[TEXTO nº 100] TEMERIDADES

PRÓLOGO DO FIM: O presidente, no acme da impopularidade indissolúvel, que dança para se conservar no cargo até o fim concreto do mandato (mais abstrato do que nunca, a essa altura), contra todas as probabilidades, é o verdadeiro esfomeado do bandejão. Não contente com a montanha de arroz, feijão, salada e carne de segunda que conseguiu deglutir, quase sem ter de pagar por isso, ainda lambe o prato de forma impecável, recusando qualquer ajuda, repelindo o mau-olhado dos garçons ou responsáveis por lavar a louça suja, sugando qualquer grão ou partícula sobrevivente. Com efeito, é ridículo o espetáculo e inócuo o banquete, não há calorias ou sinal de nutrição real, e há um constrangimento difícil de disfarçar nas mesas em torno, mas o que importa é a auto-satisfação, que se explodam as testemunhas, o tribunal da consciência: talvez a côdea de pão, o restolho de purê ou pirão, realmente valham a pena, não importa quão bem-vestido seja o lambedor, quão desprezível e caricato seja o ganho. Ele simplesmente não pode evitar...

INTERMEZZO

se consolar na desaparição

tocar sanfona para o auditório vazio

gozando na própria cara

ADÁGIO-RESUMO: De tanto simular a própria morte, ninguém irá ao enterro verdadeiro da democracia, passaram a ignorar a velha e sua tosse que já não sabem se é qualquer espasmo doentio ou fabricado. Na verdade, é bem possível que isso (a última missa) tenha sido num passado remoto. Nossas memórias andam mesmo pra lá de desreguladas. A dama era tão velha que talvez já tivesse uma filha idosa, e confundimos as duas. Uma já morreu, a outra é só uma cópia. Especulamos, somente, porque nenhum repórter daria mesmo esse furo.