios.

Por esse tempo voltamos a morar com o pai na chácara, em um novo tempo bastante estranho e um pouco adverso. De certa forma, porém, continuamos gozando da liberdade que antes tínhamos dentro das divisas da chácara, que era muito grande. Todavia, haviam atrativos também do lado de fora, sendo alguns até mais interessantes. Como a cascata, por exemplo, onde éramos proibidos ir sem a presença do pai, mas não recordo de alguma vez ele ter nos levado lá. Acho que levou sim.

Certo dia apareceu por lá o Pilão, amigo de infância do Cirdo, nosso tio Anecildo, que tinha em torno de uns 17 anos. Ele me convidou para irmos na cascata e, aproveitando a ausência de todos, fomos. Íamos retornar rápido, antes que dessem falta de nós, mas, quando estávamos retornando, nos deparamos com o cipó que cruzava a cascata a uma altura de uns cinco metros. O Pilão cruzou uma vez a cascata com o cipó e eu cruzei depois. Quando eu voltava do pêndulo do cipó, apareceram a vó, as tias, o Cirdo, a Vera Lúcia e o Davi, que estavam me procurando e imaginaram que eu tivesse ido para a cascata. Ao me ver retornando com o cipó, o Davi adiantou-se dizendo que ele também andava no cipó bem como eu. Tentando ludibriar seu ego, disse-lhe que não havia dúvida de que ele sabia andar bem de cipó e que ele nem precisava mostrar. Ele, porém, protestou que ia andar ainda assim, pois eu só estava dizendo isso para convencê-lo a não andar porque achava que ele não sabia andar, mas ele ia andar só para me mostrar que sabia. Mais uma vez, entretanto, insisti que não andasse. A vó tentou sua autoridade, as tias tentaram, a Vera Lúcia e o Cirdo também tentaram dissuadi-lo, mas de nada adiantou. Decidido, ele pegou na ponta do cipó, largou-se no movimento pêndulo e na metade do curso para o outro lado do córrego, olhou para baixo e, amedrontado, largou-se, despencando os cinco metros sobre suas pernas e bacia na laje do piso da cascata.

Daí saiu carregado pelo Pilão e o Cirdo, sendo levado para o hospital no Corcel do seu Etimar, que tinha um criadouro de coelhos na Rua Flordoaldo Pires Melo, no bairro São Cristóvão, ao lado direito da torre de alta tensão.

Naquela mesma tarde o pai trouxe notícia de que o Davi tinha deslocado a bacia e ia ficar muito tempo no hospital. E, juntamente com a notícia, deu, em mim e na Vera Lúcia, uma de suas surras memoráveis de cinta. Esta, porém, bem mais memorável. Uma semana depois, quando nos queixamos que estávamos com saudade do Davi, ele disse-nos para matarmos a saudade olhando para os vergões da surra em nossas pernas.

Em 1975, eu e o Davi já fomos estudar no semi-internato do Centro Medianeira do Colégio São Luiz, na esquina da rua Bento Gonçalves e Av. João Corrêa. E antes ainda de findar o ano fomos morar com o pai e a Noeli no bairro Vicentina, num loteamento banhado chamado Chácara da Prefeitura, na Rua Gal. Mendio Silveira Quadros, no lado oeste da cidade, depois da BR 116, onde o pai ainda mora.

Até os treze anos do Davi e meus quase quinze andamos sempre juntos, mas ele me contou depois de adulto que com essa idade já andava fumando escondido. E íamos na igreja e tudo, a qual jamais faltávamos. Depois, algumas vezes estive morando na casa da mãe, em Taquara e Parobé, enquanto ele permanecia com o pai. Outras vezes ele esteve morando na casa da mãe enquanto eu morava na casa do pai. Certa vez, seguindo um exemplo que eu dera às vésperas de completar quinze anos, ele, então com quinze, fugiu de casa, indo até São Paulo. Porém, diferente de mim, pegou carona direto e passou uma temporada na casa do tio Simão e tentando arranjar uma forma de ficar por lá.

Quando dei baixa do Exército, em 1985, então com 19 anos, no mês de março voltei a morar na casa da mãe, que então morava no bairro Empresa, em Taquara, na Rua Olímpio C. da Silva. Nesse tempo o Davi morava com eles, trabalhando na Indústria de Calçados Isabela, em Parobé, concessionária da marca Star Sax, como costureiro de calçados. Nessa empresa ele tinha um dos melhores salários da indústria calçadista e por isso se vestia com boas roupas e pagava até para lavar o cabelo exuberante no cabeleireiro.

Da porta do armazém que o meu padrasto e a mãe administravam observei uma brasinha que pulava de mão em mão na escuridão por sobre o tronco caído onde o Davi e seus três amigos e colegas costumavam ficar conversando nas horas de folga. Intrigado porque estariam compartilhando o mesmo cigarro, sendo que todos trabalhavam e tinham dinheiro, fui ver o que se tratava a brasinha voadora e fiquei perplexo ao ver que eles estavam fumando maconha. Aturdido, disse-lhes que não acreditava que eles estivessem se drogando, fazendo tal insanidade consigo mesmo. E dirigi-me mais especificamente ao Davi, pois tínhamos aprendido desde pequenos a respeito dos malefícios dos vícios. Bem seguro de si, e cheio de soberba, ele me chamou de careta e disse que maconha não fazia mal nenhum e que eu devia era cuidar da minha vida. Retruquei-lhe que careta era ele e seus amigos, que estavam tomando a atitude irracional de colocar-se na dependência destrutiva das drogas. Ele estava com dezessete anos.

Por causa das dificuldade para arranjar trabalho em Taquara, antes ainda de iniciar o outono, fui morar em Osório, onde passei o ano trabalhando com decoração de fachadas de lojas. No Natal desse ano, juntamente com um de seus amigos, o Davi veio me visitar. Convidei-os para cear em um ótimo restaurante. Depois da janta, quando apreciávamos a ótima música ao vivo, perguntaram-me se me incomodaria se saíssem para rua. Percebendo que queriam sair para fumar maconha, apelei que não podiam continuar com isso, pois iam destruir suas vidas. Outra vez ele chamou-se de careta e disse que sabia o que estava fazendo e que a maconha não prejudicava ninguém e ele ainda era capaz de parar quando desejasse. Retruquei-lhe mais uma vez que careta eram eles, que estavam se entregando ao domínio de algo que ia destruí-los. Ele replicou que eu não sabia nada, que as histórias que contavam dos malefícios da maconha eram maldade e que a propaganda anti-maconha era dramática demais. Querendo instalar-lhes um alerta que acionasse quando suas vidas descaíssem, convoquei-os para nos reunirmos no mesmo restaurante no Natal de 1995 para vermos quem apareceria. E acrescentei-lhes que se não parassem coma maconha não compareceriam, pois ficariam pelo caminho.

Quando eu morava em Caxias do Sul, em 1991, algumas vezes o pai me ligou para falar de suas preocupações quanto ao Davi, pois fora hospitalizado mal e suspeitava-se que tivesse HIV. Quando viajei para São Leopoldo, soube que Vera Lúcia o encontrara convulsionando em uma rua do Centro e providenciou socorro. Fui visita-lo no Hospital Centenário e ele tinha muita cãibra nos dedos das mãos. Logo, porém, ele deu alta e ficamos aliviados com o resultado negativo do exame de HIV.

Outra vez, ainda em 1991, recebi em Caxias do Sul a notícia de que ele fora novamente hospitalizado mal, desta vez no Hospital Conceição, em Porto Alegre, onde fui visita-lo. Os exames lá feitos já confirmaram a presença do vírus HIV em seu sangue. Isso pesou-me muito o coração e comecei a me angustiar com a forma e o dia em que perderia o meu irmão. Tranquilizava-me, entretanto, as notícias de que, cuidando da saúde, uma pessoa com HIV podia viver mais de quinze anos. Preocupava-me, porém, que o Davi não cuidava da saúde. Ao contrário, comia mal, vivia na noite, posando, muitas vezes, ao relento, compartilhando seringas com pessoas como as que passaram-lhe o HIV em rodas de compartilhamento.

Mais tarde ele contou para a Denise, que então era minha esposa, que com os amigos eles tiravam um pouco de sangue de algum deles para dissolver o pó em uma colher e depois injetar um pouco em cada um dos presentes.

Em 1994, eu e a Denise, então minha esposa, morávamos em Porto Alegre, no bairro Intercap, na rua Professor Guerreiro Lima, e quando arrumava muito problema em São Leopoldo o Davi se refugiava-se lá, ficando, às vezes, até mais de uma semana, pelo que a esposa me chamou atenção e por isso me senti obrigado a pedir-lhe para não ficar tanto tempo, exceto em caso de tratamento de saúde. Disse-lhe que podia vir todos os finais de semana se desejasse, mas teria que chegar na sexta à noite e ir embora, no máximo, na segunda pela manhã. E acrescentei-lhe que se algum diz desejasse ajuda para parar com as drogas podia me procurar e ficaria em nossa casa quanto tempo fosse necessário.

Ele foi-se embora e retornou no próximo final de semana dizendo que queria ajuda para parar com as drogas e que o internasse no Hospital São Pedro. Respondi-lhe que quando eu o fosse ajudar seria à minha maneira e não à maneira dele. E acrescentei que sabia que ele pretendia ir para o São Pedro por saber que lá tratam os pacientes à base de remédio e ele desejava trocar um vício pelo outro.

Outro final de semana ele retornou e não foi embora na segunda, obrigando-me a sugerir-lhe que ao menos procurasse um médico para disfarçar que estivesse tratando-se. Ele foi na Cruz Vermelha, na Av. Independência, e consultou como Dr. Teodoro, que fez-lhe uma bateria de exames, encaminhando-o para a baixa no Hospital Conceição para tratar um fungo oportunista que ele identificara em seu pulmão.

No Hospital Conceição ele baixou na ala dos aidéticos e nos três meses que lá esteve viu algumas coisas bem chocantes, como o jovem que para lá foi dirigindo seu próprio carro, um Santana novo, fez sua própria baixa e de lá saiu num caixão depois de ter definhado à vista de todos, sem receber qualquer visita. Antes, porém, ele repartiu suas roupas caras com os companheiros de quarto e no estacionamento seu carro continuou ao relento até não sei que tempo.

Esse foi o fundo de poço do Davi. Então, por causa disso, por esses dias ele me ligou e disse que queria a ajuda que eu achasse melhor para ele vencer o vício. Então, sentindo o peso da minha responsabilidade como “guardador do meu irmão”, procurei informação na própria Cruz Vermelha e um mês antes de ele sair do hospital eu e a Denise já frequentávamos as reuniões da Pastoral Católica de Auxílio ao Toxicômano – PACTO aos sábados à tarde e terças à noite na Igreja do Rosário, no Centro de Porto Alegre, e às quintas à noite no Colégio Dom Bosco, no bairro IAPI. Até o dia em que ele saiu do hospital, indo para nossa casa e depois à primeira reunião, frequentando as reuniões eu procurava me instruir e instruir a Denise sobre como enfrenta-lo e induzi-lo ao tratamento, caso na hora de ir à reunião ele desejasse declinar e tentasse nos manipular para não ir. Todavia, ele sempre foi às reuniões de bom grado. Uma só vez, depois de muitas reuniões, ele tentou não ir, mas não sedemos à pressão psicológica dele e ele foi conosco.

Com ele e, muitas vezes com a mãe, que ia de São Leopoldo, frequentamos a PACTO por mais de 6 meses, até que completasse sua triagem, quando ele já tivesse fechado uma grande ferida na perna que durava três anos e tivesse tratado todos os dentes, bem como cuidado de toda a saúde. Até aposentadoria ele conseguiu.

Quando, a final dos seis meses, levei-o para internação na triagem na igreja do Rosário, ele estava novinho em folha, com a pele novamente branca, com dentes novos e os cabelos totalmente renovados e sem mais aquela ferida que antes ocupava toda a parte inferior de sua perna direita. Senti um alívio por estar terminando aquela etapa do processo, mas ao mesmo tempo com remorso pela possibilidade de estar me livrando do meu irmão. Todavia, as reuniões na PACTO não acabariam, continuaríamos frequentando a todas eu e a Denise e depois de três messes começaríamos a visita-lo uma vez por mês na Fazenda do Senhor Jesus, em Viamão, para onde ele foi depois da triagem final no alojamento na Igreja do Rosário.

No mês de fevereiro de 1995 ele já estava há cinco meses na fazenda. Mais um mê e ele sairia para a primeira visita terapêutica de uma semana. Nesse mês entrei em acordo com a mãe e a esposa para ir só à visita na fazenda, pois desejava conversar muito com ele sem a interferência do sentimentalismo relacionado com a presença da mãe e da Denise. Desejava entender claramente o que se passava em sua psique e então achar meios de ajuda-lo. Durante todo o dia conversamos e ele enfatizou que estava com uma mania involuntária de perseguição, convencido subconscientemente de que todos os cinquenta internos da fazenda, bem como os monitores e demais, tramavam contra ele, muito embora conscientemente soubesse claramente de que todos estavam engajados em ajuda-lo.

Saí da visita com o coração pesado, temeroso de que fizesse algum mal a si mesmo. Recomendei-lhe, porém, que se agarrasse a Deus, ao trabalho e aos colegas, pois quando concluísse o tratamento começaríamos a trabalhar na reconstrução de sua vida. Não falei-lhe dos planos que tinha e tampouco de que ele poderia viver em nossa casa para essa reconstrução. Não pretendia atiçar-lhe o desejo de começar essa etapa antes do tempo, e tampouco dar-lhe a impressão de que poderia instalar-se em nossa casa antes de completar o tratamento, pois para a Fazenda do Senhor Jesus não se pode retornar caso interrompa o tratamento. O único recurso, nesse caso, seria reiniciar nova tiragem e ser internado em outra fazenda acessada pela Pastoral.

Uma semana ou mais depois ele ligou-me dizendo que tinha abandonado tratamento após duas vezes anteriores que os monitores tinham-no dissuadido desse propósito. Esse pelotão de convencimento, porém, não atuava mais do que duas vezes, permitindo na terceira vez o interno sair e consumar seu propósito, ciente, porém, de que não poderia voltar.

Respondi-lhe apenas que lá em casa somente teria lugar para ele se estivesse se tratando, querendo assim força-lo a iniciar de pronto novo tratamento. Ele desligou e fiquei sabendo que fora para a casa da mãe em São Leopoldo, na Rua Barbacena, no bairro Santo André. Todavia, preferi não ir visita-lo para não dar a entender que eu o estava procurando e sentir-se assim aprovado. Não pretendia quebrar a convicção de que ele somente me procurasse com a determinação de retornar ao tratamento.

Passada uma semana, em 5 de março eu assistia a novela da Globo em casa quando o telefone tocou na sala. Ao passar da cozinha para a sala para atender o telefone, vi que no relógio sobre a ombreira da porta marcava nove horas. A voz no outro lado da linha me perguntou se eu era o irmão do Davi. Respondi que sim, ao que ele esclareceu que apenas tinha ligado para dizer que ele acabara de cometer suicídio. E, sem dizer mais nada, o sujeito do outro lado desligou, deixando-me congelado naquele segundo a ponderar que o momento do qual eu tinha mais pavor acabara de se consumar muito antes do tempo que eu imaginava.

Era quinta-feira e no dia seguinte, com o coração moído, me dirigi a São Leopoldo imaginando que veria meu irmão com o crânio esfacelado, pois imaginava que tivesse se dado um tiro. Entretanto, no caixão, ele tinha o rosto sereno e a cútis corada como se estivesse vivo. Ele se enforcara com lençóis no quarto onde dormia na casa da mãe, a uma altura que é possível que encostasse a ponta dos pés no chão, dado à estatura que tinha.

Após ver seu corpo no necrotério do Hospital Centenário e cumprimentar o pai, a mãe, a Vera Lúcia e os demais, fui à casa da dona Norma, no bairro São Miguel, pois tinha certeza de que ela teria estado com ela em seus últimos instantes. Essa senhora era como sua segunda mãe, uma colega dos tempos de camelô e a ela ele confidenciava tudo. Ela me contou que ele estivera em sua casa pouco antes de cometer suicídio. Disse que ele estava bem drogado, mas falou-lhe coisas bem consistentes. Falou que durante quase um ano a mãe dele tinha ido três vezes por semana a Porto Alegre nas reuniões do grupo de apoio para ajudá-lo a vencer o vício das drogas. Disse que muitas pessoas na fazendo estiveram empenhadas nesse mesmo propósito. E, depois de tudo, ele abandonou o tratamento saindo da fazenda, mas ainda assim a mãe acreditara nele e dera uma segunda chance, aceitando-o em casa e comprando material para ele trabalhar para desvirtuar o desejo de drogar-se. Seguiu dizendo que depois de transformar todo material em bolsas, ele convencera mãe a deixa-lo sair para vender, a fim de comprar novo material para produzir mais. E, que depois de tudo isso, ele mais uma vez traíra sua mãe, usando em cocaína o dinheiro de todo material que tinha vendido.

- E agora, o que eu vou dizer para minha mãe dona Norma, perguntou.

E, sem ter o que dizer, dona Norma, respondeu:

- Pois é Davi. E agora, o que tu vai dizer para a tua mãe?

A mãe contou que comprara material para ele produzir bolsas e que ele tinha trabalhado a semana inteira, desde bem cedo até tarde da noite para desviar-se do desejo de usar droga. Mas, tendo passado essa semana, o material terminara, haviam muitas bolsas prontas e a ansiedade a bater na porta. Então, por algumas vezes ele tentou persuadi-la a deixa-lo sair para vender as bolsas. Ela, entretanto, depois de um ano frequentando o grupo de entre ajuda, sabia que não podia deixa-lo sair, pois, uma vez que ele tivesse dinheiro na mão, não conseguiria controlar o impulso de usar droga. E, enquanto somente a mãe falou, ele respeitou a determinação dela, obedecendo sua posição. Todavia, vendo serenidade que ele agora tinha, imaginando que ele pudesse controlar o desejo de usar droga frente à possibilidade, meu padrasto, que jamais fora a uma reunião do grupo de entre ajuda, argumento com a mãe na frente dele que ele estava bem, que ela podia deixa-lo sair, pois não ia acontecer nada. E essa argumentação enfraqueceu a posição da mãe, fortalecendo a insistência do Davi, até que a ela resolveu dar-lhe esse grande voto. Então ele saiu.

A mãe disse que quando ele chegou faltavam cinco minutos para as nove horas. A novela estava começando. Ao ele adentrar á porta ela percebeu que ele não estava bem. Ela convidou-o a sentar-se para conversarem, mas ele disse que estava tudo bem, que ele só estava cansado, que ia dormir e no dia seguinte conversariam. Então ele desceu e ela esperou para ver a luz se apagando, pois jamais gostamos de dormir coma luz acesa. Mas, tendo se passado cinco minutos sem que a luz ser apagasse, apreensiva a ela desceu para ver se conversava um pouco com ele. Todavia, gritou em choque ao entrar no quarto e vê-lo pendurado junto ao pé da cama. Rapidamente o meu padrasto acudiu, suspendendo-o e fazendo respiração boca a boca. Todavia, nada mais pode ser feito.

No velório, pela primeira e única vez na vida, vi meu padrasto chorando, o que fez por não ter conseguido salvar a vida do meu irmão. E ele mesmo é que comprou as roupas para o féretro e se encarregou de tudo o mais.

E, sendo aquele dia sobremaneira sufocante e dolorido, eu não quis continuar esmagando meu coração a ver o irmão de todos os meus cuidados morto num caixão sem que eu pudesse fazer nada. Por isso perguntei à mãe o que achava de sepultarmos três horas antes, sendo que não adiantava nos apegarmos ao corpo onde ele não mais estava. E, de qualquer forma, logo já teríamos que nos desfazer dele mesmo. Com a concordância também do pai e da Vera Lúcia, nos despedimos de um pedaço considerável de nós mesmo sob um monte de terra na colina do cemitério municipal do bairro São Borja, começando daquele instante o caminho que iria reduzindo aquela angústia ao longo de mais de duas décadas já passadas. Ele estava com apenas vinte e sete anos.

Wilson do Amaral