Alforria poética

Minha poesia não cabe mais no silêncio do papel. Ela anda esquisita. E não é só comigo não. De uns tempos pra cá, deu pra fazer birra: no meio da conversa, muda de assunto; contraria opiniões que antes eram recíprocas; aparece, às vezes, com modismos condenáveis — lugar-comum, termos chulos, redundâncias e outras manifestações inaceitáveis de vulgarização da Língua; não responde quando pergunto nem interage; despreza certos temas da mais alta relevância; resiste à abordagem pra esvaziar o assunto; trata com desdém a forma e o estilo; ignora suas raízes e, pra meu desespero, parece que perdeu toda a motivação existencial.

Minha poesia, de uns tempos pra cá, rumina uma vontade silenciosa que nem sei de quê. Receio que ela esteja pronta pra ganhar o mundo. Tenho me convencido de que isso mais cedo ou mais tarde aconteceria. E acumulo fortes indícios de que ela vem dando boas escapadelas. Dia desses, percebi suas pegadas no parapeito da janela. Depois disso, ela já não era mais a mesma. Trouxe manias que não são de casa: trejeitos e adereços que infestam as ruas e proliferam por aí. E isso tudo me deixa alucinado e confuso. Já não sei se a liberto ou se a reeduco. Não conseguiria segui-la, se liberta; não poderia reeducá-la, se reclusa. Que fazer?

Minha poesia talvez esteja pronta e tenha decidido cumprir sua trajetória. É natural que, por instinto, seja atraída pelo diferente. Natural, como é natural a perpetuação da espécie ou apenas uma duvidosa questão de sobrevivência. Melhor assim. Eu não serei o único na história do mundo a ter que suportar essa dura realidade. Ela deixará a redoma, o conforto e a proteção dos meus domínios. Espiará o mundo e será espiada sem limites. Eu, no desconforto dos impotentes, ficarei sonhando sua feliz trajetória, como o otimista que sonda apenas bem-aventuranças, embora sofra, calado, as possibilidades de doloridos percalços e fracassos.

Imagino que um dia, em algum lugar, ela possa fazer a alguém o bem que me fez por toda a vida. E quando tiver que partir, que deixe boas lembranças e muitas mãos que acenem longamente. E que se retraiam, com suavidade, para se juntarem depois em sinceras orações e votos de bem-aventuranças...

São Paulo, 29 de novembro de 2006 (17h12)