O futebol-teatro

Clássico no estádio. Nas arquibancadas - abarrotadas -, bandeiras com mastro de bambu, sinalizadores, camisas a girar, gritos de um lado a outro e muita emoção. Bastante barulho nas entradas dos times, e cada torcida faz o possível para superar a festa dos torcedores rivais. Papel picado, bobinas, faixas e balões recepcionam a equipe no gramado e incentivam os jogadores a jogar com raça, a suar sangue por aquelas cores no uniforme. Pais, mães, filhos e pais e mães e filhos. Todo mundo sentado no concreto.

Para os brasileiros nascidos até a década de 1990, essa era uma cena corriqueira nas tardes de domingo nos quatro, cinco, seis cantos do Brasil. Em qualquer embate entre rivais - pode ter certeza - o jogo começa pelo menos uma semana antes do apito inicial. Do paraense RePa ao gaúcho CaJu, passando pelo paranaense AtleTiba, pelo FlaFlu, pelos Clássicos-Rei de Rio Grande do Norte e Ceará. Isso sem falar do Derby paulista, do SanSão e do Clássico Vovô.

A provocação entre torcedores, as apostas, as promessas, os preparativos para a festa nas bancadas. Tudo isso consome os fanáticos muito antes do horário marcado na tabela de jogos do campeonato. Nas escolas, nas repartições públicas, no cafézinho antes de embarcar no trem lotado, na espera do INSS ou no restaurante mais caro de Ipanema; a população entra em um transe e até a economia da cidade, às vezes do estado, sente um baque na produção.

As enormes filas para garantir o ingresso são uma prévia do jogo. Em muitas delas há ambulantes com cerveja, churrasquinho e camisas de ambos os clubes. Alguns torcedores até se empolgam e cantam os gritos consagrados nos estádios. Há uma disputa velada (mas levada muito a sério) de qual torcida esgota primeiro os ingressos para a partida, sendo o vencedor digno de deboche para com o adversário. Ao perdedor resta procurar alguma desculpa logística para ainda haver entradas destinadas aos torcedores da equipe nas bilheterias.

Mas, àqueles nascidos dos anos 2000 em diante, a famigerada “geração 7 a 1”, pouco disso restou. É bem verdade que a violência das torcidas organizadas nas proximidades da virada do século assustou a sociedade, e como reação a festa nos estádios foi diminuída gradativamente. Primeiro, no estado de São Paulo, a proibição das bandeiras de bambu - medida que ganhou adeptos dentre os mandatários do futebol brasileiro. Logo depois negaram aos torcedores o direito de entrar com camisas de organizadas. Os sinalizadores, grande atração das decisões jogadas à noite, foram na sequência. A cerveja, logo depois.

Hoje, já é obrigatório sentar em lugares marcados em recantos desse castigado Brasil. Entrar sem camisa também não é mais permitido. A tradicional avalanche gremista foi contida com armações de ferro entre as arquibancadas. Xingar o adversário nunca foi comumente aceito, mas um simples “vá tomar no cu” já causa um alvoroço, como se houvéssemos arrancado uma cabeça a mordidas. Num clássico nas terras paulistas, certa vez, proibiram a uma das torcidas de vestir a camisa DO TIME. Bom, pelo menos havia mais de uma torcida em campo.

A grande trapalhada da vez é a decisão - já corriqueira, aliás - de Ministérios Públicos de diversos estados em realizar clássicos com apenas uma torcida. Houve claras demonstrações do insucesso dessa medida, uma vez que a briga fora dos estádios continua a galope solto. Quanto às outras decisões, um termômetro da eficácia é a fuga dos públicos em jogos do Campeonato Brasileiro (os Estaduais sequer merecem citação, uma vez que os públicos desses campeonatos vêm em queda livre há décadas). Não refrearam a violência e ainda minaram o grande atrativo de assistir uma partida de futebol ao vivo, in loco.

Tentam, a cada nova temporada, transformar o torcedor brasileiro no espectador europeu: calado durante a maior parte do tempo, sentado, com um smartphone na mão e aplaudindo os gols, quando feitos pelo time do coração. Sequer a festa fora dos palcos permitem, a exemplo do episódio ocorrido antes da partida entre Inter e Corinthians, em Porto Alegre, pela Copa do Brasil, quando a Brigada Militar dispersou a tiros e bombas a recepção da torcida colorada ao ônibus com os jogadores da equipe.

Aos poderes públicos responsáveis pelo futebol cabe entender que a torcida organizada não é a chaga da sociedade, é apenas mais um dos reflexos dela; que tirar um sinalizador das mãos de um torcedor não vai acabar com a violência nos estádios - ao contrário, não terá nenhum efeito prático para tal; que o espírito do futebol brasileiro passa por nossa forma de torcer, de sentir, de viver o esporte mais apaixonante do mundo; e, principalmente, que futebol - CARALHO - não é teatro.