Catolicismo Popular no Brasil

Esse pequeno texto faz parte do artigo Fragmentos de objetos, costumes e crendices antigas em Manaus, ainda não publicado.

O português e o espanhol trouxeram para a América o catolicismo. Nessa parte do Atlântico essa religião se desenvolveu de forma curiosa: mesclaram-se às raízes da tradição cristã ibérico romana, ainda com fortes traços medievais de influência pagã e maometana, as crenças dos nativos e, mais tarde, dos escravos africanos. Por mais que os conquistadores tentassem suprimir os credos dos outros dois grupos, o sincretismo, lentamente forjado em uma relação nem sempre amistosa de séculos, já havia ocorrido. Surgiu algo novo, outro catolicismo, o popular. Os moradores de povoados, vilas e poucas cidades existentes na América Portuguesa, distantes do centro de poder de Roma, se apegam mais à devoção do que ao sacramento.

O atual Rio de Janeiro um dia foi São Sebastião do Rio de Janeiro. A primeira cidade da colônia foi consagrada ao padroeiro de Lisboa, São Vicente. A fortaleza que deu origem à Manaus foi construída entre 1669-1670, sob a “invocação de Jesus, Maria e José” (MONTEIRO, 1995, p. 25), a Sagrada Família, e ficou conhecida como Fortaleza de São José da Barra. Em 1695, os padres carmelitas constroem uma pequena igreja ao lado do forte, consagrando o templo e a localidade à Nossa Senhora da Conceição. São Sebastião, São Vicente, Sagrada Família, São José da Barra e N. S. da Conceição da Barra, referências e oragos do catolicismo lusitano implantado no litoral e na região amazônica. De acordo com o Banco de Nomes Geográficos do Brasil, do IBGE, uma em cada 9 cidades brasileiras têm nome de santo, sendo 652 dos 5.565 municípios. Os mais citados, por ordem, são: São José (60), São João (54), Santo Antônio (38) e São Francisco (27)4.

O leigo (a) é a autoridade do culto popular. Existiam, claro, padres, freis e monges, mas o catolicismo foi transmitido por pessoas não ligadas ao poder eclesiástico, mas conhecedoras, ao seu modo rústico, das práticas religiosas. Herdeiras dos primeiros tempos da religião na América Portuguesa, são as rezadeiras e benzedeiras que ainda existem nas regiões Norte e Nordeste, que transitam entre a linha da religião, invocando os nomes de Jesus e santos, e do conhecimento nativo, buscando na mistura de ervas e plantas panaceias para todas as dificuldades. Iemanjá, divindade do Candomblé e da Umbanda, tem seu par na figura de Nossa Senhora dos Navegantes; e a lavagem das escadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, na Bahia, é realizada por mães de santo e filhas de santo (RIBEIRO, 2012, p. 18). Essa é uma característica da ausência do poder institucionalizado, que permite o surgimento de uma religião maleável e mais acessível às massas. Semelhante aos cultos fenícios e greco-romanos é a prática do ex-voto suspecto, o voto realizado, que consiste em deixar objetos para os santos como agradecimentos por graças alcançadas.

O santo tem papel de destaque na vida religiosa. Tudo gira em torno de sua figura. Oratórios, capelas e santuários são construídos com a ajuda da comunidade para honrá-lo. Esses templos movimentam as massas devotas e concentram em si a vida econômica e social, com a realização de arraiais, feiras e quermesses em seus terrenos ou arredores. As principais cidades do Nordeste se transformam durante os festejos de junho para São João, São Pedro e Santo Antônio. Deus é o ser supremo, representado como Senhor Bom Jesus, Divino Pai Eterno e Divino Espírito Santo. Não existe um culto específico para ele, pois os santos cumprem o papel da intercessão divina. Jesus, filho do criador

[…] é o protótipo dos santos: bom e justo, ele sofre sem ter pecado, e por esse sofrimento ele ganha a misericórdia divina para com os homens. Sua representação popular é, pois, a representação do sofredor: o Crucificado, o Senhor morto, o Jesus da Paixão. Só a partir da ‘romanização’ se introduz a representação de Jesus glorioso, Cristo-Rei, do Jesus suave e manso, como o Menino Jesus e Sagrado Coração de Jesus. Basta lembrar que a grande festa do catolicismo popular não é a Páscoa e nem mesmo o Natal, mas a Sexta-Feira Santa, a Sexta-feira da Paixão. Assim como Jesus sofreu, aceitando como resignação as provações que Deus lhe mandou, também os santos sofreram cada qual as suas provações, tendo assim provado diante de Deus sua conformidade com o que lhes mandava. Também os homens têm que se conformar com a sorte que Deus lhe deu, vivendo em fidelidade aos mandamentos de Deus sem jamais amaldiçoar sua vida5.

A relação com as imagens sacras é íntima e mistura superstições variadas. Santo Antônio, o casamenteiro, quando intercede e não encontra um parceiro, é congelado e posto de cabeça para baixo em um copo d' água. São Longuinho ganha “três pulinhos” se ajudar a encontrar um objeto perdido. Quando ajudam são recompensados e, quando não, ficam de castigo. Em cantiga vinda da antiga freguesia de Monsanto, em Portugal, São José ajuda a embalar uma criança para o sono6:

José, embala o Menino,

Com a mão, nanja co pé,

O menino que ali vês

É Jesus de Nazaré.

Cantai, anjos, ao Menino,

Que a Senhora logo vem,

Foi lavar os cueirinhos

À ribeira de Belém

São amigos próximos mas também podem ser tratados como crianças birrentas. Os santos curam e ajudam nos problemas do cotidiano, bem como protegem a casa, a rua e o comércio. O catolicismo popular é um dos exemplos mais significativos de como se desenvolveu a sociedade na América Portuguesa e, mais tarde, no Brasil. Uma religião milenar, já transformada em sua região de origem, se aclimatou nos trópicos, onde também recebeu outras influências e se transformou em algo novo, expressão de uma sociedade desigual e culturalmente multifacetada.

NOTAS:

4 Uma em cada nove cidades do país tem nome de santo. Disponível em g1.globo.com/brasil/noticia/2011/09/uma-em-cada-nove-cidades-do-pais-tem-nome-de-santo.html. Acesso em 17/01/2017.

5 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Vozes, Petrópolis, 1985, p. 112.

6 José embala o menino In: Pires, A. Tomás. Cantos Populares Portuguezes (em Português). 1 ed. Elvas: Tipografia Progresso, 1902. vol. I.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fundação de Manaus. São Paulo, Editora Metro Cúbico, 4° ed, 1995.

RIBEIRO, Josenilda Oliveira. Sincretismo religioso no Brasil: Uma análise histórica das transformações no catolicismo, evangelismo, candomblé e espiritismo. UFPE, 2012.