Avaliação da aprendizagem - um jogo viciado; um processo caduco?

Era uma simples reunião de Pais e Mestres, daquelas que todas as escolas realizam, com a finalidade principal de comunicar aos pais o “resultado da aprendizagem” de seus filhos. A coisa provocante, reflexiva e inquietante veio ao final, quando Simone recebeu das mãos das professoras o boletim de notas do seu filho de 11 anos, aluno do 6º ano. Era um boletim simples, daqueles que todas as escolas entregam aos pais ao final de cada unidade, tentando mostrar para eles o que seus filhos aprenderam durante aproximadamente uns dois meses na escola; um mapa, um “desenho do aprendizado do aluno”, algo assim.

Ao entregar à mãe o boletim, a professora nem deve ter percebido a força das suas palavras e a incrível concepção de avaliação presente na fala: ”Simone, a aprendizagem de seu filho é muito mais do que dizem essas notas aí. Esses números que ele conseguiu são algo muito mesquinho para o que, de fato, ele sabe!”. Naquele instante, ela não via, mas a mãe estava toda arrepiada. Falar de avaliação sempre lhe trazia muita inquietude. O que aquela professora queria dizer? Que o sistema de avaliação da escola era falho, caduco, medíocre?

A segunda professora, como se não bastassem as emoções já vividas pela mãe, completou: “Simone, seu filho dá um show em oralidade; sabe falar e se expressar, sabe fazer intervenções coerentes com os conteúdos das aulas... E é desembaraçado com várias outras coisas. Inclusive quando vou usar o datashow na aula, ele se oferece para me auxiliar; quando tenho alguma dificuldade na conexão, é ele que me ajuda a resolver. Mas na hora de escrever... E olha que ele sabe escrever!” E essa professora, o que quis dizer? Que o sistema de avaliação da escola não leva em conta o respeito às diferenças das crianças e adolescentes nem às múltiplas inteligências? Então, o que ocorria a ele na hora de escrever? Aliás, por que os alunos precisam mesmo escrever para provar que aprenderam? E as formas diferenciadas de aprendizagem e de avaliação onde andam? Apenas nos lindos escritos de Piaget, Paulo Freire, Cipriano Luckesi? Simone estava diante de professoras incríveis, profissionais que ela conhecia e admirava há um bom tempo, mas que afirmavam, sem perceber, que o sistema de avaliação da escola, além de não atender às individualidades dos alunos, estava fragilizado e ia mal.

Quanto à escola não sei, mas para Simone os minutos seguintes foram de profunda reflexão a respeito do sistema de avaliação pobre e medíocre que é o nosso sistema de avaliação educacional brasileiro. E um fato marcante, de tema similar, invadiu-lhe em lembrança. Em retrospectiva, ela viu uma menina de 11 anos, que – então – há mais de duas décadas, cursava a sexta série do antigo primário. Sofria de fobia social, mas tinha que tentar, em frente a uma turma de mais de trinta colegas, apresentar um trabalho de Geografia, um maldito trabalho de Geografia que “valia nota 10”. Simone não o julgava maldito pelo conteúdo desinteressante, mas porque a garota, que dava conta de todas as atividades escritas, de classe e de casa, e que sempre prestava toda atenção às aulas, fossem elas interessantes, chatas ou repugnantes, mas que nunca conseguia participar delas verbalmente, agora teria que apresentar um trabalho à frente de todos, mesmo com fobia social. Maldito porque o trabalho valia nota igualzinha para todos, tanto para os mais novos da turma como para os famosos repetentes; tanto para os que nunca tiveram experiência com oralidade em público como para os oradores da turma; o trabalho tinha valor igual para os falantes e os gagos. E a garota, que gostava demais de escrever, e, aos onze anos, tinha quase uma centena, entre poesias e crônicas, de textos escritos; estudiosa, disciplinada e responsável, colocou-se à frente da turma, julgando-se capaz de apresentar seu precioso trabalho de Geografia. Mas a voz engasgou, o rosto voltou-se para o chão e as faces coradas denunciaram a sua incapacidade de se expressar. A garota deixava de ser digna daquela nota... O pior lhe ocorreu nos próximos segundos: A professora, simples e cruamente, afirmou à garota que ela teria só mais uma chance. Apresentaria o mesmo trabalho na aula seguinte. Que diabos de chance? O que teria ela feito de errado para precisar de chance? Por que a escola precisava se comportar de uma forma tão rude e pragmática? A escola é que deveria se render diante da falta de respeito àquela menina e a tantas outras crianças; precisava admitir sua própria incompetência por limitar a avaliação a algo tão mesquinho e tão agressivo; A ESCOLA SIM PRECISAVA DE OUTRA CHANCE! Precisava rever suas funções, ao curvar-se a um sistema pobre, cruel e desrespeitoso; controlador e opressivo. Mas, uma garota de apenas 11 anos e fóbica, claro que não tinha coragem de dizer isso à professora nem à coordenadora; nem à diretora nem à escola, e, muito menos, ao sistema educacional municipal e ao sistema educacional brasileiro...

A retrospectiva continuava. Nunca Simone pensara nisso tão intensamente; talvez porque, a cada dia mais, ela tinha assimilado suas concepções de avaliação; e reviver aquela garota de 11 anos, a idade do seu filho naquele dia, foi bem significativo para ela naquele momento. Mas... Vamos ao final dessa retrospectiva... Durante o período de preparação que antecedeu o dia em que a garota receberia a “nova chance”, ela buscou dentro de si algum ponto forte nela, além do de escrever... E lembrou-se de uma nobre estratégia que poderia ajudá-la: ela era incrivelmente boa em memorização. Assim, escreveu tudo o que compreendeu do texto, tudo o que tinha que apresentar; procurou as palavras mais claras, e as “suas palavras” mais claras, porque era com “suas palavras” que a professora tinha pedido para que todos falassem. E transcreveu ao papel o que tinha que memorizar. E memorizou as explicações certas que preenchiam o tempo exato que a professora estabelecera como uma das regras para a apresentação daquele trabalho. Ensaiou e ensaiou, repetiu e repetiu, até sentir muita confiança na sua memorização. Na aula seguinte, três dias depois, a classe inteira assistiu a uma garota novamente à frente de uma plateia, tremendo pernas e o corpo inteiro, vermelha como tomate, tentando apresentar de novo aquele mesmo trabalho. E, embora fosse o mesmo, não apresentaria do mesmo jeito. E, ainda sendo outra a estratégia, tudo poderia terminar do mesmo jeito, porque suas limitações eram as mesmas e porque aquela apresentação seria vista pela professora do mesmo jeito. Aliás, tudo continuava do mesmo jeito.

A sala disposta do mesmo jeito; a professora posicionada do mesmo jeito. Aliás não! Tinha algo diferente: seu olhar era mais ameaçador, mais desumano; e ela parecia mais convicta de suas aberrações, de suas falsas e pobres concepções de avaliação; convicta de seu autoritarismo e da infidelidade ao juramento que um dia fez lá no magistério. E a garota convicta que tinha que apresentar um trabalho oralmente, pois este “valia nota até 10”, ou seja, não havia nenhuma outra forma de avaliação escrita naquela unidade, avaliação que “salvaria” uma garota que sabia escrever muito bem, mas não conseguia falar em público. E ela investiu todos os esforços. Naquele momento, a classe inteira assistiu a uma garota trêmula e corada, mas que conseguiu explicar perfeitamente o conteúdo proposto pela professora, atendendo a todos os pontos que constavam nas orientações do trabalho. E, ao final da apresentação, uma boa parte da turma, que compreendia as dificuldades da colega, parecia estar tão aliviada quanto ela. Aplausos para a professora então, por ter provocado que a garota se esforçasse? Que aplausos que nada! A professora, do mesmo jeito, no mesmo tom em que reprovara a apresentação anterior, ou melhor, a falta de apresentação do trabalho anterior, fez a comunicação da nota da aluna. E, diante de toda a turma, ela anunciou um “7,0”. E aquela turma que estava atenta, que acabou por se envolver emocionalmente com o fato, desde a aula anterior, perguntou em côro: “S–E-T-E?”, ao que a professora respondeu: “Sim, sete; porque ela falou um pouco rápido, posicionou-se meio de lado e não de frente para vocês, e não olhou nos olhos de todos; e também porque era a segunda chance.” E a turma ainda tentou: “Mas nós entendemos tudo o que ela disse! Ela apresentou melhor do que alguns de nós que tiramos 8, 9 ou 10!” E ouviram em tom alto e ríspido, e mal-educado: “Quem é a professora aqui, sou eu ou vocês?”, ao que todos calaram e abaixaram a cabeça, em sinal de respeito, digo, em sinal de medo mesmo. À saída para o recreio, a garota, ainda corada e tímida, agradeceu o apoio dos colegas. Foi aí o final da retrospectiva de Simone, e o meu pensamento pairou no “instrumento de opressão sobre as escolas”, de que tanto falou o mestre Paulo Freire.

Estou quase a encerrar esta reflexão e este texto que, tendo como fonte de inspiração um fato recente e um episódio vivenciado pela mesma pessoa há mais de 20 anos, fez-me reafirmar a existência de um ponto intensamente atuante ainda nos processos de avaliação na contemporaneidade, como se, em vez de mais de duas décadas, tivessem passado dois anos. Infelizmente, é isso: a escola segue afetando negativamente, ferindo e mutilando alunos; e, com a sua mísera forma de avaliar, segue colocando-os na lista dos fracassados, dos que não têm jeito, dos que não vão pra lugar nenhum, seja por limitações ou “desinteresse”.

Constantemente ouvimos a pergunta: Quando haverá mudança no processo de avaliação educacional? Ora, quando sairmos do nosso estado de letargia e abrirmos espaços de reflexão-conhecimento-ação. Quando pararmos para analisar que já não viajamos mais a cavalo; que a nossa TV já não é de tamanho pequeno nem sua imagem tem cor só preta e branca; que não precisamos mais bater as teclas duras de uma máquina de datilografia, para ter um texto ou documento escrito; que preferimos a impressora ao mimeógrafo. Avançaremos nos processos educacionais quando percebermos que chega de uma avaliação tão-somente classificatória; que seus processos precisam ser democratizados; que a escola precisa utilizar-se da avaliação também para ajudar as crianças na superação de seus próprios obstáculos; quando a escola perceber que a avaliação da aprendizagem não pode e não deve ser algo meramente técnico, artificial e cru; quando a escola, enfim, levar a sério o que tanto debate: que o processo de avaliação não deve ser tão-somente sistemático e quantitativo, mas que deve envolver emoções, dificuldades, sentimentos e experiências do indivíduo, bem como a sua filosofia de vida. Que a avaliação da aprendizagem, para além de notas ou de processos classificatórios, precisa envolver o respeito à cultura, à vivência e às limitações dos educandos. Enquanto a escola não parar para rever suas práticas, seguirá jogando esse jogo viciado, cujo processo mais parece o de auditorias de sistema.

Andréa Mascarenhas