O sucesso de 1984 e o pessimismo de George Orwell

Para iniciar este texto de forma elucidativa, gostaria de indicar, de antemão, que ele contem spoilers. Portanto, a leitura é primeiramente destinada às pessoas que já leram o livro. Caso você tenha lido há muito tempo, não se preocupe: lhe ajudarei a refrescar a memória. Porém, se você desconhece a história e gostaria de ter uma boa noção de quase tudo que se passa no livro, continue lendo.

#1984

Neste livro, lançado no ano de 1949, George Orwell nos convoca a participar de uma viagem que dará início a uma nova era literária. Nesta viagem, vários padrões serão quebrados.

O pessimismo de Orwell é rapidamente identificado ainda nas primeiras páginas, quebrando, então, o conceito de que uma narrativa pessimista pode não ser tão agradável para o público – fato também presente nos livros de filosofia, mas como estes possuem um público relativamente segmentado, a distinção de Orwell continua persistente.

Em uma história estruturada pelo totalitarismo, mais uma vez percebemos um desvio dos padrões ortodoxos da época. Escrito sob uma atmosfera de um mundo pós-guerra – e também respirando os ares da Guerra Fria –, onde tais assuntos certamente causariam estresse, George Orwell inovou, com suas constantes críticas aos regimes totalitaristas. Fato que, expressamente, repreendia a situação política da União Soviética.

Ainda sobre a quebra de padrões proporcionada por Orwell, podemos listar a desconstrução da ideia de que, por mais pessimista que seja a história, no final seremos presenteados com um desfecho feliz. E este é um dos pontos mais marcantes do livro.

Nós percorremos toda a história acreditando em um final feliz, onde Winston conseguiria vencer o Grande Irmão. Ou, talvez, onde a Fraternidade obteria sucesso, colocando um fim em tudo de errado proporcionado pelo Partido.

No final, descobrimos que nada disso acontece. Winston acaba tendo todas as suas crenças despedaçadas, se tornando mais um simplório habitante da Oceania. Este que, acima de tudo e de todos, ama o Grande Irmão.

#O Livro de Goldstein e a Novafala

Emmanuel Goldstein foi supostamente um ex-membro do Partido, que o teria deixado após não mais concordar com as opiniões do Grande Irmão. Após abandonar o Socing, Goldstein teria escrito um livro, intitulado “Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico”. Neste livro, Goldstein argumenta em cima dos slogans utilizados pelo Partido: “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”. O livro de Goldstein, como parte de 1984, pode ser um pouco cansativo de ler, mas é parte essencial da obra.

O ponto mais interessante que descobrimos no final é que, tanto o Grande Irmão como Emmanuel Goldstein, talvez não passem de meras criações do Partido. Criações feitas apenas para tornar mais fácil o controle da prole. Existem pessoas que acreditam que o Grande Irmão realmente existia, bem como Goldstein. Bom, por que não considerar essas possibilidades?

#Novafala

No apêndice do livro encontramos a lógica integral por trás da Novafala – o nome do idioma pode variar de acordo com a edição que você leu, podendo também ser chamado de Novalíngua. O apêndice foi a parte que mais me impressionou. Nela, Orwell argumenta brilhantemente sobre essa nova forma de controle da população apresentada no livro. Toda a contextualização se baseia na ideia de que quanto menos palavras um indivíduo conhecer, menor será sua capacidade de pensar.

Quando tentamos relacionar as aplicações da lógica da Novafala com a nossa vida real, percebemos o quanto essa ideia é genial. Quantas vezes nós deixamos de nos expressar apenas por não saber como? Quantas vezes você tentou desenvolver um determinado pensamento e desistiu, frustrando-se, por não conseguir encontrar palavras para fazê-lo? Comigo tudo isso já aconteceu mais de uma vez.

Não podemos deixar de considerar a nossa liberdade de pensamento e expressão. Nós não temos um limite de conhecimento ou instrução a serem adquiridos. Temos liberdade para aprender tudo aquilo que desejarmos. E, ainda assim, enfrentamos essas dificuldades. Agora, voltando ao cenário do livro, algumas perguntas tornam ainda mais interessante – e talvez até filosófica – toda essa criação de Orwell.

Como a principal função da Novafala é eliminar as palavras julgadas inúteis pelo Partido, e unir outras para formar uma ideia previamente elaborada, como a prole conseguiria desenvolver seus pensamentos contra o Grande Irmão? Ainda considerando a ideia de que a prole fosse contra as atitudes do Partido, como eles determinariam o que era errado e por quê?

Apresentados apenas a essas possibilidades, a única alternativa era a aceitação. E foi exatamente o que aconteceu com Winston, como dito.

#Quarto 101

Outro momento extremamente intenso do livro é quando Winston encontra-se no Quarto 101, acompanhado de O’Brien. O Quarto 101 é o local usado pelo Ministério do Amor para torturar as pessoas que ousam demonstrar que conhecem tal sentimento – além de ser um destino absolutamente temido pelos prisioneiros do partido. É neste local que parte do memorável discurso de O’Brien é feito.

Desconstrução do amor

Também neste mesmo lugar acontece a desconstrução do amor de Winston por Júlia – momento que, com efeito, foi o ápice da genialidade de Orwell. Antes de contextualizar, preciso mencionar um trecho sobre este mesmo quarto, encontrado na Wikipedia: “O Quarto 101 é a maior expressão da onisciência do estado na sociedade abordada na obra, onde até mesmo os pesadelos de um cidadão são conhecidos pelo partido”. Tendo isso em mente, podemos recordar a cena.

Winston, após ter sido torturado inúmeras vezes anteriormente, é apresentado ao seu maior pesadelo: os ratos. Nesse momento, tomado pelo desespero absoluto, ele pede a O’Brien que coloque Júlia no seu lugar, para que ela sofra o que ele sofreria. E assim o seu amor é desconstruído – e apresentado no livro como uma traição.

Pouco depois, Winston é solto pelo partido, ainda com a cabeça conturbada. Do lado de fora, em um certo momento, encontra Júlia, que também havia sido capturada e torturada. Os dois sabem o que cada um passou sob a custódia do partido. Bem como sabem que o possível amor que existia entre eles foi eliminado pela traição, que os dois também evitavam comentar.

Essa passagem do livro, que marca os últimos momentos da história, também nos conduz a um questionamento pertinente. Será que abriríamos mão do que temos de mais valioso se fôssemos apresentados aos nossos maiores pesadelos? Qual o seu maior medo? Você trairia a pessoa que mais ama para se livrar de um sofrimento decorrente desse medo?

Essas perguntas facilmente dariam início a inúmeros debates filosóficos. As possíveis respostas podem nos causar grande desconforto. Talvez seja da nossa natureza acreditar que não trairíamos a pessoa que mais amamos, seja pelo motivo que for. Mas, no fundo, só saberíamos de verdade a nossa reação se fôssemos colocados nessas situações.

#Introspecção

Todo esse cenário nos leva à introspecção. Passamos a nos perguntar se realmente amamos as pessoas que dizemos que amamos. Até onde iríamos por elas? Será que nosso amor seria desconstruído no quarto 101, ou passaríamos no teste – mesmo que isso significasse a nossa ruína?

E é principalmente por conta desses motivos que 1984 é uma das maiores provas de excelência na literatura. Todos esses pontos, somados com a qualidade de escrita – que é impossível de ser transmitida aqui –, deixa nítido o motivo pelo qual este livro continua fazendo sucesso até os dias atuais.